ACTAS  
 
8/26/2015
Jantar-Conferência com o Doutor Henrique Leitão
 
Dep.Carlos Coelho

Se repararem têm em volta dos vossos guardanapos uma cinta roxa com o menu do jantar no verso. Foi uma delicadeza do hotel e agradeço ao seu diretor a circunstância de, já há vários anos, por iniciativa deles, se terem adaptado à lógica, às regras, de funcionamento da Universidade de Verão e de nos fazerem a delicadeza de porem a cinta com a ementa da cor do grupo que em cada noite recebe os convidados para os jantares conferência na nossa Universidade de Verão. É mais uma das simpatias que ficamos a dever ao Sr. Jacinto e à sua extraordinária equipa que nos recebe todos os anos aqui no hotel Sol e Serra.

[APLAUSOS]

E vamos dar início ao nosso momento cultural com a leitura de dois poemas dos grupos Azul e Laranja. O grupo Azul, pela voz de Fernando Melo, vai ler um poema de Sebastião da Gama chamado "Pelo sonho é que vamos”. E a justificação é: como jovens somos seres sonhadores na procura de novos desafios, novos conhecimentos e novas experiências. Não interessa a imediata busca dos frutos, basta deixar que em nós cresça a esperança, a fé e a dádiva de que é possível concretizar o sonho que nos anima. Partindo materializamos esse mesmo sonho.

Depois, pela voz de Ana Catarina Neves, do grupo Laranja, vamos ouvir o poema "A uma árvore” de Francisco Bugalho. O grupo Laranja diz-nos que Francisco Bugalho, poeta e lavrador, exerceu durante anos também as funções de Conservador do Registo Predial de Castelo de Vide. Natural do Porto, adotou como suas a terra e as gentes desta vila, em que viveu a maior parte da sua vida. É considerado o poeta pintor da natureza, terá vivido na perspetiva da eternidade. Fez parte do movimento literário modernista, fazendo parte da revista "Presença”. Este poema - "A uma árvore” - celebra o triunfo da vida, uma árvore que o poeta plantou, acompanha o ritmo das estações, regenera-se ciclicamente, ouve os sonhos dos filhos do poeta e eterniza-o. Vamos portanto ficar com estes poemas e as vozes de Fernando Melo e Ana Catarina Neves.

[ACOMPANHAMENTO MUSICAL]

Pelo sonho é que vamos,

comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?

Haja ou não haja frutos,

pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.

Basta a esperança naquilo

que talvez não teremos.

Basta que a alma demos,

com a mesma alegria,

ao que desconhecemos

e ao que é do dia a dia.

Chegamos? Não chegamos?

– Partimos. Vamos. Somos.

[APLAUSOS]

[ACOMPANHAMENTO MUSICAL]

A Uma Árvore

Árvore

Quando eu morrer hás-de ficar.

Hás-de ver o passar doutras Estações.

Hás-de ouvir as canções

De uns outros ninhos, noutras Primaveras.

Junto de ti, meu filho há-de sonhar

Minhas antigas, fúlgidas quimeras.

Árvore

Quando eu morrer, hás-de falar

De mim, que te plantei.

E, em cada ramo novo que brotar,

Serás um gesto meu a perdurar:

- Por ti, não morrerei …

[APLAUSOS]

 

Boa noite. Disse o Dr. Pinto Balsemão, presidente do júri do Prémio Pessoa, que o nosso convidado é um verdadeiro cultor da interdisciplinaridade. É essa interdisciplinaridade que nos deve inspirar. Enquanto jovens vivemos um período de acrescida competitividade no mercado de trabalho, na busca de uma posição estável na nossa carreira profissional, e por outro lado vivemos um período em que o conhecimento não pode ser apenas em profundidade, o conhecimento deve ser também em horizontalidade. Por exemplo, só através do domínio de áreas científicas tão díspares como o Direito, a Economia, as Tecnologias ou a Saúde, podemos contribuir construtivamente para a resolução dos problemas da nossa sociedade. Assim, proponho que brindemos ao nosso convidado, o Doutor Henrique Leitão, galardoado em 2014 com o Prémio Pessoa. Um brinde ao Doutor Henrique Leitão.

[APLAUSOS]

 
Dep.Carlos Coelho

Senhor Professor, senhor Presidente da Câmara, senhores Deputados, minhas Senhoras e meus Senhores, como foi dito, e bem, o nosso convidado de hoje foi galardoado com o Prémio Pessoa. O Prof. Henrique Leitão, foi reconhecido pelo júri como a personalidade em torno da qual se constitui uma escola de pensamento neste domínio científico. E foi sublinhado o facto de ter dado a conhecer ao grande público a importância crítica que a Península Ibérica teve para o desenvolvimento científico e o progresso civilizacional. Disse o Presidente da República que se tratava de uma carreira de exceção e um marco na História da ciência em Portugal.

O nosso convidado de hoje é doutorado, é professor, é galardoado, é autor de numerosas obras, tem como hobby a leitura, diz que o hobby não difere muito do trabalho, também gosta de estudar línguas, a comida preferida é a preparada pela mulher, o animal preferido é o leitão, o livro que sugere é "Os Maias”, o filme que nos sugere "The Thin Red Line” ("A Barreira Invisível”) e a qualidade pessoal que aprecia é a lealdade.

Eu até hoje não conhecia pessoalmente o Prof. Henrique Leitão, não tive esse privilégio, e não sei se ele é ou não um homem leal, mas não tenho nenhuma razão para supor o contrário. Mas sei uma coisa: é que ele é um homem modesto. Ele não fez questão de sublinhar que tinha sido eleito como membro da Academia Internacional para a História das Ciências, e que isso não ocorria com um historiador português nos últimos 100 anos. E quando lhe foi atribuído o Prémio Pessoa a reação dele foi a seguinte: é uma grande surpresa, uma grande alegria, mas é também uma grande responsabilidade. Já viu a lista dos laureados? Estar naquela companhia, é preciso respirar fundo.

Pois bem, nós é que temos de respirar fundo, pelo convidado que temos hoje. E eu tenho que respirar fundo porque tenho o privilégio de lhe fazer a primeira pergunta.

Senhor Professor, gostaria de lhe fazer talvez duas perguntas para o nosso pontapé de saída de conversa. A primeira tem a ver consigo. Não é todos os dias que recebemos alguém com o seu perfil e com o seu currículo, e acho que seria interessante para a Universidade de Verão perceber um bocadinho o que é isto de um historiador de ciência. O que faz, porque acha que isso é relevante, para lá do reconhecimento nacional e internacional que já teve. E segundo, porque é também membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, que é um órgão consultivo do Governo, presidido pelo Primeiro-Ministro, pedia-lhe para referir um pouco o valor estratégico da ciência em Portugal. Neste momento, na Europa, há pessoas que defendem que os incentivos europeus devem ser dados apenas a instituições de grande excelência e tentando concentrar essa excelência em poucos países, assim como quem diz que só há ciência a sério na Alemanha, no Reino Unido e em poucos mais países, levando ao desinvestimento em polos científicos nos países mais pequenos, nos países mais periféricos. Creio que concordará comigo que a ciência tem um valor estratégico para todos e que não há país que se possa furtar a esse investimento nos recursos humanos. Qual é a sua opinião sobre isso, era também algo que gostaríamos que partilhasse connosco.

Minhas senhoras e meus senhores, no segundo Jantar Conferência da Universidade de Verão 2015, o galardoado com o Prémio Pessoa, Professor Henrique Leitão.

[APLAUSOS]

 
Henrique Leitão

Muito boa noite a todos. Antes de mais nada, é obviamente uma grande honra e um grande gosto estar aqui. Acedi logo ao convite e queria começar por agradecer ao Dep. Carlos Coelho, a todos os membros da organização, ao Sr. Presidente da Câmara, todas as pessoas responsáveis por esta Universidade de Verão, o facto de me terem convidado e agora se disporem a ouvir-me durante uns minutos.

Eu sei que quem fala nestas circunstâncias, a missão número um é não estragar o jantar. E eu vou tentar ir rapidamente à pergunta, às duas, se me esquecer depois recordem-me. Mas se começasse por explicar o que faço, estragaria decerto o jantar. Mas talvez valha a pena, correndo esse risco, começar um bocadinho por aí. O meu trabalho é sobre equações matemáticas e modelos astronómicos e teorias científicas do século XVI, do século XV e XVI. São temas que já no séc. XV e XVI eram obscuros que só alguns daqueles cientistas daquele período sabiam, se interessavam e estudavam. E passados cinco séculos são ainda mais obscuros, são matérias arcanas, recônditas, muito complicadas, estranhas.

Qual é o interesse de fazer isto? Que interesse é que pode ter para os presentes, agora, e para a sociedade como um todo, que uma pessoa se dedique a este tipo de tarefas, de tão obscuras e estranhas? Eu penso que ninguém nega que há um interesse intelectual e, de certa maneira, há uma primeira consideração que nós podemos fazer logo, é a de notar que vivemos num país que tem parâmetros de desenvolvimento e civilização tais, que me paga a mim para fazer este tipo de trabalho. São muito poucos os países do mundo onde isto acontece. São muito poucos os países do mudo onde há uma espécie de acordo social, um pacto social e instituições e uma cultura que achem normal que uma pessoa viva com dinheiros públicos – eu sou um funcionário da Universidade do Estado – para estudar equações do século XVI. Isto marca um grau de civilização e de desenvolvimento que o nosso país tem que nós devemos acarinhar. Não há muitos sítios - no mundo ocidental, por certo, há muitos outros sítios -, mas pelo mundo inteiro eu não poderia ter feito esta carreira.

Mas que interesse é que isto pode ter para as pessoas que estão aqui? O interesse que tem, sobretudo, é porque tem que ver com ciência. E o problema de que eu gostaria mais de falar aqui é que sempre que nós falamos de ciência – e o tema é contínuo, basta abrir um jornal. Não há jornal nenhum de qualquer dia que não tenha notícias com alguma conexão científica. Mas o interesse principal dos assuntos científicos é que quando se fala de ciência nunca se está a falar só de ciência. A nossa imagem e a imagem do que é um país moderno foi construída a partir de várias ideias. Tem a ver com certos sistemas políticos, tem a ver com um certo nível económico, tem a ver com um conjunto de liberdades individuais, mas no coração da ideia de um país moderno e desenvolvido está, de uma maneira que não se consegue tirar, a ciência.

Por isso, de cada vez que nós falamos de ciência, nós estamos, quer o reconheçamos quer não, a trazer à baila noções como desenvolvimento, progresso, liberdade intelectual, ambiente de discussão criativa, criação…. Por isso, não há nenhum tema científico nas sociedades que não agregue em torno de si todas estas ideias. E isto quer dizer que quando alguém, como eu, está a estudar estas estranhas equações, e estes modelos e estas teorias científicas de épocas passadas, com isto não estou só a reconstruir processos e ideias científicas de outros tempos, mas estou - ou pelo menos assim espero – a ajudar a construir uma ideia mais correta de quem fomos. E a ideia de quem fomos, como é óbvio, determina de maneira profunda a ideia que temos, hoje, de nós próprios.

A História, como é evidente, afeta muito o presente. E, portanto, se houvesse um capítulo, ou um tema, ou um conjunto de questões, na História portuguesa que não estivessem bem clarificados, mas que sucedesse que em torno deles se jogassem questões tão profundas e tão importantes como as de modernização, de desenvolvimento, de progresso… Se se desse que, nestas questões, tão importantes, o estudo não estava suficientemente desenvolvido, percebem o problema que temos em frente. E com isto eu faço, não tanto uma defesa do meu trabalho, mas da disciplina que pratico.

O interesse da História da Ciência é precisamente este. É uma área um bocadinho estranha, é uma forma muito peculiar de História, não é uma História como a tradicional, é uma História peculiar, mas tem esta caraterística de facto estranha. É que, embora os temas sejam muito arcanos e às vezes técnicos, contaminam toda a nossa imagem histórica e, portanto, toda a nossa imagem do país. É ou não é completamente diferente dizer que se vem de um país onde não houve nenhuma prática cientifica, houve um desinteresse total por estas questões, ou dizer que se vem de um país onde houve um contínuo interesse por assuntos científicos, que teve um contínuo grupo de praticantes destas disciplinas, alguns deles notáveis, e contributos e novidades que influenciaram outros países (como sempre sucede na ciência porque é iminentemente internacional).

Estas duas imagens são, para o presente, duas imagens completamente diferentes do país. E o que afetam? Afetam não só a imagem que temos de nós próprios, e isto é muito importante, mas afetam - e neste ponto toco já na segunda pergunta – afetam imenso a imagem que projetamos para fora. Seria uma pena que, se por um capítulo histórico tão importante como este, se tivessem dito coisas erradas, ou tivesse ainda mal explorado, mal estudado, o país projetasse para o exterior uma imagem completamente equivocada. Então, o trabalho que eu tento fazer – e os meus colegas, (como hoje, todos sabem, todo o trabalho de investigação é feito e tem a ver com equipas, habitualmente) – é precisamente o de clarificar estas questões. Nós trabalhamos com questões que são, técnicas e um pouco, distantes do discurso normal, mas com a plena consciência de que o que se diz sobre isto acaba por afetar muito mais.

E o que podemos dizer sobre a nossa própria história científica, sem transformar isto numa aula? Isto é um jantar-conferência! Eu como sou professor tenho deformação profissional e portanto transformo tudo em aulas. Se isto começar a parecer uma aula você levantem o guardanapo e avisem para eu saber que isto está a ficar parecido com uma aula. Não é uma aula…

Como sabem, todo o discurso sobre o passado científico português tem sido muito oscilante, digamos, tem sido um bocadinho extremado. É fácil encontrar visões que são muito miserabilistas, visões que são muito redutoras, que transmitem uma imagem completamente desinteressante do nosso passado científico. E também sabemos que há o outro extremo. Houve em épocas históricas portuguesas apropriações, por exemplo, políticas ou sociais, o que seja, que hiperbolizaram e que venderam uma imagem épica igualmente desajustada. E temos andado um pouco a oscilar.

O que é preciso é recuperar um tom certo para falar do nosso passado que seja ao mesmo tempo um tom justo para a realidade histórica e que nos permita olhar para o futuro descomplexadamente e para os nossos parceiros dos outros países descomplexadamente, trazendo a nossa própria História. A tarefa dos historiadores da ciência não é uma tarefa, digamos, de marketing, isto é, de descobrir este tom, é a tarefa de estudar a evidência histórica empírica, as teorias históricas, os dados, os factos, os elementos, os textos, os instrumentos, as instituições, as biografias, para que, com esse estudo, se possa depois construir uma imagem sobre o nosso passado que seja muito mais coerente, justa e verdadeira com o que sucedeu.

Felizmente, nos últimos anos tem havido muitos desenvolvimentos, penso que a situação está muito mais interessante, e há muitas pessoas a fazer um trabalho ótimo nesta área e eu penso que, pouco a pouco, aquilo que os especialistas têm andado a estudar, acabará por disseminar-se para a população, o que me parece urgente que aconteça. Porque me parece, penso que é fácil de perceber, que manter-se uma imagem demasiadamente negativa, um pouco triste, deprimida do nosso passado histórico, tem consequências diretas no presente. Por exemplo, vocacionalmente, em jovens que queiram fazer carreiras científicas.

Se uma pessoa vive numa sociedade em que sucessivamente lhe é dito que não houve passado histórico cientifico interessante, é muito pouco provável que esta pessoa venha a desenvolver interesse por atividades científicas. Pode suceder, mas é muito mais difícil. Enfim, considerações tão simples como estas e como outras. Ou seja, para chegar ao ponto. Embora a minha tarefa, a minha e dos meus colegas, seja só uma tarefa de história, este modo peculiar de fazer história, é preciso perceber porque, como o tema é ciência, e a ciência adquiriu esta importância tal nas sociedades, acaba por ter consequências que são até surpreendentes na imagem que formamos de nós próprios.

Alguns de vocês podem perguntar assim: então, mas o

que poderíamos dizer do nosso passado… enfim, quando chegarmos às nossas perguntas poderemos dizer. Mas, deixem-me só dar um exemplo pequeno para se perceber que há uma história por contar. Todas as pessoas que vivem em Portugal conhecem um objeto chamado esfera armilar. A esfera armilar está por todo o lado, todo o Manuelino tem esfera armilar. A esfera armilar está na bandeira de Portugal. O que é uma esfera armilar? Uma esfera armilar é um objeto científico, uma esfera armilar não é um globo, uma esfera armilar não é uma representação do mundo, uma esfera armilar é um objeto de ciência que a certa altura na História de Portugal, com o rei D. Manuel - depois os detalhes, se alguém se interessar… -, foi tomada como símbolo da representação do poder real, mas este símbolo, o que quer dizer, é o domínio do mundo com conhecimentos técnicos, a partir do domínio de uma certa técnica. E é este objeto científico, que se tornou ubíquo em Portugal, que está por todo o lado, que é um instrumento científico, e nós praticamente nem notamos.

Bastaria uma consideração tão simples como esta para se perceber que há uma história de interesse por atividades científicas, de carinho pelas práticas científicas, e de influência de técnicas e práticas científicas até na própria imagem do poder real, e portanto na imagem como um país se apresenta, para perceber que há muito que nós ainda não percebemos da nossa História, que não compreendemos e que é provavelmente muito mais interessante do que se pensava.

A historiografia internacional habitualmente atribui a ideia de que a expansão, na altura imperial, e o desenvolvimento tinham que ter uma base técnica, atribui esta ideia à Europa Central do séc. XVII, à Inglaterra e à Holanda do séc. XVII, mas temos dados evidentíssimos e claríssimos de que esta ideia existiu em Portugal, clarissimamente, no séc. XVI. É claro que nós sabemos perfeitamente que depois o objeto em si, objeto científico, porque é disso que se trata, depois foi investido de outra simbologia e hoje nós já nem notamos o que ele é. Mas aqui é que a tarefa do historiador de ciência pode ser importante, recordando às pessoas que cada vez que virem uma esfera armilar, que estão por todo o lado em Portugal, o que nós estamos a ver é um objeto de ciência.

Não tem por isso grande sentido dizer que este país não ligou à importância da ciência. O que é preciso é descobri-la e estudá-la com o rigor e o cuidado e, digamos, a exigência de profissionalismo e de standards académicos que o tema merce.

Então esta seria a primeira parte. As consequências disto são imensas, como dizia há pouco, porque a imagem que nós formamos de nós está muito dependente de elementos deste género, e a segunda, que está implícita na segunda observação e na pergunta do Dep. Carlos Coelho, porque a imagem que projetamos para fora está também muito determinada por isto.

Um país ou uma nação que projete para fora uma imagem de desinteresse pelas atividades científicas ou de desincentivo nos estudos científicos, este país corre, gravemente, este risco de que aqui se aludia de ser menorizado no panorama internacional e, no nosso caso, no panorama europeu. Portanto, quando falamos de ciência, e sem ter de falar dos detalhes do que faço, nós estamos a falar de assuntos que são muito importantes numa sociedade, muito importantes numa sociedade. Porque é que isto é importante agora para o presente? Porque é que precisamos de ter ciência hoje? Porque é que é absolutamente crucial que o interesse por atividades científicas e académicas ocupe na sociedade portuguesa um lugar prioritário, absolutamente crucial? Em primeira ordem de ideias, porque há um desenvolvimento intelectual, porque há, para dizer de maneira rápida, a possibilidade de descoberta, ou seja, para ter portugueses que participam naquela que é uma das maiores aventuras intelectuais em que a Humanidade esteve envolvida – o estudo da Natureza. Esta é a primeira razão, há uma razão puramente intelectual.

Mas há outras razões, como nós sabemos. O investimento e o cuidado com a ciência têm repercussões, por exemplo, na educação. A tentativa e o desejo e o estabelecimento de grupos, centros, ambientes de investigação acaba por ter efeitos em todos os processos educativos, como que puxando-os para cima. E, portanto, há consequências do cuidado pela ciência que se manifestam na educação. E o mesmo na tecnologia e, portanto, acaba por ter efeitos na economia, na indústria, na aplicação de desenvolvimentos tecnológicos, o que seja. Tudo isto eu sei que é mais ou menos bem sabido por todos. E isto é de extrema importância.

Mas eu gostava também que olhássemos para aspetos que são mais intangíveis e que às vezes não são tão comentados, mas que se alguns visitarem instituições científicas, o notarão logo. As instituições científicas são instituições muito peculiares, mas os países que têm práticas científicas maduras e bem sustentadas comungam muito de um conjunto de ideais que como que transbordam das instituições científicas. Ideais de que género?

Há um otimismo nas práticas científicas. Os cientistas, às vezes, até de uma maneira ingénua, têm um otimismo natural, têm uma convicção e transmitem uma convicção e uma certeza na capacidade de resolver problemas, na capacidade de avançar, na capacidade de não ficar determinados ou aprisionados por dificuldades do momento. A ciência gera naturalmente este tipo de coisas. Há como que um comungar nesta ideia absolutamente central de que a mente humana é capaz de resolver os problemas que se nos deparem. E isto é feito de um modo, como digo, otimista, de um modo positivo, de um modo alegre.

Há também outros aspetos: a ciência é, de certa maneira, uma atividade muito implacável porque não liga a raças, religiões, credos, sexo, opções políticas, futebolísticas, o que seja… A ciência introduz, enfim, nas instituições, e depois isto passa para as sociedades, como que uma espécie de pontos comuns de interesse pelos quais as pessoas se unem e diante dos quais as diferenças se esbatem. E por isso, as atividades científicas, e portanto uma cultura onde haja um tecido científico rico, é uma cultura que tem destes pontos, que acabam, deste modo indireto, por gerar mecanismos de convivência entre as pessoas porque estão unidas diante de certos objetivos comuns, e objetivos grandes, não é?

Ou seja, para além das considerações mais óbvias e imediatas, em torno desta atividade gera-se como que um estado de espírito que acaba por ter repercussões enormes nas sociedades. E os que aqui estão, se tiverem alguma vez na vida, no futuro, oportunidade de tomar cargos, decisões ou funções políticas, acho que é importante perceberem que há esta riqueza de retorno, de retorno nas atividades académicas de alto nível, todas elas, culturais de alto nível, mas certamente nas atividades científicas, para além daquelas mais óbvias.

Ou seja, e para terminar e passar às perguntas, o que é que eu queria dizer ainda mais? Se alguma coisa se pode aprender com a História, se alguma coisa os historiadores têm aprendido com a História – e alguma coisa às vezes se aprende com a História –é que a modernização científica foi um fenómeno que envolveu as sociedades como um todo.

Durante muitos anos havia como que um relato que descrevia o surgimento duma modernidade científica como um fenómeno apenas de elites culturais, intelectuais muito avançadas. E isto tem muito de verdade. Houve grandes cientistas em círculos académicos restritos que fizeram grandes contributos. Mas quando os historiadores de ciência começaram a examinar com mais atenção, por exemplo, os séculos XVI, XVII e XVIII, de grande desenvolvimento científico no mundo ocidental, começaram a notar que um dos fatores cruciais não era apenas o de em alguns estratos sociais ter havido novidades científicas, mas de ter havido mecanismos que influenciaram toda a sociedade. Isto é, de o tema científico ter perpassado, como um corte, de toda a sociedade, dos muito cultos, aos mediamente cultos, até aos poucos cultos, de todos os tipos de atividades.

Hoje em dia é claríssimo para os historiadores de ciência que o que diferenciou o mundo ocidental foi o facto de estes fenómenos de modernização terem sido fenómenos globais da sociedade. O que é que eu quero dizer com isto? Quero dizer que – e agora tomando isto como um ensinamento histórico – hoje é claro que o progresso científico de um país tem a ver, não só com a criação de grupos de investigação, de grandes centros, de universidades de alto nível e de grande excelência, e isso é absolutamente essencial, mas tem a ver com a estimulação de interesse científico a outras franjas da sociedade. Não estamos diante de uma ilusão, estamos diante de um fenómeno que tem como que uma base histórica a sustentá-lo e a sugeri-lo. E portanto, se podemos aprender alguma coisa com a História, uma das coisas que podemos aprender é isto. Podemos aprender que temos diante de nós um desafio que tem a ver não só com a constituição destas unidades, e grupos e centros de investigação muito especializados, mas tem a ver com uma participação da atividade científica por toda a sociedade.

Tudo isto são desafios enormes que nós temos pela frente. São desafios enormes e eu acho que, como o Dep. Carlos Coelho aludia há pouco, estamos numa altura muito importante em que, por razões várias de conjuntura larga no mundo inteiro, e certamente na Europa, os países pequenos têm que afirmar-se como tendo uma voz importante a dizer em todas as áreas e, nesta afirmação, a ciência joga um papel absolutamente incontornável. Eu ficaria por aqui.

[APLAUSOS]

 
Dep.Carlos Coelho

Muito bem, vamos entrar na fase de perguntas. Vamos para um primeiro bloco. Dou a palavra ao Hélder Quintas de Oliveira, do Grupo Laranja, e ao João Carlos Costa, do Grupo Castanho.

 
Hélder Quintas de Oliveira

Boa noite, Prof. Henrique Leitão. Por ocasião da entrega do Prémio Pessoa 2014 referiu que, e passo a citar: "a ciência, o modo como historicamente a ciência foi ou não praticada, afeta de maneira determinante a ideia de construção de modernidade, a imagem que um povo faz de si próprio e da sua História, bem como a imagem que projeta para fora”. Fim de citação. Posto isto, gostaríamos que desenvolvesse um pouco mais como é que a forma como fomos fazendo ciência ao longo do tempo se reflete na imagem que temos de Portugal e de nós enquanto povo.

 
João Carlos Costa

Boa noite, Prof. Doutor Henrique Leitão. Devo dizer-lhe, antes de mais, que é uma honra poder contar aqui com a sua presença, uma figura tão importante para a nossa cultura, que tanto contribuiu. Sabemos hoje, muito graças ao contributo de V. Exa., a relevância que a Península Ibérica, também como aqui já foi dito pelo Dep. Carlos Coelho, teve para o desenvolvimento científico e para o progresso civilizacional. A nossa questão prende-se com o seguinte: há atualmente condições políticas, económicas, sociais e culturais, quer a nível nacional quer a nível europeu, que favoreça o cultivo da ciência?

 
Henrique Leitão

Bom, acerca da primeira pergunta, e como viram, falei aqui dum tema que tinha falado na altura da entrega do prémio, desta projeção desta imagem do país, é fazer o exercício simples, o exercício simples de pensar o que é imaginar que somos cidadãos e habitantes dum país do qual não nasceu nenhum contributo visível para a ciência internacional, o que é que isto diz de nós, que forma, que imagem formamos nós do nosso passado, ao pensarmos e sabermos que somos continuadores, herdeiros, cidadãos de um país que, em momentos históricos precisos, e ao longo da sua História como um todo, se envolveu sempre em atividades científicas e teve contributos inovadores.

As duas imagens não diferem só nos aspetos científicos; as duas imagens diferem na imagem mental que se forma do valor de ideias tão importantes como desejo de progresso, liberdade intelectual, desenvolvimento, discussão intelectual. Estas ideias são todas arrastadas, são literalmente dois países quase diferentes, quando se clarifica ou não clarifica a questão científica.

Porque, como eu dizia, atrás de equações, atrás de teorias científicas, nós temos sempre, outras noções muito mais amplas, noções de modernidade (sobretudo somos muito sensíveis a esta noção de modernidade) que afetam imenso o modo como nós nos entendemos hoje.

Portanto, o ponto essencial que eu queria dizer, é que não é preciso ir aos detalhes técnicos, isso há os especialistas, explicar-nos-ão os detalhes técnicos e os contributos pontuais e podem explicar: "olhem este resultado foi pela primeira vez...” Se quiserem, este é o meu trabalho e dos meus colegas, se quiserem posso falar de alguns. Mas não é tanto os resultados individuais, é de repente uma pessoa poder olhar e perceber que tem atrás de si uma História, uma História onde este debate se realizou, um país que participou nesta construção da modernidade científica. Com a sua escala, com o seu tamanho, com as suas peculiaridades que não são iguais às de todos os outros.

Está muito em jogo nisto, insisto, está muito em jogo nisto. Todos os países, sabem do que eu acabei de dizer aqui, todas as nações do mundo sabem. Portanto, todas as nações do mundo são muito cuidadosas em projetar, em conhecer primeiro, estudar cuidadosamente primeiro, e depois projetar exteriormente uma imagem de nação produtiva cientificamente, cheia de grandes contributos científicos. Porquê? É só uma coisa de nacionalismo puro? Não é só isto, é porque todas as nações cuidam do modo como se apresentam para fora.

A segunda pergunta, se há condições… eu creio que sim. Eu devo dizer, sou muito otimista. Não diminuo as dificuldades, mas como comentava há pouco, as condições que temos para fazer este trabalho hoje são muito melhores do que as que tínhamos há dez anos, muito melhor do que havia há vinte ou do que havia há cinquenta. E eu fui testemunha, na minha vida, do crescimento desta possibilidade de fazer este tido de estudos.

Parece-me que temos um campo todo aberto. Agora, o campo é exigente, este é o ponto, quer dizer, o campo é exigente. O treino de especialistas para fazer este trabalho é um treino longo, demorado e exigente e que precisa de uma cultura, ou seja, vocês, uma sociedade, ou seja, vocês e todas as outras pessoas, que acarinhem este tipo de atividades e este tipo de compromisso de vida. O que está aqui… - como nada disto pode ser feito por mandato superior – o que está aqui realmente em jogo é suscitar na sociedade portuguesa uma curiosidade e um interesse por estes assuntos que levem a que sociedade como um todo apoie, estimule, acarinhe as pessoas que decidiram dedicar-se a isto. E portanto eu acho que sim, que há muito boas condições, mas o desafio, em última análise, é conseguir criar e manter especialistas capazes de estudar estes temas. Não são os únicos, há muitas outras áreas da história importantíssimas, mas eu atenho-me agora a falar das minhas.
 
Dep.Carlos Coelho

Segunda ronda de perguntas. Dou a palavra à Patrícia Oliveira do Grupo Roxo e ao Nuno Pinto Dias do Grupo Verde.

 
Patrícia Oliveira

Boa noite, Dr. Henrique Leitão. Nós temos estado a ouvir o Dr. com muita atenção e surgiu-nos efetivamente um dúvida, o que é que podemos esperar do amanhã partindo da aposta que é feita na área da História das Ciências e quais são as áreas que são necessárias para apostar neste tipo de profissão? Portanto, o que é que estuda, o que é que teve que estudar, qual foi o seu percurso, e como é que chegou aqui? Muito obrigada.

 
Nuno Pinto Dias

Muito boa noite, Prof. Doutor Henrique Leitão, é uma enorme honra tê-lo aqui connosco e, com a devida vénia, permita-nos a seguinte questão: conhecendo que muita da sua investigação foi em latim, e sabendo, permita-me a expressão, que a ciência que por cá é feita, muitas vezes, é língua morta para a generalidade dos portugueses, como é que poderemos inspirar, não só a sociedade em geral, como ainda há pouco referiu, mas de forma especial os mais jovens, a sonhar alto com uma carreira na ciência. Muito obrigado.

 
Henrique Leitão

Muito obrigado. Primeiro para falar um bocadinho do meu percurso, é um tema completamente desinteressante, mas como foi feita a pergunta, eu falo dele. Mas depois vou à parte mais interessante que é como se treina um historiador de ciência é o que é preciso fazer.

O meu treino original é científico, eu sou um físico teórico, eu fiz licenciatura, mestrado, doutoramento em física teórica. Fiz investigação em física teórica, equações em Portugal, noutros sítios, trabalhei bastante tempo na Alemanha, grupo internacionais... publiquei artigos de investigação em física teórica. Portanto, fiz uma formação científica forte, como cientista. Por razões várias, por razões familiares, de gosto pessoal, sempre gostei muito de questões de humanidades, fui estudando sempre muita História, muita Filosofia, e porque acho graça a línguas antigas - estudei latim, grego… Mas não tinha um plano, o meu plano era fazer investigação em física.

A certa altura, de facto, a questão histórica foi nascendo como interesse e comecei a olhar para temas de História da Ciência e a reparar o interessante que eram, o fascinante que eram, e aqui revelo a minha agenda escondida que eu trazia aqui hoje: é tentar converter pelo menos um ou dois dos que estão aqui à História da Ciência, não sei se o Dep. Carlos Coelho me vai deixar, mas se um ou dois inverter a carreira para se dedicar a estes assuntos, eu dou por ganha a minha vinda à Universidade de Verão.

Mas a certa altura, estava a começar a interessar-me por assuntos de História da Ciência - e agora aqui foi uma pura casualidade da vida -, por causa destes estudos que tinha feito, era capaz de trabalhar com um tipo de materiais, ou seja, um tipo de documentos que são muito peculiares – são documentos que são ao mesmo tempo muito técnicos e que, por exemplo, estão em latim, como perguntaram há pouco.

Era preciso uma pessoa que conseguisse fazer este tipo de coisas. Ou era preciso ser capaz de ter conhecimentos, digamos, avançados de História, em certos períodos, história cultural, e ao mesmo tempo conseguir perceber assuntos científicos, e, portanto, isto sucedeu mais ou menos por casualidade (no meu caso) mas a verdade é que me fui dedicando cada vez mais a um estudo muito sério de áreas históricas, tive muita sorte com os meus colegas historiadores, porque me receberam sempre muito bem e me ensinaram e me incentivaram, não sendo eu originalmente um historiador, e depois com o passar do tempo fui-me dedicando a isto cada vez mais e porque – este é um ponto importante – em Portugal a abundância documental é imensa, contrariamente ao que as pessoas poderiam talvez pensar, a quantidade de documentação, de registo histórico sobre antigas atividades cientificas feitas por portugueses é imensa, o problema é que não há gente suficiente para a estudar. Por causa disso eu tive a vida muito facilitada, porque cada vez que entrava num arquivo ou biblioteca, aqueles documentos não tinham sido praticamente estudados por ninguém e pude rapidamente fazer algumas coisas.

Ou seja, e agora acaba-se o assunto deprimente da minha história e falo em geral de formar um historiador de ciência. Este é o problema. Insisto sobre este ponto: a história da ciência é uma disciplina muito peculiar. Não é, por exemplo, como a Física, que é uma grande disciplina académica, ou a Matemática ou a própria História Geral, História Política, História Económica, são grandes disciplinas, História das Ciências é como que um nicho muito peculiar, de um certo tipo de gente, um certo tipo de historiadores um bocadinho estranhos, não é?

Estas pessoas não têm nenhum percurso que as forme, não há nenhuma maneira de estudar. Estas pessoas vêm, para dizer de uma maneira rápida, ou vêm das humanidades e é preciso que aprendam aspetos científicos – de Medicina, de Biologia, de Matemática, seja o que for. Ou vêm das ciências e precisam de aprender todas as metodologias históricas, o saber histórico, filosófico, linguístico, etc.

Não há nenhuma maneira de resolver isto, digamos, de maneira eficaz que não seja anos de trabalho e estudo. E estas são as más notícias. As más notícias é que a única maneira de treinar um historiador de ciência, torná-lo um profissional internacionalmente reputado, em Portugal e em qualquer parte do mundo (e o problema é o mesmo) são anos de trabalho a partir de uma formação inicial que a pessoa tem, complementando-a com aquilo que ela não tinha inicialmente. Este é o nosso desafio. O meu desafio profissional é garantir que, na minha Universidade, as condições para treinar estas pessoas, primeiro, para descobrir o talento, porque nem todas as pessoas dão para isto, portanto, tem que se descobrir talento, as pessoas que tenham as capacidades intelectuais, o gosto, de um certo tipo de alinhamento intelectual para este tipo de tarefas. E depois ensiná-lo, treiná-lo, estudá-lo com os padrões que são bastante exigentes da disciplina.

Portanto, a minha tarefa na vida, uma parte importante, que tem a ver com montar um grupo e formar pessoas, teve a ver com isto. Devo dizer que, nos últimos dez anos, fui surpreendidíssimo com alunos, colaboradores, de primeiríssimo plano, gente talentosíssima. Tive alunos de doutoramento absolutamente notáveis, alunos de mestrado, que estão a fazer carreiras extraordinárias, em Portugal e fora de Portugal. Num dos maiores observatórios astronómicos do mundo, nos Estados Unidos, em Chicago, – o Adler Planetarium – o curador dos instrumentos científicos, neste momento, é um antigo aluno da nossa Universidade, um português, que é o curador de todas as instrumentações, contratado pelas suas competências. Podia dar muitos outros exemplos disto.

Então esta é uma parte importante do trabalho, além do meu trabalho de investigação, este trabalho de montar o grupo e de treinar estes especialistas. São poucos, mas têm que ser, de alguma maneira, acarinhados, não é? Não sei se respondi completamente, mas o percurso é este. Para todos os que já adormeceram e esquecerem, a má notícia é esta: é preciso estudar muito, lamento imenso, mas não há volta a dar. Agora, como todas as coisas que exigem muito esforço - e exige muito esforço, não nego -, a condição fundamental é o gosto pessoal. O que é preciso é detetar, detetar e estimular, as pessoas que por alguma razão têm esta apetência – e há muitas.

Uma cultura viva, o que faz é isto: estimula os gostos das pessoas; pode ser surf ou pode ser História da ciência, pode ser música ou pode ser matemática, mas estimulam-se os gostos das pessoas e é a partir dos gostos pessoais, uma vez detetados, que se faz treino avançado. Uma das coisas que as Universidades têm de fazer é este processo, digamos, binário, de deteção de talento e depois de treino deste seu talento.

A segunda pergunta, não sei, tinha a ver com o latim, eu já respondi, já não me lembro bem exatamente o que era… mas sim, é preciso estudar as coisas específicas. Mas vou dar exemplos. Vou dar exemplos para que percebam. As pessoas podem pensar: então temos muita coisa para fazer? Imensa. Se alguém, aqui, tiver conhecimentos linguísticos de chinês, por favor venha falar comigo, porque eu preciso, Portugal precisa, imenso, imenso de especialistas que saibam ao mesmo tempo matemática e chinês para reconstruir historicamente Macau e a China toda. Houve contactos científicos e tecnológicos…

Portugal tem uma história contínua com a China de 500 anos, não há nenhum país europeu que tenha isto. Nós temos uma História de meio milénio de contactos contínuos, permanentes, com a China. Nós precisamos neste momento desesperadamente de académicos com domínio linguístico e cultural da realidade chinesa e, no meu caso, de historiadores de ciência, de domínio técnico. Há muitos trabalhos que mostram que grande parte, ou alguns aspetos, da ciência portuguesa foram veiculados para a China através de portugueses. Dou um exemplo importante: a China pela primeira vez soube das descobertas telescópicas de Galileu, que é uma coisa muito importante – não vale a pena dizer os detalhes, a não ser que me peçam. Uma coisa muito importante na Europa, a China pela primeira vez soube isto através de textos escritos por portugueses, em chinês, na altura, no século XVII, em 1614. No princípio do século XVII, houve portugueses, que vivendo na China, e tendo sabido destas novidades científicas da Europa, imediatamente as comentaram na China. E temos muito mais documentação desta que, literalmente, espera ser estudada.

Isto é um caso de uma relação de Portugal com uma cultura poderosíssima, uma cultura que eu me dispenso de comentar a sua importância no momento atual. Há como que uma oportunidade de estabelecer uma História intelectual com a China, não é um assunto de menor importância para um país, a partir de um período de diálogo cultural e científico entre portugueses e chineses e que aguarda apenas pelos especialistas capazes de o fazer. E não temos.

Ao revés podemos pensar outras influências na nossa História. Por exemplo, as do mundo árabe. A influência que aparece em todos os livros de escola, mas se repararem nunca estudada com detalhe, a influência de tradições científicas do mundo árabe nas práticas portuguesas e da Península Ibérica, aguarda ainda historiadores, no nosso país, com as competências para o estudar.

Por isso é que eu digo, o meu desafio não é para que vocês se dediquem a isto, mas para que saibam que o tipo de desafios que temos pela frente é este, são desafios de criar especialistas capazes de fazer isto.

Agora volto àquela pergunta: não é completamente diferente quando nós nos damos conta de que a história científica da China foi influenciada por acontecimentos relacionados com portugueses? Não é completamente diferente? Mas afinal que país é este e que lugar tem este país no mundo? E como se atrevem a dizer que nós não devemos ter ciência? Como se pode alguém atrever a dizer isto? Portanto, por detrás destas tarefas que parecem muito académicas e muito especializadas está muito em jogo, está muito em jogo. Se eu vos conseguir despertar para a importância do que está em jogo, não é que tenham que se dedicar a isto… mas percebam que por trás disto está muito em jogo.

Se posso dar um exemplo… um trabalho que fiz recentemente, com um colega, que é um especialista de cartografia, foi um trabalho muito interessante, – cartografia, mapas antigos, mapas antigos, Portugal tem uma história impressionante na história da Cartografia, na construção da imagem do mundo, como toda a gente sabe. Há uma maneira de fazer mapas que foi inventada no final do século XVI, chamada projeção de Mercator, vocês já devem ter ouvido falar do nome - Mercator, uma modernidade importante.

Com um colega, fomos capazes de mostrar que as ideias que este belga, Mercator, usa para fazer a sua projeção, são tudo ideias que vão ser buscadas a Portugal. Isto está hoje perfeitamente estabelecido, publicado nas melhores revistas internacionais, faz parte do cânone da História da cartografia, hoje. Ou seja, de repente percebe-se internacionalmente que aquele grande progresso na história da Cartografia tem uma raiz num país como Portugal. Não sei se conseguem imaginar a diferença enorme que isto faz no modo como o mundo académico passa a olhar para a História deste pequeno país. É muito diferente. E quando os portugueses, progressivamente, vieram a saber mais sobre isto, sobre o que foi feito pelos seus antepassados, tudo isto se torna um pouco diferente.

Pronto, termino só com o coiso do latim… já não me lembro de quem foi a pergunta… sim é preciso aprender as competências necessárias. Como?

[VOZ NÃO AUDÍVEL]

Motivar os jovens… bem, sim, aqui somos muitos, eu tenho o microfone e há pessoas a tirar fotografias, e portanto eu não posso dizer tudo. Mas, se eu fizer uma conversa a sós com um ou uma, eu converto-o imediatamente à História da ciência.

[RISOS E APLAUSOS]

 
Dep.Carlos Coelho

Bem, já sabem, se houver alguém de matemática e chinês, já tem emprego aqui com o Prof. Henrique Leitão.

Vocês, pelo programa, sabiam que eu vou dar a palavra ao Dr. Passos Coelho no domingo, ele estará na sessão de encerramento, o que não sabiam é que eu vou dar a palavra ao Bruno Graça Coelho – portanto, os Coelhos estão a proliferar nesta Universidade -, do Grupo Encarnado, e depois à Jéssica Vieira, do Grupo Cinzento.

 
Bruno Graça Coelho

Boa noite. Antes de mais, quero agradecer, em nome da minha equipa e em nome dos presentes, a presença do Dr. Henrique Leitão, e quero fazer uma breve questão tendo por base uma citação sua. A citação é a seguinte: "Se não houvesse uma base cristã, nunca teria havido propriamente ciência moderna, porque se hesitava sobre aspetos que são absolutamente centrais para haver ciência.” A questão é: não deixa de ser interessante o facto de suportar nos princípios e mais-valias da fé cristã as bases para que a ciência se possa fazer, mesmo que esta fé ainda hoje rejeite algumas das mais importantes teorias científicas. Não considera que hoje, e no futuro, a base para a ciência será mais o homem e o que ele descobriu e não Deus e a fé cristã? Obrigado.

 
Jéssica Vieira

Muito boa noite. A questão que o Grupo Cinzento elaborou para o Doutor Henrique Leitão é se as oportunidades existentes em áreas de investigação em Portugal são suficientes para fazer face à procura existente pelos jovens e pelos profissionais destas áreas?

 
Henrique Leitão

Bom, a primeira pergunta, de facto, é uma pergunta interessantíssima, demoraria muito tempo a explicá-la em detalhe, portanto eu vou ser esquemático, mas quero ir direto à pergunta, porque a pergunta é importante.

Entre os especialistas é relativamente pacífico, eu sei que não é a opinião comum na sociedade, por razões várias, no modo como as sociedades europeias se notaram, mas entre os especialistas de História da Ciência é mais ou menos pacífico que há um substrato cultural que o Cristianismo forneceu à Europa e este substrato cultural introduz certas ideias sem as quais dificilmente teria havido ciência.

Quais ideias? Essencialmente três: a ideia de que o mundo é um mundo bom, que é uma coisa boa. Culturas que hesitam sobre este ponto, sobre a bondade da realidade material, não desenvolvem ciência.

A ideia de que o mundo é racional, esta ideia muito típica do Cristianismo, a ideia de que o mundo se entende, portanto, toda a realidade natural entende-se, a mente humana consegue entendê-la – esta ideia importantíssima.

E terceira, que é um bocadinho mais técnica, mas importante explicar, a ideia de que a realidade é contingente, quer dizer, é desta maneira mas podia ser doutra. Isto tem a ver com o facto de, no entendimento cristão, o mundo ser uma criação de um ato livre de Deus. Como é desta maneira, mas podia ser doutra, a única maneira de saber como é, é estudando-a, estão a perceber?

Estas três ideias, a partir da Idade Média, tornaram-se culturalmente partilhadas pela Europa. E, em grande medida – não vejam no que eu digo relações únicas, mono causais – mas em grande medida estes elementos fizeram este facto estranhíssimo de que a modernização, a revolução científica tivesse ocorrido nesta pequena zona do mundo, minúscula, habitada por gente que não é mais esperta do que a das outras zonas do mundo, somos todos iguais. Mas porquê aqui? Uma das razões, sublinho, uma das razões, mas uma das razões fortes, tem a ver com este substrato cultural que, a partir do século XIII, XIV, XV, começa a ficar difundido pela Europa e, depois, influencia tudo o mais. Estão a perceber, é a nível de ideias culturais de base.

Estas ideias são tão "segunda pele” para nós que nós nem notamos muito bem donde elas vêm, mas a sua origem tem a ver com a sua tradição judaico-cristã que influenciou o mundo. Como digo, isto é mais ou menos pacífico entre os historiadores de ciência. Depois, o desenvolvimento sucedâneo é mais complicado, mas quando eu falava, e quando os historiadores de ciência falam, da influência de convicções culturais cristãs de base para o estabelecimento de uma atividade científica, estão-se a referir, mais ou menos, a isto.

O mais telegraficamente que consegui - é isto. E por isso é que temos um fenómeno que é curioso, o facto, por exemplo, de termos muitos - que ainda se nota, notou-se em toda a História -, muitos clérigos, clérigos cristãos, que se envolveram em atividades científicas. O que é muito anómalo, os membros ordenados das religiões, habitualmente, não se envolvem em atividades científicas, não acontece no mundo islâmico, não acontece… embora tenham grandes cientistas, falo apenas dos membros ordenados, clérigos propriamente. Como sabem, Mendel, o inventor da genética moderna, é um frade copérnico, que é um padre, Steno, o fundador da geologia moderna, um padre.

Quer dizer, esta conexão é muito importante. E também o nascimento das Universidades, este facto também muito importante da História europeia.

Ou seja, para resumir muito rapidamente, é um tema muito amplo e muito interessante, mas tem muito a ver com a nossa própria História, quer dizer, nós temos convicções, hoje… Mesmo quando as sociedades se afastaram muito de um modo de ver cristão do mundo, permanecem, trazem consigo, convicções que têm uma base cultural ali, não é?

Insisto: nós achamos que o mundo se entende e que se vai entender sempre. Donde é que vem esta ideia? Porque é que o mundo não se tornaria incompreensível? E no entanto, nós temos isto como uma ideia… não temos a mais pequena dúvida, havemos de perceber, qualquer que seja o fenómeno natural, se a gente o estudar, há de percebê-lo.

Outra coisa, sobre as oportunidades. Uma vez mais, eu lamento imenso, sou otimista. Eu acho que há oportunidades, ou seja, há oportunidades conjunturais, isto é, há instituições, há grupos, há maneiras de financiar, há maneiras de apoiar. Claro que há problemas, e há sempre dificuldades, vai haver sempre. O maior desafio quanto a mim, é uma decisão, mas que tem que vir da sociedade e depois tem que estar nas instituições, de manter estes grupos de especialistas. Há uma espécie de uma decisão coletiva, um gosto coletivo, um apreço coletivo por ter gente desta, que serão muito poucos, como sempre; mas que nos esclareçam sobre a nossa história científica.

Gostava só de fazer um pequenino parêntesis que não tem a ver, diretamente, com nenhuma das perguntas mas que as atravessa a todas e é o que eu quero dizer. Eu não sei se dão conta de que muitas vezes o sistema educativo em Portugal parece um bocadinho esquizofrénico, isto é, ao mesmo tempo que nos processos de educação dos jovens, das crianças, se insiste em que as pessoas devem ser agentes do progresso e desenvolvimento do seu país, ao mesmo tempo, muitas vezes, apresenta-se uma imagem cínica, negativa, destrutiva do seu próprio passado. Ora, estas duas tensões destroem-se.

Não é possível querer melhorar uma realidade de que não se gosta. Se não há uma ponta de afetividade pela própria História, pelo próprio País, com serenidade, não é preciso empolamentos, mas se não há um desejo de gostar daquilo que se tem, da História que nos trouxe aqui, eu não acredito que pessoas assim sejam agentes de grande transformação e, portanto, na medida em que, através deste pequeno elemento da História, nós conseguimos dar uma ideia do nosso país que nos alegra mais, nesta medida, tornamo-nos capazes de ser agentes de mais progresso.

[APLAUSOS]

 
Dep.Carlos Coelho

Dou a palavra à Renata Costa Leite, do Grupo Bege, e à Catarina Martins de Sousa, do Grupo Rosa.

 
Renata Costa Leite

Boa noite a todos, boa noite Senhor Professor. Como vencedor do Prémio Pessoa em 2014, com a recente disponibilidade do novo Quadro Comunitário Portugal 2020, de que forma acha que o investimento deve ser de maneira a obtermos o máximo de proveito para o desenvolvimento científico e uma elevada taxa de empregabilidade. Obrigada.

 
Catarina Martins de Sousa

Boa noite. Numa intervenção do Dr. Henrique Leitão, nós tivemos a oportunidade de reparar que fala do drama educativo, dos estudantes não sentirem paixão pelas matérias que estudam, desvalorizando os grandes feitos históricos e científicos conquistados por Portugal. Assim, gostaríamos de saber se acha que está na altura de ser feita uma grande reforma no ensino, de modo a que os estudantes passem a ter orgulho no que é seu, uma vez que, como disse, e bem, é impossível haver progresso por parte de quem não gosta do que é seu. Obrigada.

 
Henrique Leitão

Bom, relativamente à primeira pergunta, a realidade científica do país tem que mostrar é que é capaz de produzir… – e aqui tenho muito em mente o Quadro 2020 – é que é capaz de produzir ciência comparável à melhor internacional. Isto é o que temos entre mãos como desafio, porque senão, de maneiras mais ou menos explícitas, seremos tratados menormente pelos nossos parceiros europeus.

Ou seja, é preciso que Portugal, continue a fazer o que tem vindo a fazer e que melhore, conseguir produzir entre os seus membros, na sua comunidade, grupos de investigação com resultados, com performances, com impacto internacional ao nível dos melhores. Isto é muito difícil e é muito exigente, mas é este o desafio que temos pela frente, porque senão seremos relegados para um segundo lugar. Portanto, este novo enquadramento obriga a uma insistência atenta na qualidade da investigação científica que é feita. A empregabilidade é um problema, como sabem. Portugal, porque teve um desenvolvimento nesta área bastante rápido, que não equilibrou completamente, tem problemas estruturais de fundo. O principal, como provavelmente devem saber, o indicador que é mais preocupante, é que 95% a 97% dos doutorados de Portugal permanecem nas Universidades. Portanto, não estão a ser capturados nem absorvidos pela sociedade, pelas empresas, por outros âmbitos.

E isto a longo prazo não é sustentável. As Universidades não podem continuar a viver produzindo, produzindo doutorados, doutorados que depois não têm sítio para onde ir. Portanto, como é que isto se muda? Não sei, ainda bem que não estive neste trabalho, estas sim, são tarefas muito complicadas. Mas este é o indicador mais delicado. Por detrás disto o que é que tem? Por detrás disto o que tem é o facto de que a cultura, o saber, a ciência andam de mãos dadas com a economia, com o desenvolvimento económico. Uma vez disse que a ciência é uma coisa de ricos, que é uma maneira um bocadinho brutal de dizer, e fica mal dita assim, portanto não a repitam, mas ter atividade científica supõe ter economias sãs, pujantes, que crescem. A ideia de que é possível manter investigação e ciência em países com grandes carências económicas não é realizável. Portanto, a empregabilidade disto, ou seja, a economia é chamada a esta questão, e de que maneira, com certeza, e de que maneira.

Sobre a educação… Muito importante, a minha vida sempre foi ligada a tarefas educativas, primeiro porque tenho filhos, mas também porque fui sempre professor e as tarefas educativas dizem-me imenso…

A primeira coisa que se faz no ato educativo é a transmissão de uma paixão, é o primeiro momento. Depois há, com certeza, transmissão de conhecimentos, de técnicas, de saber. Mas se no processo de educar, não se comunica uma certa paixão, isto é, se o educando não vê no educador, de uma maneira totalmente honesta - porque não pode ser fabricada - um interesse genuíno pelo assunto, um interesse que é vital, uma paixão que é imensa sobre aquele tema, é muito difícil que se dê qualquer educação séria.

Ou seja, quando eu falo da importância de haver uma paixão no processo educativo – não é só sobre a História de Portugal, ou só sobre a ciência em Portugal, sobre qualquer matéria –, quando eu falo deste assunto é porque este assunto é muito sério no fenómeno educativo. O fenómeno educativo feito sem este facto não resulta completamente.

Eu acho que aqui temos que melhorar, a tradição educativa em Portugal tem que melhorar muito nisto. Porque, por razões várias (a História educativa portuguesa é conturbada ao longo dos séculos, este aspeto, muitas vezes, não foi suficientemente enfatizado. Faz-me a sugestão dos programas e das reformas educativas, e tal… Com certeza, talvez, mas, eu acho que são atitudes muito simples que têm que mudar, atitudes de base, que podem mudar aqui entre vocês, na maneira como educam, na maneira como se relacionam com os mais novos.

A idade adulta é a idade em que uma pessoa toma consciência de que é um educador. Isto é que é propriamente o querer ser adulto, em que toma consciência que na sociedade tem a tarefa de ajudar as gerações mais novas. Não precisa de ser professor para isto. Portanto, todos os aspetos educativos é importante que sejam percebidos. Talvez uma reforma… eu não apontaria, porque já tivemos tantas reformas educativas, não queria ter mais outra. Agora, que tem que haver e que tem de se ajudar a montar uma atitude completamente diferente para o facto educativo, isso parece-me que sim.

 
Dep.Carlos Coelho

Senhor Professor, nós temos uma tradição na Universidade de Verão que é dar a última palavra, por dever de cortesia, ao nosso convidado. Portanto, eu não terei outra oportunidade de usar este microfone que é para lhe agradecer as respostas que nos deu e aquelas que ainda nos vai dar nesta última ronda de perguntas, mas também para fazer os últimos avisos.

Primeiro para recordar que amanhã, às 10.00 da manhã, temos o nosso único debate frente a frente da Universidade de Verão sobre a Internet: "Garantir a liberdade ou reforçar a segurança.”

Depois tenho uma mensagem especial para os coordenadores dos dez grupos, para dizer que hoje não vos vou convocar para uma reunião. [APLAUSOS] Mas igual sorte não têm os vossos Conselheiros que estão convocados… [APLAUSOS] estão convocados para uma reunião com a Direção da Universidade de Verão assim que acabar este jantar.

E reiterando os agradecimentos ao Prof. Henrique Leitão, convido para fazerem as últimas perguntas, a Maria João Podgorny, do Grupo Azul, e o Nuno Picado do Grupo Amarelo.

 
Maria João Podgorny

Muito boa noite, muito obrigada pela palavra. Um dos temas que dominou esta conversa hoje, esta noite, e é natural que assim seja, foi a influência do passado no presente e no futuro. Eu por acaso esta manhã dei um passeio aqui por Castelo de Vide e passei em frente à Sinagoga, onde estava inscrito um provérbio judaico que diz: uma Nação que não conhece o seu passado não tem futuro. E ainda acerca deste tema, eu gostaria de perguntar o seguinte: frisou no início da sua intervenção que é um privilégio e uma sorte viver e trabalhar num Continente onde se valoriza o conhecimento e o aprofundamento do conhecimento. Se olharmos para a História da Europa, sabemos que nem sempre foi o caso – já houve períodos em que se procurou conhecimento, outros períodos em que se procurou travar a procura do conhecimento. E se olharmos para os tempos modernos, vemos em regiões, por exemplo como o Médio Oriente, onde já houve grandes culturas de conhecimento, um certo movimento no sentido contrário.

Isto preocupa-o? Acha que na Europa podemos dar por adquirido que a valorização do conhecimento será sempre uma constante? E se não é o caso, se não podemos dar isso por adquirido, o que podemos todos nós fazer para garantir que esta situação se mantém tanto tempo quanto possível? Muito obrigada.
 
Nuno Picado

Boa noite, Doutor Henrique Leitão. Antes de mais gostava de agradecer a oportunidade… o facto de ter estado aqui na Universidade de Verão. Hoje em dia damos uma grande importância ao cruzamento de dados nas diversas áreas dos saberes. Acha que a evolução científica, em geral, poderia de certa forma beneficiar se houvesse uma proximidade maior entre as ciências exatas, como, por exemplo, a Matemática e a Física, e as ciências não exatas, como a Filosofia?

 
Henrique Leitão

Em relação à primeira pergunta, sim, obviamente é verdade, que não podemos dar nada como adquirido. Nós temos a sorte de viver numa zona onde há uma tradição intelectual distinguível, claríssima, secular, de apreço pelo saber, e que tem de ser fomentado e que teve altos e baixos, sem dúvida, mas nada disso pode ser dado por adquirido. Ou seja, o desafio permanece em cada momento.

Há um aspeto que eu gostaria de comentar. Há, às vezes, uma espécie de uma narrativa ou uma interpretação, que tende a fazer o seguinte, que me parece completamente errado. Isto é, há um conjunto de ideias políticas que garantem a modernidade, o progresso e o saber, e há um conjunto de outras ideias políticas que não as garantem, que as entravam.

Eu acho porem que os problemas são muito mais de fundo, não são propriamente a nível das ideias políticas, são a nível de conceções muito mais de fundo. Pessoais, sobre o lugar do indivíduo, sobre realmente quem somos. Ou seja, para dizer de alguma maneira, há olhares, talvez filosóficos, que promovem mais o amor ao saber e a proteção do amor ao saber, e há outros que não. Digo isto porque às vezes, na sociedade portuguesa, ou em certas visões históricas em Portugal, parece haver uma visão dicotómica. Isto é, que houve conjuntos de ideias políticas que, por si só, por uma pessoa ter essas ideias, por si só, o país desenvolver-se-ia, e por não as ter seria um opositor ao saber. Isto não corresponde nada à verdade. Agora, neste momento, no momento presente, no momento da História europeia, e também, obviamente, no momento de Portugal, nada pode ser dado por adquirido. Cada geração tem que recuperar tudo. Temos a sorte de ter uma carga e uma herança por trás de nós.

O que me parece aqui importante, para os presentes - e volto a insistir -, colocar o gosto pelo saber, o gosto pela ciência, o gosto pelo estudo sério, como uma prioridade central das sociedades, deve ser uma tarefa de todos vós, e certamente minha, não é só dos académicos. Não negociamos sobre isto, não negociamos sobre isto, e não nos reduzimos às vantagens imediatas de pequeno desenvolvimento ou crescimento. Não, estamos a falar de coisas muito mais sérias, estamos a falar de propriamente quem nós somos. Isto parece-me um ponto absoluto importante e contínuo. Mas sim, viver é sempre um risco, e toca-nos agora este risco.

Sobre a parte da interdisciplinaridade e especialidade. Queria dizer duas coisas. Uma é uma consideração simples. Às vezes parece-me que há um bocadinho de equívoco sobre o que é uma interdisciplinaridade ou um cruzamento de disciplinas. Não é feito de saber um bocadinho de muitas coisas. É feito de uma pessoa, especializando-se numa área e sabendo muito de um assunto, conseguir dialogar com outras áreas. A capacidade de atravessar áreas, e a capacidade da interdisciplinaridade, não é feita na vaguidão, nem no domínio mediano das coisas. É feito num domínio sério - por exemplo, uma disciplina científica -, mas que permite uma abertura a outras áreas. Não sei se me estou a fazer entender, porque às vezes parece-me que se tenta apresentar uma ideia da interdisciplinaridade como um caminho mais fácil. Não é um caminho mais fácil.

A segunda consideração é que os modos atuais do saber são tais que, é muito provável nas vossas vidas – e eu sou um exemplo disso -, que nós acabemos por fazer tarefas que não foram aquelas para que inicialmente estávamos treinados. Este é o mundo de hoje. É imensamente provável que daqui a dez anos vocês estejam a fazer uma tarefa que não tem nada a ver com o que os ocupa hoje e que não tenha nada a ver com a vossa formação inicial.

O quê que isto quer dizer? Quer dizer que as formações iniciais têm que conter a capacitação, também, de técnicas, de saberes e de modos de estar que permitam estas transições. Isto é absolutamente crucial. Portanto, esta será muito provavelmente a vossa vida.

As grandes educações – aqui educação no sentido anglo-saxónico, de um treino, de uma education , de um treino académico – souberam sempre isto muito bem. Eu não sei se vocês têm ideia, quando se anda numa grande Universidade, não interessa muito o que lá se estudou. O importante foi a education a que se foi submetido. Uma pessoa que tem um título de uma Universidade muito famosa, raramente lhe perguntam o que estudou. Perguntam-lhe "onde é que você andou?” E ela diz. Porquê? Porque o que se sabe é que aquele processo educativo, embora baseado numa disciplina, num saber, numa especialidade, foi feito de tal maneira que a capacitou para mudar aquilo se tiver que mudar. E por isso, em muitas culturas, nós vemos que as pessoas mudam completamente de atividades científicas. Porque a formação inicial permitiu isto. Mas não foi feita na base da facilidade, foi feita a partir de um domínio sólido de técnicas e de saberes, mas que ao mesmo tempo continha os elementos para permitir fazer isto. Isto é o modo como as instituições educativas hoje têm que ser feitas. Ninguém tenha dúvidas sobre isto, porque provavelmente já é o modo das vossas vidas, imagino.

[APLAUSOS]

Eu peço desculpa falar já fora… mas pensava que tinha direito a uma palavra final. Demora um minuto. Queria prestar de alguma maneira uma homenagem pública… Na cerimónia de entrega do prémio eu fiz questão de dizer uma coisa. Eu sou um produto das instituições de ensino deste país. Fui um aluno da Universidade de Lisboa, estudei em grupos portugueses, estive em muitas partes do mundo, em colaborações, passo muito tempo fora de Portugal, mas o meu treino, a minha formação, foi adquirida aqui. A repercussão internacional do meu trabalho, a repercussão nacional do meu trabalho, foi adquirida a partir do que este país me deu, as instituições deste país me deram. Tenho, por isso, uma dívida enorme para com este país, para com as escolas deste país, para com as universidades deste país, para com os professores deste país. E é a consciência desta dívida e da possibilidade de fazer uma carreira internacionalmente competitiva, a partir do que me foi dado aqui, que me fez sempre andar toda a vida. Gostava que percebessem que isto é perfeitamente possível fazer hoje, e que o país já oferece hoje – como ofereceu noutras épocas, mas certamente oferece hoje - a possibilidade de se fazer isto. Muito obrigado.

[APLAUSOS]