ACTAS  
 
8/29/2015
Jantar-Conferência com Profª Maria de Fátima Bonifácio
 
Dep.Carlos Coelho

Senhora Prof.ª Maria de Fátima Bonifácio

Senhor Presidente da Câmara

Senhores Deputados

Minhas senhoras e meus senhores

Todos conhecemos a regras da casa, exceto a nossa convidada de hoje.

Nós iniciamos os nossos jantares com um momento cultural: a escolha de um poema pelo alunos da Universidade de Verão e respetiva leitura.

Temos dois grupos, hoje são o Roxo e o Rosa.

Começa o Grupo Roxo, que nos lê o Infante , da "Mensagem” de Fernando Pessoa.

Escolheram este poema porque, dizem, "somos um povo aventureiro que partiu à descoberta, enfrentando ventos e tempestades. Um povo marcado pela audácia do Querer e da Vitória. Porque Deus sonhou e o Homem quis. Descobrimos a costa, ilhas e continentes, e a obra nasceu. A Portugal foi concedido um grande desafio, o Mar, e o Mar foi desvendado. Mas o Império Português, de controle das rotas oceânicas e hegemonia no Índico desfez-se. Porém, não há dúvida de que somos um povo grande, destinado a conquistar a vencer. E nós, jovens, temos essa responsabilidade. A responsabilidade da mudança, do futuro, do querer ir além e do saber, do Sim à excelência da alma, do empenho e da responsabilidade. Que se cumpra Portugal.”

Será lido na voz do Joel Pinto.

 
Joel Pinto

[LEITURA, APLAUSOS]

 
Dep.Carlos Coelho

Vamos também ouvir, na voz do Chico Parloa, do Grupo Rosa, um poema chamado "Filhos de um Povo Andante”.

Carlota de Barros nasceu em Cabo Verde, formou-se em Filologia Germânica, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Lecionou em vários liceus em Portugal e na formação de professores.

Carlota de Barros retrata a imagem de muitos cabo-verdianos – neste caso, cabo-verdianas – que batalham e triunfam onde estiverem.

O poema retrata não apenas os cabo-verdianos mas também a história comum entre estes e os portugueses.

 
Chico - Patchê Parloa

[LEITURA, APLAUSOS]

 
Maria João Magalhães

Boa noite. Com apenas 12 anos, filha de uma mulher independente e de um verdadeiro senhor, tornou-se uma mulher livre, de convicções. Maria de Fátima cedo ficou entregue a si própria. Uma mulher que encontra pessoas, não as procura e, como disse, "atrás de uns vêm outros”. A sua infância foi marcada por idas e vindas, que a levaram a descobrir que tinha um grande poder de negociação quando se sentindo suficientemente segura. No fim do segundo ano, decide viver sozinha.

Aos 17 anos, diz ter vivido os tempos mais divertidos da sua vida. Pensou estudar ciência política, mas agradece ao seu pai o facto de a ter dissuadido dando-lhe três contos de reis e dizendo-lhe: "Isto é o dinheiro que te dou até ao resto da tua vida”. Como ela própria diz, "Salvou-me”.

Uma historiadora de excelência que podia ter sido política, mas consciente das suas implicações escolhe estudar História e afirma: "a História funciona como um ersatz para a política; é uma palavra alemã, que - mal traduzida, significa substituição”.

Uma ilustre historiadora com um grande leque de obras escritas, foi em 2011 que recebeu o prémio máximo de ensaio pelo livro "A Monarquia Constitucional” e mais recentemente foi distinguida com o Prémio Grémio Literário. Proponho, em nome do Grupo Bege, um brinde a Maria de Fátima Bonifácio.

[APLAUSOS]

 
Dep.Carlos Coelho

Senhora Professora, senhor Presidente da Câmara, senhores deputados, minhas senhoras e meus senhores, como a Maria João já disse, a Prof. Maria de Fátima Bonifácio é um vulto da historiografia portuguesa.

É uma especialista em História Contemporânea, doutorada em História, autora de muitos livros, dezenas de artigos científicos e uma intelectual muito atenta.

Não apenas atenta à história contemporânea, mas à realidade que a rodeia e é com muito prazer que a recebemos no último jantar-conferência da Universidade de Verão.

Em 2012, uma jornalista do Público, Anabela Mota Ribeiro, entrevistou-a e escreveu: "Fátima Bonifácio recebe-me em casa num uniforme maoísta. A expressão é dela e pretende ser uma provocação. É uma polemista, foi há uma eternidade que acreditou em amanhãs que cantam, mas o uniforme é maoísta e confortável.

Maria Fátima Bonifácio é uma mulher de Direita, tem 63 anos, uma filha, um neto, vive num apartamento meticulosamente arrumado. Reformou-se da universidade, o seu objeto de estudo é o séc. XIX português."

No ano passado, o José António Saraiva disse dela: "Conheci Fátima Bonifácio nos anos 70, gostei dela logo no primeiro contato, tinha um olhar penetrante, algo irónico e inteligente. Quando começou a falar não desmentiu essa primeira impressão.”

Devo confessar que estou mais do lado do José António Saraiva do que do lado da Anabela Mota Ribeiro. Nunca vi a nossa convidada vestida com um uniforme maoísta, mas tive o privilégio de a conhecer em Bruxelas numa visita que fez acompanhando a Filomena Mónica. Acho que o José Saraiva tem razão, tem um olhar penetrante, algo irónico, mas muito inteligente.

A nossa convidada de hoje não tem hobbies , tem como comida preferida tudo o que engorda e faz mal à saúde. Como animal preferido diz que não tem nenhuma preferência especial mas tem algumas alergias especiais. Esperamos que não seja a coelhos.

[RISOS]

O livro que sugere é de Isaiah Berlin, "Four Essays on Liberty”. O filme que nos sugere é de Nicholas Ray, "Johnny Guitar” de 1954 e quanto à qualidade pessoal que mais aprecia diz: "É uma pergunta demasiada íntima para responder por esta via.”

Senhora Professora, quando nós falámos sobre o tema, disse-nos logo o que gostava de nos dizer. Portanto, a minha pergunta é meramente retórica: não estamos num século e a viver tempos hoje em que a despeito da evolução da modernidade há aqui e ali alguns assombros de tirania, tirania de ideias, de regimes? Aparentemente, quer por via do fundamentalismo religioso, quer da arqueologia ideológica, olhamos à nossa volta e vemos muitas expressões de tirania.

Mas alguém com o perfil de Maria de Fátima Bonifácio, uma intelectual reputada, pode ajudar-nos a refletir qual é a relação dos intelectuais com a tirania: será de esperar que os intelectuais mais abertos das ideias sejam campeões da luta contra a tirania e arautos dos valores da liberdade, ou serão cúmplices em processos que teremos de denunciar e combater?

Minhas senhoras, meus senhores, para a nossa última reflexão na Universidade de Verão 2015, uma pessoa especial, uma grande intelectual, uma grande historiadora, a Professora Maria de Fátima Bonifácio.

[APLAUSOS]

 
Maria de Fátima Bonifácio

Levanto-me para saudar todos e agradecer a vossa presença, sobretudo ao Dr. Carlos Coelho ter-me dado a honra mas também o imenso prazer de estar aqui convosco.

Fui professora universitária, sou um bocado chata, não tenho jeito nenhum para animação cultural, nem a pretensão de vos ensinar coisa alguma sobre um problema extraordinariamente complexo e vasto. Não estou aqui a dramatizar apenas pelo efeito de dramatizar, mas acho que vale a pena chamar a atenção para este problema, para ficarem com ele, se ainda não o descobriram. E a partir daqui, se vos interessar irem além da mera superfície das coisas, procurarem leituras que vos elucidem sobre algo tão misterioso como aquilo de que vos vou falar.

Muito obrigado a todos.

[APLAUSOS]

Comecei por pensar num título que seria "Os Intelectuais e a Política”, rapidamente resvalei para "Os Intelectuais e a Utopia” e de forma igualmente rápida fixei-me no título "Os Intelectuais e a Tirania”.

Um novo tipo social, o chamado "intelectual comprometido” floresceu na Europa continental do séc. XX enquanto abrolhavam as várias tiranias que enlutaram este século, que ainda ontem deixámos para trás.

Foram as tiranias mais cruéis, violentas e mortíferas da História, que custaram centenas de milhões de vidas. Hitler, Estaline, Mao, Ho Chi Minh, Pol Pot, Castro, Trujillo, Idi Amin, Bokassa, Saddam, Khomeini, Ceausescu, Milosevic e por aí fora, a acabar no mistério atual da Coreia do Norte.

A minha última pergunta é a seguinte: estamos nós livres da repetição desse fenómeno? A resposta vai ser: não, não estamos. A razão por que não estamos livres de ele se repetir é aquilo que vou tentar explicar.

Aristóteles considerava o despotismo de um homem isento de toda a responsabilidade e de toda a censura, uma das características da tirania antiga algo que encontramos também nas tiranias contemporâneas.

Aristóteles ainda não podia sequer conceber a tirania genocida, nossa contemporânea, muito menos a tirania genocida exercida paradoxalmente em nome de valores humanitários. Nós próprios temos dificuldade em entender como muitos intelectuais, grandes e pequenos, para quem a liberdade devia ser o próprio ar que respiram, pudessem colaborar por omissão ou ação com regimes tão abomináveis.

A característica paradoxal do "intelectual comprometido” do séc. XX, o tal intellectuel engagé heroicizado por Sartre, é aquilo que um outro pensador, Mark Lilla, chamou à falta de melhor - diz ele próprio - filotirania. A filosofia é o amor pelo saber, a filotirania é o amor pela tirania.

A filotirania é uma estranha patologia do espírito, chamemos-lhe assim, que tanto à Esquerda como à Direita seduziu muitas e grandes inteligências.

Sartre foi, porventura, o caso mais influente e exuberante de filotirania. Nos anos 50 revelou uma inteligência militante para com o regime soviético sobre cujos gulags , no entanto, já tudo se sabia.

Em Maio de 1968 surgiu convertido ao Maoísmo, uma ideologia e um regime não menos sanguinários do que o Estalinismo. Como não espanta, a doença atacou também intelectuais de Direita, propriamente fascistas, como Giovanni Gentile, Gabriele D’Annunzio, Charles Maurras, Marais, Drieu de la Rochelle e filósofos propriamente filósofos, já não só intelectuais, nazis como Heidegger ou Carl Schmitt.

Aliás, diga-se de passagem, o antissemitismo e o nacionalismo de raiz racialista foram uma criação francesa. Os alemães não inventaram nada, a não ser - e de facto é muito - a industrialização do extermínio de seres humanos.

Todos os intelectuais filotirânicos se dedicaram a explicar ao mundo que as novas tiranias eram libertadoras e que os crimes hediondos que nelas se praticavam eram, em última análise, atos nobres cometidos em nome de um ideal sublime que os justificava e redimia.

A colaboração dos intelectuais de Direita ou de Esquerda, seja em nome da sociedade sem classes, ou em nome da grandeza da nação, ou da superioridade da raça, parece contra natura e exige uma explicação. Quem for o historiador tenderá a buscar essa explicação no Iluminismo do séc. XVIII, na idolatria da Razão universal que cultivava estaria a raiz da intolerância e a consequente absolvição da tirania em nome de um valor superior universal racionalmente estabelecido.

Para Isaiah Berlin, o maior historiador das ideias do séc. XX, o postulado básico do Iluminismo consiste na afirmação de que dada a universalidade da Razão, sendo pois a Razão igual em todos os seres humanos, a verdade logicamente é e só pode ser uma única, tanto a respeito da Física como da Moral e da Política.

A descoberta racional dessa verdade absoluta constituiria um processo histórico gradual na perspetiva do Iluminismo, progredindo por aproximações sucessivas e as parcelas de verdade a que se vai chegando tem necessariamente de ser compatíveis entre si. Porque a Razão é una, é uma, é universal e por isso só há uma lógica e não duas ou 200.

Berlin, como genuíno liberal que era, explorou o papel das ideias na ação política e em particular interessou-se pela intrigante atração moral e intelectual dos intelectuais pelas grandes visões despóticas surgidas no Ocidente à Esquerda como à Direita.

No centro das suas interpelações esteve a questão de saber se todos os valores absolutos são compatíveis entre si, como supõe o racionalismo iluminista, ou se pelo contrário afinal não existe nenhum ideal humano objetivo e universal de onde possamos derivar as regras de agir e de viver comuns a todos.

Em pleno séc. XIX, Auguste Comte, um herdeiro de Newton e pai do positivismo, interrogava com toda a seriedade: "Se não há livre arbítrio na Física, por que há-de haver na Moral?” e ele estava a falar a sério.

Comte acreditava piamente na possibilidade de uma ciência que permitisse realizar uma sociedade racional.

Segundo Isaiah Berlin, em todas as correntes do pensamento político ocidental preside a convicção iluminista de que o conjunto de todas as coisas e de todos os fenómenos pode ser reduzido à unidade do ponto de vista das leis lógicas ou mecânicas que comandam a ordenação física e também moral do universo. Berlin sugere que esta convicção satisfaria uma necessidade de absoluto inerente à condição humana. Essa necessidade de absoluto nasceria da aspiração humana à plenitude, é uma aspiração inata e aparentemente até empiricamente comprovada.

Na verdade, Berlin, não anunciou nenhuma novidade. Há 2.400 anos que Platão no "Simpósio” diagnosticou esta ânsia de absoluto e forneceu para ela uma explicação mitológica muito intrincada e que aqui simplifico: originariamente os homens eram unos, mas Zeus castigou-os pela sua insubordinação e cortou-os ao meio. Numa citação do "Simpósio” lê-se: "Como a sua natureza original tinha sido cortada em duas, cada uma ansiava pela sua própria outra metade, querendo formar um único ser vivo. Costumávamos ser criaturas inteiras. Amor é o nome que damos ao desejo e procura da inteireza, ou seja, da plenitude perdida. Amputados da sua metade, os homens tornaram-se seres frágeis e inseguros, por isso precisam certezas, preferivelmente absolutas, não convivem bem com a incerteza, seja ela moral, ideológica, política ou até física ou biológica. A incerteza gera medo, insegurança e frustração.”

A originalidade e a atualidade de Berlin estão na rejeição da ideia iluminista incorporada no Liberalismo, de que todos os conflitos de valores possam em última análise ser resolvidos por uma síntese que os conjuga harmoniosamente e que os hierarquize objetivamente. Dentro da visão pluralista de Berlin - não confundir com relativista - que acolhe esta impossibilidade de harmonizar valores incompatíveis, a conduta moral confronta-nos com escolhas muitas vezes angustiantes, entre valores que são igualmente estimáveis e desejáveis, mas que se revelam na prática incompatíveis entre si.

A clemência, a liberdade, a justiça, a privacidade pessoal, a segurança, o combate à corrupção, a igualdade e a prevenção do terrorismo são tudo valores igualmente estimáveis mas que não podem ser realizados ao mesmo tempo. Um tem sempre de perder em função do outro; é preciso escolher e hierarquizar o que é mais e menos importante.

De facto, é duro viver com a possibilidade permanente de incerteza moral. Ora, as ideologias totalitárias oferecem os critérios universais indubitáveis para orientarmos a nossa conduta sem passarmos pela angústia da escolha entre valores contraditórios.

As ideologias totalitárias proclamam e hierarquizam os valores e invariavelmente abraçam o princípio de que a santidade dos fins justifica todos os meios.

Trotsky escreveu isso nos anos 30 num livro que se chamava "A Moral deles e a nossa” e Álvaro Cunhal copiou esse escrito de Trotsky já no exílio mexicano dos anos 30 e publicou um livro em 1964, nas edições Avante, chamado "A Superioridade Moral dos Comunistas”, que não passa de uma recitação fiel de um texto de Trotsky.

Mark Lilla, que eu já citei e é professor de pensamento social da Universidade de Chicago, procurou uma via de explicação para a filotirania. Em parte, alternativa à de Isaiah Berlin. Segundo Lilla, há outras realidades para além do legado iluminista, onde também pode plausivelmente encontrar as raízes da filotirania do intelectual do séc. XX. Elas remetem para a profunda irracionalidade que se alberga furtivamente em todos nós. Lilla refere-se a uma capacidade humana que permite acreditar em coisas que escapam a um escrutínio propriamente racional.

Por exemplo, o fascínio passional - sublinho passional - que a tirania moderna do séc. XX exerce sobre muitos intelectuais e não apenas sobre as "multidões ignaras” - para usar uma expressão de Herculano.

As tiranias da Razão, como foi por exemplo a I República francesa entre 1792-1794, só podem ser impostas e defendidas por uma crença passional na absoluta e infalível bondade da razão. Mas, a Revolução Francesa não foi apenas filha do Iluminismo do séc. XVIII, foi filha de uma pulsão que furou a carapaça racional do Iluminismo e veio a ser intelectualizada como uma pulsão romântica. O Romantismo como corrente estética, como weltanschauung , world outlook , ou visão do mundo, onde primeiro floresceu foi na Alemanha, na Música e na Literatura. O que não espanta. Isto também é importante para diferenciar os intelectuais alemães dos intelectuais franceses, porque a cultura contemporânea alemã, naquilo em que contrasta com a cultura francesa, nasce de uma fonte espiritual específica a que os alemães chamam innerlichkeit , os ingleses inwardness e nós pobremente "interioridade”, que me faz logo lembrar o Alentejo.

Trata-se uma tendência para o recolhimento, para a concentração nas pregas do nosso eu interior.

Foi da água bebida nesta fonte íntima e pessoalíssima que resultou o Romantismo, que Isaiah Berlin considera: "A mais radical e sem dúvida a mais dramática, para não dizer mais aterradora, mudança na perceção humana dos próprios Homens e do Mundo nos tempos modernos.

O Romantismo irrompe como um subjetivismo absolutismo, ao passo que o Iluminismo era um objetivismo absoluto. Interpelou radicalmente as noções de objetividade e racionalidade universais e com isso destruiu a intangibilidade de supostas verdades éticas, estéticas, morais e políticas que se julgavam estabelecidas pela Razão para todo o sempre.

Afinal, a Razão não era o instrumento cognitivo, nem único, nem mais importante, nem mais penetrante, ao dispor do Homem. Talvez sirva para a Ciência que estuda o mundo material, mas não serve para as Humanidades.

Giambattista Vico estabeleceu esta distinção entre as Humanidades e as Ciências numa obra de 1725 chamada "Scienza Nuova”, em que ele define uma diferenciação, uma rutura, entre as Humanidades e as Ciências Exatas, que até hoje, malgrados todos os esforços, nunca foi superada.

Aquilo que era das Humanidades, era o que se conhecia por dentro, porque era feito pelo Homem, e aquilo que era da realidade física, era de fora, porque não era feito pelo Homem; dito simplificadamente é isto.

Os românticos introduziram esta nova distinção criada por Vico, o que também abriu caminho ao Romantismo. Os românticos introduziram como critério de conhecimento, avaliação, apreciação, juízo moral, ético, estético e político, os nossos afetos, sentimentos, paixões, inclinações, ou seja, modulações emocionais do nosso ser mais recôndito e pessoal, vibrações do nosso ego profundo, encapsulado até ali na tal innerlichkeit , inacessível a ferramentas inspetivas puramente racionais.

Voltemos então ao intelectual, que em nome de uma utopia, de um sonho, de um ideal superior, condescende, quando não aplaude e promove, a idolatria do líder, o delírio de massas ululantes que o seguem, o degredo, a prisão, a tortura e o assassínio dos que não colaboram ou até legitimamente conspiram.

Raymond Aron denunciou estes intelectuais como hipnotizados e cegos ante os crimes ignóbeis de Estaline e o seu repugnante e ridículo culto da personalidade. Ou voltemo-nos para homens como Albert Speer, um alemão dotado de um génio quase a todos os títulos superior, de uma elegância intelectual e de uma sensibilidade estética apuradíssimas, no entanto foi um homem-chave do regime nazi, ministro responsável pelo fabrico de todo o armamento, desde as metralhadoras e munições até aos tanques e aviões. Foi organizador de mão-de-obra escrava do estrangeiro e um dos poucos nazis a ter o privilégio de almoçar ou jantar quotidianamente com o Fuhrer.

Também foi o único acusado em Nuremberga que se deu por culpado, o lhe valeu 25 anos de prisão e não a execução.

Voltemos a Sartre, que de apologista do Estalinismo se converteu em propagandista de Maoísmo que também tem no seu cadastro dezenas de milhões de mortes. Em nome de quê? Em nome da pobre e indefesa humanidade em face do poder dos grandes, sem Sartre ver que os grandes, grandíssimos, eram na verdade os estalines, maos e hitlers.

Raymond Aron que cultivou o mais sublime e raro dos ideais, que é o ideal do senso comum, denunciou a incapacidade deste tipo de intelectuais comprometidos para avaliar e comparar a injustiça relativa dos vários regimes políticos porque apenas se entusiasmavam com a perfeição absoluta do socialismo integral que ainda não existia, mas que sem dúvida nasceria dos solos gelados da Sibérias e dos corredores ensanguentados das prisões soviéticas. Males provisórios, naturalmente, mas meios justificados pela bondade dos fins.

Na história das ideias, a conta da posição entre Iluminismo e Romantismo que eu tentei fazer até agora, entre racionalismo e anti-intelectualismo, é útil mas não resolve tudo. Ficamos sem saber exatamente porque é que a filotirania ataca os intelectuais antes de mais. Há pelo menos um começo de resposta dada por Mark Lilla, inspirado em Platão.

Platão já detetara uma relação entre os espíritos mais assediados pela urgência de plenitude e a filosofia, ou a política: "Homens grávidos no que toca ao corpo satisfazem essa ânsia de inteireza através do corpo, dos prazeres físicos. Homens grávidos no que toca à alma tornam-se filósofos, ou poetas, ou políticos”, embora ele descreva os políticos como aqueles que se dedicam à governação do oikos , que é o household , não há termo em português para isso, mas economia vem de oikos, talvez isso ajude; portanto à governação da casa, ou da cidade.

Existe, assim, uma determinada força propulsora que move os Homens, tanto os herdeiros do Iluminismo como os do Romantismo. Mark Lilla, sempre na esteira de Platão, identificou essa força como sendo o quê ou quem? Como sendo eros , ou seja, uma paixão de natureza sensual, que pode ser mais ou menos sublimada, mas que nem por isso deixa de ser erótica. Um amor passional que por ser passional, dificilmente se controla e pode induzir, segundo Platão, loucura, cegueira, coragem e imprudência, ou ubris , a soberba humana que desafiava os deuses e os deus castigavam-nos.

Para Platão, no "Simpósio” - cuja leitura recomendo vivamente -, eros induz loucura ou um amor louco, que tanto pode ter como objeto uma pessoa, como uma ideia. Só os verdadeiros filósofos, os sábios são capazes de opor a essa loucura uma barreira eficaz de prudência, moderação e justiça - os três pilares da sabedoria em que assenta a sensata governação da polis.

Os filósofos na aceção antiga que saídos da escuridão da caverna - já toda a gente ouviu falar do mito da caverna de Platão - ascendem ao mundo das ideias iluminado pelo sol. Os filósofos têm obrigação moral, não são os intelectuais, na tradição socrática e platónica, de atuar dentro do século, isto é, dentro do Mundo, para guiar aqueles cuja visão pouco mais alcança do que as sombras que na caverna original deformavam os ideais.

Platão não os via como legítimos ditadores, ao filósofos, ao contrário de muitas interpretações de Platão que por aí andam; via-os como sábios que tinham a humildade e a capacidade de através do bom governo minorar os efeitos dos Homens desprovidos da virtude como são os Homens comuns.

Já os nossos intelectuais comprometidos, muito letrados mas corroídos pelos mesmos vícios e fraquezas que diminuem os símbolos mortais, suportam muito mal as imperfeições do mundo concreto e dos Homens reais.

A tentação de transformar o Mundo e criar um Homem novo foi uma tentação constante no séc. XX, uma paixão-loucura muito humana e mundana a que muitos e muitos se renderam.

Os intelectuais, ao contrário dos verdadeiros filósofos, na tradição socrática, platónica, aristotélica, antiga, grega portanto, sucumbem ao eros e são tomados pela loucura do amor, deixam-se escravizar pela sua paixão e pela ideia de um Mundo perfeito.

Não intervêm no Mundo para simplesmente melhorá-lo, fazem-no para o transformar num admirável mundo novo, habitado por Homens novos e perfeitos. Como os Homens existentes, os Homens reais, persistem obstinadamente na sua maneira de ser defeituosa, a tirania torna-se necessária ou para os converter ou, quando se revelam incorrigíveis, para os eliminar.

O "intelectual comprometido” é tudo menos um modelo como um filósofo, segundo o modelo socrático ou platónico da Grécia Antiga. O "intelectual comprometido” é um ativista político.

O filósofo sabe que a Filosofia e a Política são domínios distintos da atividade humana, prudentemente medita, aconselha, ensina ou, como Sócrates, engole a cicuta, mas não tem ilusões sobre a viabilidade de um Mundo ideal.

Poderemos conciliar Berlin e Lilla? Podemos. Tanto acho que podemos, tanto a atração pelo ideal iluminista que é a via escolhida por Berlin, como pelo ideal romântico, mobiliza energias passionais produto do tal eros de que falava Platão. Trata-se de uma paixão inerente à condição humana, com a qual tentamos colmatar o que Maria Gabriela Llansol chamava a nossa incompletude.

Enquanto houver mundo humano existirá sempre a possibilidade de uma erupção de filotirania.

[APLAUSOS]

 
Dep.Carlos Coelho

Muito obrigado, senhora Professora. Vamos fazer agora três ciclos de perguntas. No primeiro ciclo, dou a palavra ao Fernando Melo, do Grupo Azul, ao Nuno Picado, do Grupo Amarelo, e ao Hélder Quintas de Oliveira, do Grupo Laranja.

 
Fernando Melo

Boa noite, Dr.ª Maria de Fátima Bonifácio. Agradeço a sua presença, em nome do Grupo Azul, e os conhecimentos tão grandes que nos transmitiu sobre História.

Também é um prazer fazer-lhe uma pergunta porque tem o mesmo nome da minha mãe e eu já não a vejo há uma semana, desde que vim para a Universidade de Verão.

[APLAUSOS]

Dado os seus estudos incidirem tanto sobre história política, gostaria de perguntar como é que acha que a história irá ver, daqui a 20 ou 30 anos, Pedro Passos Coelho como Primeiro-Ministro e, já agora, José Sócrates.

[APLAUSOS]

 
Nuno Picado

Boa noite, Professora Maria Bonifácio. Uma entrevista sua que vi na Internet aguçou-me a curiosidade para lhe perguntar de que forma é que o seu contacto com outros países ajudou a moldar a sua ideologia política.

 
Hélder Quintas de Oliveira

Boa noite a todos. Antes de mais, queria agradecer em nome do Grupo Laranja a agradável companhia que a Professora Maria de Fátima Bonifácio nos proporcionou neste jantar, que muito nos enriqueceu.

Como todos sabemos, a Professora Maria de Fátima Bonifácio é uma personalidade da vida pública portuguesa que se assume claramente como de Direita Conservadora e Liberal como referiu na tal entrevista à Anabela Mota Ribeiro, em 2012.

Posto isto, como é defender estas visões em Portugal, num contexto em que os principais partidos de centro-direita se assumem essencialmente, no caso do CDS, democrata-cristão e, no caso do PSD, como social-democrata?

Entende que estas designações ideológicas mais centristas não refletem aquilo que na prática estes partidos são?

 
Maria de Fátima Bonifácio

Muito obrigada. Não sei como Sócrates e Passos serão vistos pela História daqui a 20, 30, ou mesmo daqui a 10 ou 5 anos. Não tenho meio de saber. Desde logo, não vai haver certamente apenas uma visão de Passos e uma visão de Sócrates. Vai haver mais que uma, dependendo do historiador.

Isso significa que o historiador pode simplesmente escrever de acordo com as suas predileções intuitivas e instintivas? Não, não significa.

A História é muito exigente no que diz respeito a um aparelho crítico, à crítica das fontes, à comprovação documental dos factos e coloca uma série de exigências que limitam a arbitrariedade. Um boa História não tem arbitrariedade; agora, tem certamente uma visão que pode ser uma visão de uma época, de um personagem, ou de um acontecimento.

Não é por acaso que nós temos centenas de histórias da I e da II Guerras Mundiais, ou do reinado de Luís XIV, ou da revolução francesa e por aí fora. Quer dizer, há boa e má História, isso sem dúvida alguma, pois há História que não é consistente, não está documentalmente fundada, que não transmite visão nenhuma, mas em última análise a História é informada no ambiente intelectual em que vive o historiador, acaba por ser informada pela própria visão do mundo do próprio historiador.

Não tenho dúvidas de que reflito a minha visão do mundo bastante pessimista na História que escreve. Portanto, não vai haver só uma História sobre Passos e Sócrates, vai haver várias e eu não sei como serão, de todo, de momento não posso adivinhar.

Não sei se respondi, se ficou satisfeito, talvez tenha ficado frustrado, mas a culpa não é minha, é da realidade.

[RISOS, APLAUSOS]

Quanto à segunda pergunta, o contacto que tenho com outros países, viajei desde muito pequena e além disso também andei no colégio alemão, mas digamos que até aos 18, 20 anos, fui razoavelmente estouvada.

Sou aquilo que os alemães chamam de spätentwickler, ou seja, alguém que se desenvolve tarde. Portanto, cheguei tarde às coisas.

O que me influenciou foi de facto as pessoas fantásticas que eu tive a sorte de encontrar na vida e que me deram a ler determinadas coisas. Até que comecei a adquirir uma certa autonomia e já não precisava sempre que me desses livros para a mão, eu própria ia à procura deles.

Depois, é evidente que a História ajudou-me neste sentido: pode parecer que não, mas supõe o gosto pelo concreto, embora eu goste muito de ideias abstratas e de as discutir. É por isso que eu gosto de política, a política é um espetáculo para a nossa curiosidade, multifacetado, mete em cena temperamentos, lutas, disputas, valores, ideais, coisas nobres, coisas baixas - é um espetáculo que se oferece, para a minha curiosidade pelo menos.

Mas a História gosta do concreto e eu comecei a ler a História do regime soviético, li Marx de fio a pavio, depois as sequelas e comecei a perceber que aquilo estava tudo errado e sobretudo completamente divorciado do mundo que eu via à minha volta.

Mudando de agulha e começando a ver que o meu mundo afetivo ou intelectual não era aquele, vendo que no fundo eu sou uma pessoa de Direita, ou seja, acredito no mérito, na hierarquia quando ela é fundada no mérito, no valor da competição e da compaixão. Acredito na solidariedade, na autoridade, desde que legítima evidentemente. Sob todos os aspetos, a autoridade intelectual também tem de ser legítima assim como a política.

Portanto, descobri-me à medida que fui lendo vários autores e descobri que casa mais com o meu feitio um certo conservadorismo e um certo "direitismo”. Não tenho nenhuma atração pelas visões despóticas nem revolucionárias. Sou gradualista, revejo-me talvez no Rodrigo da Fonseca, que deve ser um dos poucos liberais que existiu em Portugal, sendo um conservador.

Foram as leituras, basicamente, e as pessoas que me levaram até a essas leituras que me fizeram mudar e à minha própria cabeça.

A última pergunta é muito interessante. Bom, ser de direita conservadora em Portugal é uma pessoa sujeitar-se a ser insultada, mas isso é também algo a que as pessoas se habituam. Nunca fui a um Facebook, nem sei o que é nem onde fica e o Twitter muito menos.

[RISOS, APLAUSOS]

Sei o nome porque oiço toda a gente falar disso e falam imenso, dizem que falaram pelo Facebook, não sei. O meu contacto com as redes sociais limita-se aos comentários que vêm no fim dos artigos do jornal online Observador. De vez em quando leio alguns de revés e os insultos não variam muito, andam sempre mais ou menos à volta do mesmo. Mas sei que uma pessoa que se assume como de Direita é uma pessoa bastante isolada.

Queria dizer só o seguinte: reparem que Portugal viveu sempre ou à esquerda ou à direita. Durante o séc. XIX e a Monarquia Constitucional a elite portuguesa, por razões que não vou agora explicar, nomeadamente a elite política portuguesa, era liberal, jacobina, anticlerical e não tinha o mais leve vestígio de cultura dinástica. Era monárquica, porque enfim, sempre era como dizia o Oliveira Martins foi, ainda assim, a única instituição que escapou ao vendaval da revolução do Mouzinho da Silveira e de D. Pedro IV de 1832 a 1834. Não havia direito, ninguém se dizia conservador.

Fiz uma busca online no Parlamento, no debate da Câmara dos Pares pelo Partido conservador, ou Conservadorismo e não se encontra nada. Nem na Câmara dos Pares, esses pelo contrário até são mais avançados.

Depois, na República só havia licença para ser jacobino, ai de quem fosse liberal, ai de quem fosse de Direita, ou católico, por aí fora.

Durante o Salazarismo só havia licença para ser salazarista. Depois do Salazar, só há licença para ser socialista.

[APLAUSOS]

Não encontramos um equilíbrio. Já lá vão 200 anos que andamos à procura dele. Isto tem a ver, acho eu e vou dar umas linhas gerais só para ficarem a saber e procurarem se quiserem, com o facto de que todas estas transições do antigo regime, da Monarquia Absoluta, para o Liberalismo ou para a Monarquia Constitucional, para a República, para o Estado Novo, para o 25 de Abril e para a Democracia, foram sempre transições violentas de que os vencidos saíram completamente ilegitimados e sem nenhuma hipótese de estabelecer qualquer diálogo com esses vencidos.

Reparem que na Constituição absurda de 1976, felizmente já melhorada pelas revisões de 86 ou 87, as ideias fascistas e totalitárias são proibidas mas as ideias comunistas que são igualmente totalitárias não são proibidas.

O Partido Comunista goza de uma tolerância que apenas explora a democracia sem nunca a deixar de considerar desprezível, burguesa, injusta e por aí fora, achando sempre que o mundo só será melhor quando esta democracia burguesa for varrida da face da Terra. Tratamo-los com todo o respeito, mas o inverso não verdadeiro. Portanto, estamos na época histórica da Esquerda. Centro-esquerda já parece mal, centro-direita parece pior, direita péssimo.

[APLAUSOS]

 
Dep.Carlos Coelho

Muito bem. Segundo bloco de perguntas: Iva Carla Meireles, do Grupo Castanho, Luís Rebelo, do Grupo Roxo, e Ana Ramos dos Santos, do Grupo Verde.

 
Iva Carla Meireles

Muito boa noite a todos. Gostaria de aproveitar este momento para agradecer a todos que organizaram a Universidade de Verão, dizendo que foi excelente, uma semana cinco estrelas.

[APLAUSOS]

Aproveitava também para agradecer ao nosso conselheiro por nos ter aturado.

[APLAUSOS]

Agora vou fazer a minha pergunta: Professora Maria de Fátima Bonifácio, dada a sua experiência investigativa, o Grupo Castanho gostaria de saber qual foi a figura histórica sobre a qual mais gostou de escrever e por quê?
 
Luis Rebelo

Muito boa noite, senhora Professora. Crê que corremos o risco de ver a História repetir-se, caso o Dr. António Costa ganhe as eleições?

[APLAUSOS]

 
Ana Ramos dos Santos

Boa noite, senhora Professora, gostaria de voltar ao tema que acabou de abordar sobre a Esquerda. Escreveu, recentemente, no jornal Observador e acabou de comentar agora que em Portugal só se tem licença para se ser de Esquerda.

Gostava de saber como é que explica isto como historiadora, já explicou um pouco, mas podia ser que pudesse aprofundar um bocadinho mais.

Gostava também de lhe perguntar porque é que o patriotismo só pertence aos comunistas? Jerónimo de Sousa gosta muito de mencionar "patriotismo de Esquerda”, porque é que nós de Direita não podemos ser patrióticos?

[APLAUSOS]

 
Maria de Fátima Bonifácio

A figura histórica sobre a qual gostei mais de escrever, das figuras que tenho mais apreço do séc. XIX são Rodrigo da Fonseca, Fontes, Palmela e o Rei D. Carlos. Palmela, Rodrigo e Fontes deviam ser os únicos verdadeiros liberais. Rodrigo, nesse aspeto, é mesmo modular. Li milhares de páginas de debates na Câmara dos Deputados onde ele esteve até 1848, depois passou a Câmara dos Pares.

Quer na Câmara dos Deputados, que na Câmara dos Pares, foi um praticante sem exceção praticamente de uma enorme tolerância, de um enorme respeito pelo adversário, que não perdia a contenção nem quando era agredido e muito pelas bancadas da oposição. Era um homem de facto admirável, coerentíssimo, nasceu burguês, rejeitou um título que a D. Maria II lhe queria dar de Conde, fez o filho jurar que também não aceitava título nenhum e, segundo dizem, quando morreu disse estas palavras: "nasci entre brutos, vivi entre brutos e morro entre brutos”. É apócrifo, mas é significativo que se diga que Rodrigo disse isto.

Gostei de escrever, embora tecnicamente tivesse sido muito difícil, porque ele não deixou nada escrito, apenas muito falou em milhares de horas.

De Palmela gostei porque como aristocrata foi o único aristocrata português que não era paroquial e provinciano, e que tinha mundo, era cultíssimo e, portanto, destacava-se e contrastava totalmente com a generalidade da aristocracia de corte portuguesa.

Quanto à segunda pergunta, sobre o risco de com Costa se repetir, não sei se o repetir refere-se à vinda da Troika e a bancarrota. Acho que posso responder melhor se me explicar melhor a que risco se refere.

 
Luis Rebelo

Sim, sim, é a situação da Troika.

[RISOS, APLAUSOS]

 
Maria de Fátima Bonifácio

O que penso, mas repare que é um palpite, quero dizer, é um bocadinho mais que isso, é aquilo de que estou convencida: se António Costa ganhasse as eleições com maioria absoluta e podemos ter a certeza que não a ganha, e vamos ver se sequer ganha com maioria relativa, mas se ganhasse não tenho dúvidas que daqui a três anos estávamos outra vez com a Troika em Portugal.

[APLAUSOS]

Mas há outra coisa que se repetirá com António Costa, quer ele tenha maioria absoluta - que não terá -, ou a maioria relativa. É que se ele conseguir governar e fazer alguma coisa do que nós conseguimos perceber que ele quer fazer, há algo que já percebi embora ele próprio não consiga passar a mensagem, porque passa muitas e depois tem de as explicar, e depois já não sabemos qual é a explicação certa nem qual é que vale.

[APLAUSOS]

"Não foi a de segunda, foi a de quinta; não, afinal foi a de sábado”, é uma confusão. Mas há uma coisa que acho que se acaba por perceber: António Costa quer prolongar e fazer reviver um modelo de desenvolvimento que nos tem condenado e que nos trouxe em última análise até aqui. Baseando-se na ressurreição de 1001 pequenas empresas - cafés, mercearias, com o tio, com a cunhada, com o emigrado, etc. -, que abrem em cada canto mas não acrescentam valor nenhum, não servem para nada e tudo isso está condenadíssimo.

Faz crescer o mercado interno e, portanto, transformar o poder de compra dos portugueses e a revivescência da pequenina empresa que não tem interesse nenhum do ponto do progresso económico.

Se ele nos levar por esse caminho, que é o que ele anuncia, penso que estamos muito mal arranjados e, mais tarde ou mais cedo, até talvez não leve dois ou três anos, batemos outra vez com a cabeça na parede, fatalmente.

[APLAUSOS]

Às vezes tenho uma maneira de falar que parece que não tenho sentimentos, mas eu tenho sentimentos como toda a gente, simplesmente não tenho necessidade nenhuma de me exibir.

Compreendo, sinto e lamento profundamente os custos humanos que tem a transformação de Portugal, mas é uma transformação viável, não é uma coisa lunática. A transformação de Portugal, da estrutura produtiva portuguesa, de maneira a que não dependamos do exterior como dependemos, no sentido em que essa dependência - não por motivos patrióticos, a isso já lá vou - traduz-se num défice enorme da balança comercial.

Aliás, já se notou desde que há um bocadinho mais de dinheiro e vejo mais carros na rua, mais gente nas lojas e as importações já dispararam. Portanto, fazer crescer o país com base em aumento da procura interna, que significa fatalmente aumento das importações e na revivescência da pequena empresa que não representa valor, não temos futuro.

Por último, o patriotismo, esta é a questão mais complicada. Isto não é um juízo de valor, é uma constatação de facto: os comunistas não têm patriotismo no sentido em que nós temos. Peço desculpa por usar este plural talvez um pouco abusivo, mas, enfim, talvez não seja.

Patriotismo para os comunistas foi - e será até que ao dia em que o comunismo morrer como ideologia - colocar o nosso país ou outro qualquer ao serviço do triunfo da revolução proletária e do internacionalismo proletário. É isso que eles consideram ser patriótico. Ser patriótico para eles, reparem que vos dou um exemplo, é não querermos a Europa.

O PC nunca quis a Europa. Aliás, nem sei se votou na adesão da Europa. Sempre foi contra a adesão de Portugal à Europa. Por quê? Por patriotismo.

Não. Porque a Europa é o símbolo do capital e, portanto, o inimigo número um ou número dois da União Soviética.

O que eles gostavam era ter aqui uma espécie de Cuba ibérica peninsular, isso é que era o ideal.

Portanto, o patriotismo deles é como a liberdade. Os comunistas lutaram pela liberdade antes do 25 de Abril. Tenho muito respeito por isso, mas não entro em transe, porque eles lutaram pela liberdade deles, não lutaram nem tencionavam lutar pela liberdade de nós todos.

Era uma liberdade muito seletivo. Lutaram sim e alguns, poucos, morreram sim, pela liberdade dos comunistas, não pela liberdade dos portugueses em geral.

[APLAUSOS]

 
Dep.Carlos Coelho

Senhora Professora, nós temos a tradição na Universidade de Verão, por uma questão de cortesia, de dar a última palavra ao nosso convidado, neste caso à nossa convidada.

Não posso, portanto, utilizar mais uma vez este microfone, esta é a última vez.

Por isso, esta é a altura para primeiro agradecer à Professora Maria de Fátima Bonifácio o facto de ter estado connosco, ter respondido às nossas perguntas e ainda responder às perguntas desta última ronda.

E pedir-vos ainda um último favor: sei que estamos no final da semana e que já estamos todos um bocadinho cansados, mas amanhã na sala de baixo às 10h00 temos a sessão de avaliação. Se começarem mesmo às 10h00 estarão prontos em cerca de 45 minutos e depois têm de arrumar os vossos quartos.

Temos uma alteração no nosso programa: o Primeiro-Ministro tem um problema de agenda e tem de sair mais cedo de Castelo de Vide, o que significa que vamos ter de começar a sessão de encerramento às 11h30.

A sessão de encerramento vai ser aqui em cima no cineteatro, ao lado mesmo da GNR. Gostaria que chegassem às 11h20. Vamos ter a organização a reservar os lugares da frente para vocês, porque a sessão de encerramento é vossa, é da Universidade de Verão 2015. Mas quando está o Presidente do partido e Primeiro-Ministro há sempre muita gente que quer estar e, portanto, será mais fácil nós gerirmos a vossa prioridade se chegarem um bocadinho antes da hora, do que estarmos com muita gente a olhar para os lugares vazios a dizer que se quer sentar.

Portanto, agradecia que chegassem às 11h20 para podermos começar a sessão exatamente às 11h30.

Com estes apelos de última hora, dou a palavra para a última ronda, reiterando os agradecimentos à nossa convidada, Professora Maria de Fátima Bonifácio. Os últimos oradores dos quatro Grupos que ainda não fizeram perguntas: Pedro Tiago Ribeiro do Grupo Encarnado, Pedro Marcelino do Grupo Cinzento, Gonçalo Bento do Grupo Bege e Bernardo Barros Chitas do Grupo Rosa.
 
Pedro Tiago Ribeiro

Boa noite, Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Bonifácio. Apesar do seu vasto currículo, não podemos deixar de a felicitar por no ano passado ter recebido o Prémio Grémio Literário; deixa-nos orgulhosos.

Professora, dada a conjuntura socioeconómica do Mundo, acredita que hoje, no séc. XXI, a sociedade aberta descrita por Karl Popper tem novos inimigos? Acredita que ainda faz sentido discutir as crises das sociedades pluralistas, ou este é um debate passado?

 
Pedro Marcelino

Boa noite, Dr.ª Maria de Fátima. Todos nós sabemos da situação que se passa na Grécia e de que há políticos que pensam que as dívidas não se pagam, gerem-se.

A minha questão vai no sentido de compreender se considera que existe um ideal de culpa entre credor e pagador que se estabelece hoje em dia, que leva a uma tirania da dívida, e se isto é novo na História.

Obrigado.

 
Gonçalo Bento

Boa noite, a todas e a todos os presentes, em especial à nossa convidada. Professora, não sei como é a realidade em Lisboa, mas em Coimbra onde eu estudo, infelizmente a unidade orgânica com taxa de empregabilidade mais baixa é a Faculdade de Letras. Áreas como História, Filosofia e Línguas apresentam graves taxas de empregabilidade.

Na sua opinião, o que se passa com esta área da Ciência em Portugal e qual será o futuro destes alunos?

Obrigado.

 
Bernardo Barros Chitas

Boa noite, Professora. Há uma situação que acho que preocupa a todos. Tivemos os atentados em embaixadas americanas, depois tivemos o 11 de Setembro, os atentados em Londres, o 11 de Março em Atocha e agora temos o Estado Islâmico.

Com base na sua experiência de historiadora, julga que o terrorismo e a morte de civis é um novo tipo de guerra que veio para ficar?

Muito obrigado.

 
Maria de Fátima Bonifácio

Muito bem. Quero dizer, mais ou menos, pois vamos ver como é que me saio.

Quando fala na crise das sociedades pluralistas está a falar da crise na democracia? É isso. Já escrevi sobre isso. Estou só a ver se consigo dizer em poucas palavras aquilo que escrevi em muitas páginas.

[RISOS, APLAUSOS]

Acho que há uma crise da democracia porque a democracia acabou a partir dos anos 50-60 do séc. XX e gradualmente acabou por se identificar com bem-estar, com abundância, com consumo, com dinheiro - para chamarmos as coisas pelos nomes.

Aquilo que se verifica hoje é que a democracia tem coincidido com isso, mas não é isso. A democracia é um sistema político do qual se espera com certeza progresso económico e social, mas na qual se espera uma coisa que é sempre muito esquecida, muito pouco valorizada, que é a liberdade.

Ter liberdade desde a liberdade económica e empresarial à liberdade de falar, de pensar, de passear, de não termos passaportes interiores, de já não precisarmos documentos para passear na Europa, de ler o que queremos e ver o que queremos. Também a liberdade nas redes sociais, essas coisas do Facebook e Twitter.

A democracia é um sistema muito defeituoso. Churchill costumava dizer que era o menos péssimo de todos os que se conheciam.

Nesta altura da minha vida - e termino com esta nota um pouco melancólica mas absolutamente sincera -, estou convencida pelo que observo, oiço e leio que a generalidade das pessoas dá muito pouca importância à liberdade.

Compreendo isso, porque de certa maneira a liberdade ainda é uma espécie de luxo para quem tem um mínimo de cultura, tempo para o mínimo de lazer e o mínimo de dinheiro para ter férias, ter tempo para pensar, ter dinheiro para comprar livros e lê-los.

Para ir passear ao centro comercial aos domingos não é preciso liberdade nenhuma, nem para andar na rua, pois elas são livres para se passear, mas a liberdade é preciso para outras coisas para as quais só um número reduzido é que tem.

É talvez a maior desilusão da minha vida, mas tenho de encarar a realidade e a realidade que vejo é que de facto a liberdade é algo com pouca capacidade de atração e de entusiasmo.

Não é por acaso que há tão poucos intelectuais genuinamente liberais, como Raymond Aron, Berlin e Popper evidentemente. Mas são muito poucos, pois os intelectuais são quase sempre de Esquerda. O Liberalismo não tem grande coisa para oferecer: não promete criar homens novos, transformar o Mundo, sermos todos muito bons; não, porque nós havemos de ser como sempre fomos.

Acho que os gregos já disseram tudo o que havia a dizer sobre a natureza humana.

Portanto: a democracia está em crise? Está. Está, porque ela é valorizada pelo bem-estar que proporciona e não pela liberdade que confere.

[APLAUSOS]

A pergunta sobre a Grécia, acho que também não compreendi muito bem, falou na tirania da dívida e eu devo dizer que sei muito pouco de História grega, a não ser da Grécia Antiga. Mas sei que a Grécia foi criada pelas grandes potências em 1920-1921. Criada em 1920, mas tiveram que ir buscar um rei à Bavieira, porque não tinham família real.

A Grécia viveu quase todo o séc. XIX de bancarrota em bancarrota e quem acabava por pagar eram as tais potências que eram a Prússia, a Áustria, a Rússia, a França e a Inglaterra. Eram as cinco grandes potências que mandaram no Mundo durante o séc. XIX e foram elas também que com o Império Otomano cozinharam a independência da Grécia.

Portanto, a Grécia depois achava que já que os tinham feito independentes também lhe tinham de pagar as contas. Logo, isto é uma coisa que vem do séc. XIX, já muito antiga.

A maçada é que parece que agora as dívidas estão a atingir somas um bocadinho incomportáveis e que há vários eleitorados europeus que também já estão um bocado maçados de financiar aquilo que é visto como falta de esforço, disciplina, capacidade de trabalho e abnegação. Não sei se é verdade ou se não, só estou a dizer que é visto assim.

Por isso, neste momento não sei o que é que a Grécia vai dar. Sei que Tsipras está a tentar construir uma autocracia sua, começando logo com as eleições que é para correr com as tropas do Syriza que são seus adversários, mas honestamente não sei o que vai acontecer.

Agora, que já era assim há dois séculos, já era.

A terceira pergunta, a empregabilidade. Sou de um tempo em que li um autor, dos que muito me influenciaram, chamado Allan Bloom e que morreu ainda antes de 2000. Ele era um grande professor de Harvard, não era um filósofo mas um humanista classicista, dava Humanidades - História Grega, Pensamento Grego, Pensamento Latino. Escreveu um grande livro que recomendo a todos que leiam, está traduzido em todas as línguas, que se chama "The Closing of the American Mind”.

Esse livro termina com a seguinte frase: "Se a Universidade não serve para aprender a ler Virgílio em latim não vejo para que é que possa servir.”

Ora, estou muito mal colocada para responder à sua pergunta. Sou uma pessoa velha, antiquada e já não vou mudar. Horroriza-me a instrumentalização da Universidade da maneira como está a ser feita e horroriza-me que o ensino universitário seja praticamente todo focalizado numa saída para o mercado.

Agora, isto não é uma fatalidade, porque repare numa coisa: Gordon Brown foi Primeiro-Ministro da Inglaterra, antes disso Ministro das Finanças, durante quatro anos na primeira legislatura de Tony Blair e era doutorado em História. Foi Ministro das Finanças e Primeiro-Ministro.

O que me parece é que em Portugal perdeu-se completamente a noção de que a cultura e a cultura humanista habilita - não perguntem como, mas habilita - uma pessoa a lidar com problemas com uma agilidade que uma cultura muito afunilada, muito especializada só para aquele centímetro quadrado, acho que esse tipo de cultura muito instrumentalizada não funciona.

Só mais um reparo: não está em mim mudar, sei que é uma tendência e que a tendência não vai ser contrariada, pelo contrário. Então quando os politécnicos conseguirem transformarem-se em universidades podemos mesmo dizer adeus à universidade e mais vale ir para o politécnico.

Aliás, não percebo esse afã, porque a universidade está tão desqualificada e os títulos académicos estão tão depreciados que não vejo sinceramente qual é o empenho em obter um.

Finalmente, a empregabilidade de pessoas mesmo saídas daquilo que se chama de cursos práticos também é relativamente reduzida, por uma razão muito simples: a nossa economia não precisa de mais doutorados, não absorve, não precisa deles.

A nossa sofisticação produtiva, técnica e económica não requere a aptidão de um doutorado, ou requere só de alguns, poucos, doutorados comparado com a quantidade que sai todos os anos das universidades.

Como é que se resolve este problema? Impedindo as pessoas de se doutorarem? Não. Agora como é que se resolve, francamente não sei.

Mas, reparem - e esta é provavelmente a última coisa que vou dizer esta noite: o mundo está cheio de problemas que não têm solução. Isso também é uma crença que herdámos do Iluminismo, de que tudo se há-de conseguir harmonizar e resolver. Não. A Palestina e Israel não tem solução.

O Harold Bloom quando esteve em Portugal aqui há uns anos houve uma jornalista que lhe perguntou, ele sendo um grande intelectual judeu, o que achava sobre o problema de Israel. Ele olhou para ela e disse que daqui a 500 anos talvez esteja resolvido.

Sobre o Al Qaeda e o EI, não, mas em termos de forma já houve períodos de grande ferocidade coletiva humana com os Hunos, os Átilas, os Genghis Khans, nos tempos recuados da baixa Idade Média, no fim do Império Romano e depois até ao século XIII e XIV.

Há um passado antigo de crueldade, ferocidade e barbaridade imenso. Agora, o que não há é os meios sofisticados, quer de comunicação, quer de agressão, que existem hoje. E, mais, são muito mais globais, hoje tornaram-se em fenómenos globais.

Portanto, sob esse aspeto também diverge como é evidente dos muitos movimentos bárbaros e cruéis de massas que existiram na Antiguidade.

Penso que seja um fenómeno novo na História. Se veio para ficar? Não sei.

[APLAUSOS]

Queria aproveitar para agradecer a todos a atenção que me prestaram que foi muito gratificante para mim e espero que não tenham demasiado esforço, mas o resultado foi fantástico.

Muito obrigada.

[APLAUSOS]

FIM