Chegamos ao nosso segundo dia de trabalhos com o tema "O que se passa na Europa” e com um convidado especial, o Dr. Durão Barroso.
O Dr. Durão Barroso dispensa apresentações. Foi Presidente do Partido, Ministro dos Negócios Estrangeiros, Primeiro-Ministro, Presidente da Comissão Europeia durante dez anos mas, para efeitos da Universidade de Verão, é uma pessoa especial.
É uma pessoa especial porque foi no seu mandato de Presidente do Partido que esta universidade foi criada, foi sob as suas instruções que ela teve lugar, na sequência de um desafio que ele me lançou em 2003. Foi, portanto, a primeira personalidade que encerrou a primeira Universidade de Verão que ele criou.
Portanto, de certa forma, ele é o pai desta iniciativa e estamos-lhe muito agradecidos. Não é a primeira vez que ele vem depois disso, já esteve cá enquanto Presidente da Comissão Europeia a dar uma aula sobre Europa, mas o que nos sensibilizou mais foi a circunstância de que, mesmo quando ele não podia cá estar pessoalmente porque as suas funções como Presidente da Comissão Europeia o obrigavam a viajar pelo Mundo, nunca deixou de ter contacto connosco e os vossos colegas das edições anteriores recordam-se que aceitou sempre ser uma das personalidades que respondia à distância.
Uma das cinco personalidades da Universidade de Verão, nos anos anteriores, que respondeu à distância foi o Dr. Durão Barroso. Reservámos sempre para ele o último dia, a edição do JUV mais numerosa e algumas vezes criámos uns problemas ao Paulo Colaço porque o Dr. Durão Barroso gostou tanto das perguntas que os vossos colegas fizeram, que às vezes não selecionava duas mas três, cinco, e chegou a selecionar sete, o que nos obrigou a reservar mais espaço no JUV para acomodar as respostas que o Presidente da Comissão Europeia algures no Mundo não deixou de nos dar. Isso é algo que não esquecemos e, portanto, temos uma grande dívida de gratidão para o Dr. Durão Barroso.
O nosso convidado de hoje tem como hobby a marcha, já que a leitura - diz ele, a sua atividade principal fora do trabalho, não pode ser reduzida a mera categoria de hobby.
A sua comida preferida são os ovos verdes e o animal preferido é uma brincadeira comigo. O livro que sugere é a obra lírica de Luís de Camões, existem várias edições.
O filme que sugere é "As Asas do Desejo”, de Wim Wenders, e a qualidade pessoal que aprecia é a generosidade e a capacidade de amar os outros.
Portanto, para nos falar sobre o que se passa com a Europa, a pessoa mais indicada para falar sobre o tema: Dr. José Manuel Durão Barroso.
[APLAUSOS]
José Manuel Durão Barroso
Muito obrigado, caro Carlos, pelas palavras tão amigas que sei que são sinceras.
Não para retribuir, mas por também ser sincera a minha intenção, queria começar por felicitar o Carlos Coelho por manter esta instituição, que já é a Universidade de Verão.
É de facto verdade, foi em 2003 que lançámos esta Universidade de Verão. Fico muito satisfeito que ao menos algumas das minhas ideias frutificaram. A verdade é que se manteve uma instituição que é dedicada à análise e ao estudo.
Também tive, aliás, uma iniciativa semelhante quando era Ministro dos Negócios Estrangeiros, ainda antes de ser líder do PSD, lancei um seminário diplomático que não havia até então. Ou seja, a partir daquela altura, todos os anos no início do ano, aproveitando o facto de muitos embaixadores e chefes de missão virem a Portugal, reuníamo-los para um seminário, um brainstorm , com convidados externos também.
Porque penso que é muito importante antes de falarmos sabermos do que falamos. Num país como o nosso onde há muito mais gosto pela opinião do que pelos factos é útil, penso eu, estabelecermos os factos primeiro.
Seja na atividade política, na atividade diplomática, empresarial, civil, ou em qualquer outra, é importante reservar algum tempo para análise dos acontecimentos, da história dos mesmos, enfim, para estudar os problemas.
O convite que me foi feito é no sentido de responder à questão "O que se passa com a Europa”. Penso que a pergunta traz já implícita uma sugestão: a Europa não está bem, está em crise.
Aquilo que eu queria era, pelo meu lado, convidar-vos a fazer era precisamente responder a esta outra pergunta: será verdade, será justificado, todo o pessimismo que existe hoje em dia à volta da Europa? Será que a Europa, mais propriamente a União Europeia, está em declínio? Será que entrarmos numa fase de irreversível decadência? Será que esse pessimismo, negativismo e até diria mesmo uma palavra que vem do francês, esse "declinismo” que há hoje em dia em relação à Europa, a ideia do declínio inevitável, tem base nos factos?
Era sobre isto que gostaria de falar, sem prejuízo depois de um período de perguntas e respostas podermos analisar qualquer tema ligado com esta matéria, nomeadamente até a situação do nosso país face à Europa, se essa for a vossa intenção.
Vamos aos factos que quero utilizar também partilhando convosco a minha experiência. Tive a honra de presidir a Comissão Europeia entre 2004 e 2014, dois mandatos perfazendo dez anos.
Em 2004 onde estava a Europa e agora em 2014 onde está? Talvez seja um bom exercício começar por analisar essa evolução.
No início de 2004, a Europa tinha 15 Estados-Membros, hoje tem 28. Isto quer dizer que a Europa praticamente duplicou o número dos seus Estados-Membros durante todas estas crises.
Acho que é um primeiro facto interessante, porque normalmente as organizações em declínio não se alargam, nem duplicam o número dos seus membros.
Segundo facto: a zona euro, o declínio da zona euro e a implosão do euro. Passámos estes anos, pelo menos de 2008/2009 praticamente todos os dias a ouvir a expressão "a crise do Euro” e muitos a preverem e a apostarem em alguns casos milhares de milhões de dólares ou de euros contra a própria sobrevivência da zona euro.
A verdade é que a zona euro tem 19 Estados-Membros. Ou seja, a zona euro é hoje maior em termos de número do que era toda a UE em 2004.
Mais uma vez, é um pouco estranho se estivesse tanto em crise.
Se é assim tão detestável essa construção que é a União Económica e Monetária, por que razão mesmo aqueles que sentiram mais profundamente a crise financeira e a crise da dívida soberana, como o caso da Grécia que nos ocorre logo, querem apesar de tudo ficar na zona euro?
Por que querem então ficar os governos de direita, de esquerda ou mesmo de extrema-esquerda? Porque querem ficar na zona euro?
É por isso que eu penso que devíamos, desde logo, ter alguma prudência quando dizemos que a Europa está numa crise irreversível.
Passámos crises dificílimas nestes anos, crises sem precedentes, não apenas a crise financeira e da dívida soberana mas desde logo - voltando à minha experiência do início do meu mandato - uma crise constitucional. Talvez alguns de vocês se lembrem: foi quando havia um projeto de Constituição para a Europa, um tratado internacional, mas foi recusado por dois países fundadores, a França e a Holanda.
Na altura também se dizia que era um imbróglio constitucional que a Europa não seria capaz de ultrapassar, mas a verdade é que conseguimos ultrapassar, precisamente através do Tratado de Lisboa.
Essencialmente, ainda que com nomes diferentes, manteve o acervo do chamado Tratado Constitucional. Ultrapassámos essa crise constitucional, vivemos estes últimos cinco, seis, anos em plena crise financeira, mas houve também crises geopolíticas com grande impacto na Europa. Nomeadamente a crise entre a Rússia e a Ucrânia que é mais do que uma crise, é uma guerra não declarada. Também o que se passou com os países da orla do Mediterrâneo, designadamente a Primavera Árabe, com as transformações, a instabilidade e os conflitos que se seguiram.
Portanto, no nosso ambiente mais próximo, ou seja, no Sul da Europa, no Mediterrâneo e a Leste da UE com a Rússia e Ucrânia, crises geopolíticas que tiveram e têm consequências profundas.
Depois, esta última no Mediterrâneo que está a haver, a tragédia que é hoje a emigração clandestina, o tráfico de seres humanos e também a tragédia humanitária a que estamos a assistir e que é uma das maiores que a Europa já viveu.
Vejamos a crise financeira e de dívida soberana que prefiro como designação do que "crise do euro”. Na imprensa internacional falou-se muito na "crise do euro”, o que é uma expressão curiosa porque na realidade sugere que o euro está na origem da crise.
Ora, na realidade o que esteve em crise não foi o euro, este manteve-se sempre como moeda sólida, estável e credível. Não foi o euro que provocou a crise, já que esta nasceu nos EUA detonada pela falência de um dos maiores bancos do mundo, o Lehman Brothers, mas já tinha aliás sido antecipada a crise por outros casos de crise financeira nomeadamente por causa do chamado subprime. Ou seja, crédito excessivo que foi dado nos EUA a quem não tinha capacidade de pagar, foi aí que começou a crise financeira, foi nos EUA. Portanto, não foi o euro que criou a crise, nem muito menos teve esta o seu centro nos países do euro.
O país que foi mais afetado inicialmente e chegou a uma situação de insolvência, chamemos-lhe de bancarrota se quisermos uma expressão mais popular, foi a Islândia que não é um país do euro nem sequer membro da União Europeia.
Houve países da UE que na altura não estavam no euro, como a Letónia, ou que não estão ainda como é o caso da Hungria ou da Roménia, que também sentiram a crise financeira de forma particularmente aguda.
Portanto, a crise não foi a crise do euro, foi a crise financeira e da dívida soberana. Ou seja, a crise motivada e desencadeada por comportamentos erráticos - nalguns casos completamente contra a lei - no sistema financeiro, que contaminaram grande parte do sistema bancário mundial, começando nos EUA mas atingindo a Europa. Atingiu a Europa mas não necessariamente naqueles países que nos vêm logo ao espírito.
Alguém sabe qual foi o país que teve que mobilizar mais dinheiro dos contribuintes para salvar os seus bancos na Europa? Alguém quer arriscar? Exatamente, o Reino Unido e o segundo foi a Alemanha. Curioso, pois não parecia.
O Reino Unido, que não está no euro, foi o país que mais nacionalizações teve de fazer dos bancos e que teve de mobilizar mais dinheiro dos contribuintes para salvar os próprios bancos e o segundo foi a Alemanha, nomeadamente nos chamados landesbanken que são bancos dos Estados da Alemanha que como sabem é um país federal.
Em termos relativos, considerando obviamente a dimensão do país, aquele que teve de mobilizar mais recursos foi a Irlanda. Aliás, foi um dos epicentros da crise financeira.
Depois, tivemos o problema que conhecemos na Grécia, em Portugal, em Espanha que também teve de pedir um programa de resgate. Não um programa de resgate completo e integral como o grego, o português ou o irlandês, mas teve um programa de resgate especificamente para a situação financeira.
Por isso, o primeiro ponto é de que a crise financeira ultrapassou em muito o euro, não foi criada pelo euro, não é da responsabilidade da UE. Pelo contrário, é da responsabilidade ou de comportamentos financeiros inaceitáveis que tiveram lugar nos EUA, mas também em muitos países europeus, ou de comportamentos completamente irresponsáveis dos governos nacionais que deixaram acumular dívidas públicas que geraram a ideia da sua insustentabilidade.
Nomeadamente os países que tinham problemas de competitividade foram os mais atingidos, não necessariamente os que tinham a dívida mais elevada.
O que há de comum entre Irlanda, Portugal, Espanha, Grécia? O que há de comum entre estes países que foram atingidos pela falta de confiança nos mercados é a perda de competitividade antes da crise financeira, o aumento exponencial dos custos de produção sem ter sido acompanhado por equivalentes ganhos de produtividade.
Ou seja, os mercados quando se gera a crise e se cria um pânico generalizado foram ver quais os países que estão em condições de não pagar, ou de quebrar, e por isso foram esses países. Não porque estão na periferia geográfica, isso de facto é uma coincidência interessante, mas por serem países com determinadas vulnerabilidades.
Havia países com dívida pública muito superior à Espanha, na Europa. (A Espanha tinha uma dívida pública relativamente gerível). Mas esses países não tiveram os mesmos problemas de falta de competitividade.
Havia países que tinham no setor financeiro problemas maiores, ou comparáveis, mas não tinham o problema estrutural de falta de competitividade. Como vimos há bocado, desde o Reino Unido à Alemanha, a mobilização de recursos foi muito importante mas não havia sobre esses países a mesma dúvida que há em relação a países que são estruturalmente mais vulneráveis.
Agora, há um ponto em que é justo e apropriado falarmos em crise em relação à zona euro: é que de facto a União Económica e Monetária não sendo responsável pela crise, nem tendo a crise sido específica à zona euro, não estava preparada para tamanha crise.
A União Económica e Monetária estava e está ainda incompleta. UEM, três letras: a União Monetária existe, é o euro para os países que têm a moeda única, mas não existe uma União Económica.
Aqui é que de facto houve a vulnerabilidade do nosso lado. Então, tivemos de responder a esse problema. Agora, não se esqueçam onde estávamos em 2004. É que na altura a opinião dominante, por exemplo na Alemanha mas não só, era que não podia haver o chamado bailout , planos de resgate, que isso tinha sido expressamente excluído pelos Tratados.
Mas perante a emergência do default, da insolvência de alguns dos nossos países da zona euro, teve de se rever tudo isso, convencer a Alemanha e os países com maior poder financeiro a vir em socorro dos outros.
Isto é, emprestando dinheiro quando os países mais vulneráveis pura e simplesmente não tinham dinheiro para continuar a funcionar: não tinham dinheiro para pagar a funcionários públicos, a militares, ao sistema de saúde, escolas, segurança, hospitais, entre outros.
Simplesmente estes países, entre os quais Portugal, estavam numa situação de pré-falência, ou mesmo de insolvência.
Por isso, a situação - repito - não foi criada pela zona euro porque houve países que não estavam na zona euro. E se não estivéssemos na zona euro, o que provavelmente teria acontecido é que não teria havido ajuda dos outros países. Haveria com certeza um programa do FMI. Aliás, em condições bem piores, os empréstimos que os países pagam ao FMI são mais elevados do que aqueles que pagam aos outros países da zona euro e aos mecanismos europeus.
Então tivemos de fazer alguma coisa, que eu já disse, que foi construir barcos salva-vidas no meio da tempestade, ou até mesmo no meio do naufrágio. Como imaginam não é fácil construir barcos salva-vidas no meio do naufrágio. Então o que fizemos? Criámos nova legislação para o sistema financeiro. A Comissão que tive a honra de presidir apresentou mais de 30 propostas de legislação para pôr alguma ordem, alguns princípios, criar o chamado single rules book , ou seja, regras comuns para a zona euro em termos financeiros para todos os setores da área financeira.
Criou-se o novo sistema de governação da zona euro, com muito maior disciplina, dando também poderes à Comissão Europeia que antes não tinha.
Para vos dar um exemplo: na minha primeira Comissão, quando começámos a ter algumas dúvidas sobre as contas gregas, a comissão e eu próprio propusemos aos governos que se dessem poderes ao Eurostat - o serviço de estatística da UE - de verificar, de fazer auditorias internas à contabilidade dos Estados-Membros. Foi recusado, com o argumento da soberania. Os habituais soberanistas: "Não, isso não pode ser, vir cá a comissão, os burocratas, os tecnocratas, cheirar as nossas contas, não pode ser” e quem votou contra foi a Alemanha e a França, não foi a Grécia.
Na minha segunda Comissão, a primeira lei que pus na mesa do Conselho foi poderes para o Eurostat e aí já foi aceite. Porque se tinha compreendido, aquilo que é óbvio para mim, que se queremos ter uma moeda única, os países que partilham uma moeda têm que aceitar um nível de integração e de confiança muito maior do que aquele que havia. Isto é indispensável.
Não é por uma questão de fundamentalismo institucionalista, mas por questão de europeísmo é uma regra fundamental.
A credibilidade de uma moeda, em última análise, depende da solidez e da credibilidade da construção institucional que está por detrás dela.
Nos momentos mais agudos da crise, quando por exemplo no G20 tive de responder a perguntas do Presidente Obama, do Presidente russo e do chinês e do Primeiro-Ministro indiano, entre outros, acerca do futuro do euro, a questão que me punham não era sobre qual era o deficit da Grécia, mas sim: "Acreditas que o euro vai sobreviver? Que há vontade política por detrás disso? Acreditas que a Alemanha vai continuar a aceitar mobilizar estes biliões e assim também permitir que outros participem no esforço coletivo?”.
Ou seja, no final é uma questão política e para esta funcionar entre países independentes e soberanos é necessário aceitar um maior nível de integração.
Além disto, da nova legislação para os mercados financeiros, da nova regulamentação europeia em termos da governação da zona euro, criámos novas instituições. Tecnicamente não se chamam instituições mas na prática são-no. Por exemplo, o Mecanismo Europeu de Estabilidade que tem hoje 700 mil milhões de euros e é uma espécie de Fundo Monetário Internacional - FMI - europeu, para acorrer em caso de necessidade.
Nada disto existia, foi tudo criado ex novo.
Também criámos depois os programas para os países que os pediram, não foi a UE que impôs um programa a Portugal, à Irlanda ou à Grécia. Foram esses países em estado de necessidade que vieram pedi-los.
Portanto, como eu costumo dizer, não foi a Troika que criou a crise, mas a crise que criou a Troika. A Troika veio porque os países pediram porque não estava eles próprios em condições de aceder aos mercados, não tinham meios para se financiarem e manterem as próprias despesas correntes do Estado.
Outra coisa que fizemos foi lançar a nível mundial uma resposta em que na realidade também participei e foi durante a presidência francesa de Sarkozy que na altura tinha a presidência rotativa da UE, fomos a Camp David convencer o Presidente Bush - ainda era ele em 2011 - a organizar o primeiro G20.
Ou seja, as 20 economias mais importantes do Mundo, que na realidade são um pouco mais do que 20, para haver uma aposta coordenada para evitarmos o regresso ao protecionismo e haver um esforço coordenado na regulamentação financeira global para se lutar contra a evasão e a fraude fiscais a nível mundial.
É um esforço que não pode ser feito isoladamente, tem de ser feito em conjunto e a verdade é que esse G20 hoje em dia se institucionalizou como o primeiro fórum de governação global em termos económicos.
Ou seja, a União Europeia reagiu. Podia ter reagido mais depressa? Podia ser mais ambiciosa, com certeza que podia. Quero dizer-vos que a Comissão e o Parlamento Europeu lutaram sempre por essa maior ambição.
Mas a UE é muito complexa, como vocês sabem.
Um ponto que queria discutir convosco é sobre o que falamos quando falamos de Europa. Porque é fácil para os políticos nacionais dizer, quando as coisas correm mal, apontar a Europa; aquilo que tenho chamado de "europeização do fracasso e a nacionalização do sucesso”: quando as coisas correm bem o mérito é dos políticos nacionais, quando correm mal é culpa da Europa.
Agora, a discussão sobre a imigração dizem "a Europa é incapaz”, mas a Europa quem? Os governos europeus são incapazes, não estão a ser capazes de dar uma resposta à imigração. Não ponham a culpa na Europa em geral. É muito fácil pôr a culpa na Europa em geral. A Europa tem as costas largas, como se costuma dizer.
São os governos europeus que não estão a ser capazes de se entender relativamente às propostas que a Comissão Europeia - estou absolutamente à vontade, já não sou eu que estou na Comissão - pôs em cima da mesa para solidariedade e responsabilidade na resposta à essa crise de emergência.
Portanto, quando falamos de Europa temos de ser claros: há responsabilidades que são nacionais e há as que são europeias. Temos de analisar cada uma das responsabilidades em função daquilo que está nos Tratados e também na política europeia.
Na resposta à crise, nós, Comissão Europeia e também posso dizer nós, a maioria do Parlamento Europeu, queríamos maior ambição, uma mutualização da dívida mais clara e maior solidariedade. Mas também temos de reconhecer (e é algo que muitas vezes na opinião pública portuguesa é difícil passar, até porque muitos daqueles que nela mais opinam não têm o cuidado de explicar) que a Europa hoje em dia tem a União Europeia com 28 países com culturas económicas, financeiras, políticas, muito diferentes. Não podemos querer que os outros sistematicamente pensem exatamente como nós, há diferenças muito grandes.
Não falo apenas das diferenças entre, por exemplo, uma Finlândia e uma Grécia, mas desde logo a diferença entre uma França e uma Alemanha. Trabalhei nestes dez anos, dia e noite, com os países. A Comissão é uma espécie de sala de máquinas da União Europeia. Conheço muito bem estas susceptibilidades e as diferentes sensibilidades.
Por isso, a solução europeia tem de ser uma solução por consenso e por compromisso.
Não somos um Estado, um país, como os EUA, a China, o Brasil ou a Rússia, somos uma união de Estados e é muito importante que aqueles que são europeus e sobretudo aqueles que se dizem europeístas expliquem que numa união de Estados não pode haver uma opinião que prevaleça sobre todas as outras. Tem de haver compromisso e é assim que se faz a Europa.
Por isso é que eu tive sempre confiança, nos momentos mais agudos da crise - e houve momentos extremamente complicados -, que íamos conseguir encontrar uma solução.
Apesar de partirem de pontos de vista muito diferentes, os Estados tinham um interesse fundamental em manter o euro. O nível de integração na Europa é muito maior do que aquilo que as pessoas geralmente lhe atribuem.
Para vos dar um exemplo: o Norte da Itália está mais integrado com a Alemanha do que com partes da Itália e na Alemanha há partes que estão mais integradas com a Itália ou a França do que com o resto da Alemanha.
Nós, hoje em dia, temos de facto um nível de integração económica que é o maior alguma vez alcançado na História das relações internacionais.
A União Europeia é, sem dúvida, o maior caso de sucesso em termos de integração regional na História das relações internacionais.
É por isso que penso que quando se fizer com alguma distância a História deste período se há-de reconhecer que poderia ter havido aqui e além outra solução, nomeadamente se os governos tivessem prontos para isso, mas no essencial demos uma resposta à situação.
Penso que no essencial, nos seus aspetos digamos existenciais, essa crise está atrás de nós; temos ainda muitos problemas mas, hoje em dia, o euro e a própria zona euro aparecem como uma zona de estabilidade comparando com o que se passa noutras partes do Mundo.
Isto nem sempre foi fácil. Imaginem qual era a minha posição quando estava no G20 com os meus colegas europeus e ouvíamos os outros países a darem-nos lições sobre aquilo que devíamos fazer. O Presidente Obama falava cerca de oito minutos, o Presidente chinês também, mas depois tinha de estar a ouvir 45 minutos a Presidenta da Argentina a dizer como é que nós tínhamos de responder a uma crise de uma dívida soberana.
Não é fácil. Aí tivemos de usar desta extraordinária paciência europeia de estar a ouvir disparates sobre disparates quando na realidade nós sabíamos que a crise era séria mas que havia de se encontrar uma solução.
Qual foi essencialmente a linha que seguimos? Além daqueles que já disse da nova construção constitucional, foram três pontos: consolidação orçamental, reformas estruturais e investimento.
A consolidação orçamental por quê? Mais uma vez, não é por qualquer preconceito ideológico, mas porque naquele momento sobretudo em que havia o pânico dos mercados, se o sinal que nós déssemos fosse de irmos gastar mais, como querem alguns economistas, era óbvio que aumentaria a desconfiança dos mercados em relação a esses países que não voltariam a condições de se poderem financiar.
Por isso, definimos uma consolidação orçamental. Nalguns casos, é verdade, teríamos preferido que fosse uma curva mais suave do que aquela que foi, mas era com os meios que os governos punham à nossa disposição. Mais uma vez digo: há uma diferença evidente entre países do Sul e países como a Alemanha, a Holanda ou a Finlândia.
Deixem-me, aliás, dizer-vos que aqui em Portugal e nalguns países põem-se sempre a Alemanha na posição mais extrema, mas não é verdade. A Alemanha, comparando as posições do governo alemão ao longo destes anos com as do holandês ou as do finlandês, posso dizer-vos que a Alemanha aparece como muitíssimo moderada e normalmente procurando uma solução de compromisso.
Penso que esta crise mostrou algo que é muito importante: a extraordinária resiliência da União Europeia. Uso a expressão resiliência que é uma expressão que vem da física, chamando-se resiliência à capacidade que um material tem de voltar à sua forma inicial depois de um período de grande tensão. Também se utiliza, aliás, a expressão resiliência na psicologia, sendo a capacidade de uma pessoa de depois de um trauma profundo conseguir reconstituir-se e voltar a ter uma atitude positiva perante a vida.
Penso que é um bocado o que se passa com a UE. Houve um trauma profundo, estamos ainda a sentir os efeitos desse trauma com consequências muito difíceis do ponto de vista económico e social, nomeadamente com o primeiro drama interno europeu que é o desemprego, incluindo o desemprego jovem. Mas a verdade é que a Europa foi capaz de resistir a essa situação e está hoje no caminho do crescimento.
É um crescimento que está aquém do que deveria estar, pois nada será como dantes, visto que a crise deixou marcas profundas e as sequelas são evidentes, mas a verdade é que a Europa está hoje a crescer.
A Europa aparece como um referencial de estabilidade quando comparamos com algumas economias ditas emergentes que como aliás, na altura, dissemos, tinham outros problemas por resolver.
Porque se olharmos hoje para a situação hoje no Mundo, desde a Rússia ao Brasil, à África do Sul, mesmo agora estas inquietações grandes relativamente à China e o caso da Turquia, verificamos que há problemas que as economias mais avançadas já resolveram e que esses países ainda não foram capazes de resolver.
Ou seja, têm um crescimento e espero que continuem a ter pois é fundamental para a Europa e para todos nós um crescimento global, é um crescimento muito acima do europeu porque são economias ditas emergentes, que ainda não atingiram a maturidade, mas há problemas sistémicos que ainda não conseguiram enfrentar adequadamente.
É por isso que hoje quando se pergunta aos investidores onde é que pensam em investir a nível global, cada vez se orientam mais para a Europa e a confiança está a voltar.
Quando olhamos para a Europa temos de atender à sua natureza. Já referi que a Europa não é um Estado, mas também não é uma organização internacional de tipo clássico, não é como as Nações Unidas ou como a NATO, ou a OSCE. A Europa é algo que recolhe elementos federais e elementos intergovernamentais.
O Jacques Delors chamou uma vez a Europa de OPNI, um objeto político não identificado. A verdade é que a Europa, tal como os chamados discos voadores, causa muitos problemas aos controladores de tráfego aéreo, sejam eles verdadeiros controladores de tráfego aéreo ou analistas políticos.
Porque não está nem numa nem noutra categoria.
Temos elementos federais na Europa: a Comissão com os seus poderes supranacionais, o Parlamento Europeu diretamente eleito pelos cidadãos, os próprios poderes do BCE que nalguns casos são maiores do que os do FED norte-americano, o princípio do direito diretamente aplicável nas ordens jurídicas dos Estados-Membros e o próprio princípio da primazia do direito comunitário sobre o direito nacional e a própria moeda única para os países do euro. Mas, atenção, no final quem decide são os governos, não é a Comissão; a Comissão Europeia propõe, tirando o caso da política de concorrência em que toma as decisões definitivas havendo contudo hipótese de recurso para o sistema do Tribunal de Justiça, e em todos os outros domínios as decisões são tomadas pelos governos.
Na maior parte dos casos ocorre em co-decisão, isto é, com o Parlamento Europeu.
Por exemplo, as decisões da zona euro foram todas tomadas por unanimidade, tanto com governos de direita como de esquerda. Mas havia de facto um mix que era a Troika. Esta tinha o dever de pôr em prática as decisões tomadas pelos governos e preparar também essas decisões do ponto de vista técnico, tendo havido aí um trabalho difícil, nomeadamente compatibilizando as perspetivas da Comissão e do BCE com a do FMI, que eram às vezes bastante distintas.
Mas, atenção, os governos é que muitas vezes se esconderam atrás da Troika. Foi interessante ver o caso grego quando apareceu o novo governo a dizer que não falava com a Troika, nem com burocratas e tecnocratas, quis discutir diretamente com os outros governos e a verdade é que as resoluções foram as mesmas e a partir de certa altura, por causa de erros políticos cometidos pelo governo grego, foram piores.
Ou seja, o governo grego está hoje a aplicar um programa mais difícil do que aquele que teria aplicado se não tivesse criado toda aquela confusão que criou. Mas houve aqui um aspeto interessante e útil, (infelizmente o povo grego está a pagar por isso um preço muito elevado) é que ficou aqui demonstrado que aqueles programas não eram uma criação arbitrária da Troika mas sim a decisão unânime dos Estados-Membros da zona euro, incluindo governos socialistas, de esquerda, ou que como tal se afirmam.
Na realidade, a margem de decisão nestas matérias é muito pequena. Pode depois se opinar o que se quiser, o comentário é livre e como se sabe a asneira não paga imposto, mas quando se tratou da decisão os governos tiveram de decidir naquele sentido.
Isto é importante entendermos, nomeadamente quando discutimos o futuro da nossa política, o futuro de Portugal. Entender em que contexto estamos e o que é necessário fazer se não queremos perder o capital de confiança que entretanto conseguimos ganhar.
Portanto, a UE é esta construção sui generis : nem um Estado, nem uma organização institucional de tipo clássico.
Costumo, muitas vezes, usar a imagem do andaime. É como se fosse um edifício em permanente construção: vemos os andaimes, não gostamos muito de os ver, mas por trás há um belo edifício em construção, que é a União Europeia.
É esse o nosso projeto. A União Europeia nasceu com um objetivo de paz, depois da II Guerra Mundial, nomeadamente nos anos 50 quando se procurou reconciliar antigos inimigos como a França e a Alemanha. Foram seis países: a França e a Alemanha, mais a Itália e os países do Benelux, Bélgica, Holanda e Luxemburgo, que criaram a comunidade europeia.
Primeiro, criaram a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, depois a Comunidade Económica Europeia e também a Euratom, que veio a dar este projeto que é a União Europeia que se foi alargando sucessivamente: seis, nove, dez, 12, 15, 25 e já com o meu mandato os 27 e 28 países.
Hoje tem uma dimensão continental e é por isso que mais uma vez eu queria pôr esta questão: quando falamos de declínio, falamos de quê?
Estamos a falar de comparação com que período, com que idade de ouro?
Aqueles que hoje em dia dizem que a Europa está em declínio estão a comparar a situação atual com qual? Com a que se vivia há 30 anos atrás com metade da Europa sob regimes totalitários de tipo comunista? Era esse o grande momento da Europa? Quando uma grande parte da Europa não conhecia a liberdade?
Ou estão a pensar que a Europa era melhor há 40 anos atrás? Quando a Europa, por exemplo Portugal, Espanha ou a Grécia, viviam sob ditaduras? Era essa a Europa que queriam? A Europa dos nove ou dos dez, ou então a inicial com seis que era sem dúvida mais íntima?
Há nalguns meios europeus esta saudade, esta nostalgia da Europa dos seis. Mas, isso não é a Europa, isso é uma pequena parte da Europa.
Hoje, a UE tem uma dimensão continental. Como aliás disse o João Paulo II, hoje a Europa pode respirar com os seus dois pulmões.
A Europa, meus caros amigos, tem hoje muito mais influência e poder no Mundo do que alguma vez teve.
No passado, houve países europeus que tiveram influência, houve a idade dos impérios e do nacionalismo que aliás levou a Europa ao terror que foi o séc. XX. Com duas guerras mundiais que foram duas guerras civis europeias, com o Holocausto, talvez o período mais negro da história da humanidade e que se passou na Europa mais civilizada. Essa é a Europa a que nunca mais vamos voltar.
Hoje, a Europa tem muitos problemas e sérios, sociais, por exemplo o da imigração, sobre o qual podemos depois falar mais hoje.
A Europa como projeto, hoje, é na realidade politicamente algo que está a crescer, tem mais influência e poder.
Posso dizer-vos isto com algum conhecimento de causa, porque fui Ministro dos Negócios Estrangeiros muito jovem, em 1992. Na altura éramos 12 países na UE. Participei em muitos Conselhos Europeus.
Na altura, os ministros dos Negócios Estrangeiros participavam nos Conselhos Europeus, com Jacques Delors, François Mitterrand, Helmut Kohl, Felipe González e de Portugal obviamente era o Prof. Cavaco Silva.
Quando hoje em dia na Europa se fala com saudade desse tempo, eu rio-me, porque na altura a Europa não só tinha muito menos poderes do que tinha hoje como não tinha de forma alguma a influência que tem hoje.
A forma como atualmente norte-americanos, russos, ou chineses, olham para nós é como o primeiro bloco comercial do Mundo, o maior doador de ajuda ao desenvolvimento. É preciso não esquecer esta dimensão, nomeadamente em relação a África a que queremos continuar tão ligados.
Também olham para nós e é como é de facto, uma economia social e de mercado; gosto de incidir nestas palavras que são as duas expressões necessárias, há quem queira só a parte social sem querer o mercado, há os que querem só o mercado sem querer o social, mas nós construímos na Europa das sociedades mais decentes que há no Mundo.
Sem qualquer arrogância, mas devemos estar orgulhosos disso. Onde há igualdade de direitos entre homens e mulheres, porque infelizmente há muitas zonas do Mundo em que esse igualdade nem sequer existe na lei, o princípio da dignidade humana e o da liberdade é uma condição para fazer parte da UE. A liberdade, coisa que não é condição obrigatória para se fazer parte de outras organizações internacionais.
É por isso que temos - sem arrogância, repito, porque a arrogância já custou muito à Europa e aos europeus - razões de nos sentirmos orgulhosos de nos sentirmos europeus e temos, penso eu, o dever de defender este projeto.
Não é um objeto perfeito porque não há nenhuma construção humana perfeita, mas que é sem dúvida do ponto de vista política algo que nos aproxima mais de valores essenciais como o valor da paz.
Foi por isso que tive em 2012 a honra, juntamente com o meu colega do Conselho Europeu e do Parlamento Europeu, de receber o Prémio Nobel da Paz em Oslo em nome da UE.
A Europa nunca viveu ao longo da sua História 60 anos de paz. Nos últimos anos, aqueles países que fazem parte da UE conseguiram viver, mas bem perto de nós, da Ucrânia, estamos a ver o que é a guerra e o que são essas terríveis ameaças aos nossos valores fundamentais.
É por isso que a Europa não sendo perfeita é um projeto que merece ser acarinhado e que precisamos de pessoas que não são europeístas dos tempos fáceis mas em todas as estações. É fácil ser-se europeísta quando se trata só de receber os fundos estruturais, é mais difícil ser-se europeísta quando se trata de defender um projeto com sentido de compromisso, pondo acima de tudo um interesse nos nossos valores. Porque a Europa é e continuará a ser uma construção baseada em valores.
Muito obrigado pela vossa atenção.
[APLAUSOS]
Simão Ribeiro
Muito obrigado Dr. José Manuel Durão Barroso.
Dou já a palavra à plateia, aos alunos da Universidade de Verão 2015. Para começar, João Gomes Ferreira do Grupo Azul.
João Gomes Ferreira
Dr. Durão Barroso, antes de mais, bom dia e bem-vindo.
Tendo em conta que pode ser citado a chamar de xenófobos e populistas aos novos movimentos de identidade nacional que visam lidar com os conflitos culturais fruto da imigração não-europeia, a pergunta é a seguinte: quando fala de democracia na Europa é positivo apenas quando convém, ou defende genuinamente o processo democrático pelo qual a população expressa o seu crescente descontentamento com a situação atual?
José Manuel Durão Barroso
É sobre a xenofobia ou sobre a Europa em geral?
João Gomes Ferreira
A pergunta é sobre democracia na Europa na sua total extensão.
José Manuel Durão Barroso
Muito bem. A UE, como disse há pouco, é o único projeto político que eu conheça que é transnacional democrático. Nas Nações Unidas as decisões são tomadas pelos governos mas não há uma legitimação popular.
Nós, na UE, as instituições europeias, nomeadamente a Comissão que é o executivo europeu responde perante o Parlamento Europeu que é diretamente eleito pelos cidadãos.
Portanto, não há na História da Humanidade - repare bem que eu costumo medir as minhas palavras - caso tão avançado de democracia supranacional ou internacional como é a UE.
Mas isto coloca um problema: é que nós temos a democracia europeia, ou seja, temos instituições europeias que são responsáveis perante o Parlamento Europeu, mas também temos as democracias nacionais e muitas vezes temos aqui um conflito entre a ordem nacional e a europeia.
É um assunto que se resolve de acordo com as instituições, com a regra do direito. Os poderes que a UE tem são os poderes que as democracias nacionais lhe deram. Insisto neste ponto e sob esse aspeto é muito útil, porque muitas vezes aparece a ideia de que está a ser imposta alguma coisa a partir de Bruxelas. O quê? Os poderes de Bruxelas são os poderes que os governos lhe deram.
O Tratado de Lisboa que é atualmente o tratado de referência da UE, mas os anteriores, Maastricht, Amesterdão, ou o tratado fundador, todos eles foram negociados, aprovados, assinados e ratificados pelos países. Não apenas pelos seus governos; nalguns casos foram por referendos, noutros pelos parlamentos.
Portanto, a base democrática da UE é incontestável e é o princípio da democracia representativa. Primeiro, é preciso ser uma democracia para ser parte da UE, não é como na NATO.
Portugal, não sendo uma democracia, fazia parte da NATO, ou a Turquia e a Grécia, entre outros países. Portanto, a primeira condição é ser uma democracia, logo aqui estamos acima de outras organizações.
Peço desculpa mas acho que acima pois é melhor ser-se democrata do que não se ser.
Por outro lado, temos mecanismos de accountability , ou seja, mecanismos de responsabilização.
Agora, o que também é preciso compreender é que são muitas as democracias europeias, neste momento são 28 e claro que não são perfeitas. A democracia é sempre um trabalho em progresso.
Por isso, não pode uma democracia arrogar-se do direito de impor às outras a sua visão.
Estou a dizer isso porque houve recentemente - e se calhar isso também podia estar implícito na sua pergunta - a questão grega sobre a qual havia muita gente na opinião publicada em Portugal. A seguir ao 25 de Abril escapámos à ditadura do proletariado mas não da ditadura do comentariado.
[RISOS]
Em Portugal, muita gente tem uma opinião muito negativa: "a Europa está a asfixiar a democracia grega”, mas e as outras democracias? Quero dizer, o Parlamento grego é respeitável, o referendo do povo grego é ultra-respeitável, mas os outros também têm direito de ter as suas opiniões.
Por isso é que há pouco eu dizia que a Europa é o compromisso.
Há casos em que as decisões são tomadas por maioria qualificada, hoje em dia é um progresso em termos de facilitar a decisão, mas há casos em que a decisão é tomada por unanimidade.
Aliás, nestes casos da zona euro as decisões foram tomadas por unanimidade.
Portanto, acho que a UE é uma democracia. Ora, o que é que dificulta essa perceção? Porque a sua pergunta tem razão de ser, há uma desilusão dos cidadãos hoje em dia em relação à Europa e à democracia europeia.
As pessoas têm um sentimento de que há uma distância muito grande, é verdade. Nós não temos ainda um verdadeiro espaço político europeu.
A comunidade política fundamental de referência continua a ser e acho que continuará a ser durante muito tempo o chamado Estado-Nação.
Quero dizer, nós referimo-nos a Portugal, os alemães à Alemanha, os franceses à França, os espanhóis à Espanha, etc., mas agora temos 24 línguas oficiais na UE e é difícil seguir os debates, as questões são difíceis e complexas.
Se já o são a nível nacional imaginem como serão a nível europeu. A verdade é que o Parlamento Europeu apesar de todos os esforços que já fizeram, continua a ser visto como muito distante, não há o tal espaço político europeu.
Do ponto de vista da responsabilidade ela está lá e existe a Comissão Europeu que é o quase executivo europeu (não é totalmente) e que é responsável perante o Parlamento. Mas, portanto, o que nos falta é o sentimento de apropriação do projeto europeu.
Por isso, insisto naquilo que referi há bocadinho ali: é importante que os governos mas também os partidos e a sociedades civis se apropriem do projeto europeu, que deixemos esta ideia muito comum no nosso e noutros países de "eles lá em Bruxelas, nós aqui”. Não, nós somos Europa, Portugal é membro da UE e tomou decisões.
Então quando são países de maior dimensão fico mesmo chocado: quando vejo governos tomarem decisões em Bruxelas e voltarem para casa e dizerem "eles, Europa, estão a impor-nos estas decisões”. Não, as decisões foram tomadas, muitas delas, por unanimidade.
Portanto, tem de haver uma apropriação do projeto europeu. É por isso que é importante o debate e que as sociedades, as universidades, as escolas, grupos dos sindicatos, empresários, forças da sociedade civil, deixem esta posição defensiva em relação à Europa de dizerem que a Europa decide, porque não, nós podemos decidir e temos uma palavra a dizer. Se a dissermos ela pode contar.
Mais uma vez, agora, porque estamos numa universidade política, meus caros amigos, faço uma observação geral. Há uma coisa que gostava de vos dizer: pensem sempre qual é a alternativa, porque isso é que é o julgamento político.
É fácil dizer que hoje em dia na Europa a Alemanha tem um poder excessivo. Imaginemos sem a UE, acham que a Alemanha não teria um poder excessivo? Teria provavelmente mais poder, pois não haveria regras.
Temos de ver qual é a alternativa. A democracia europeia não é perfeita, mas seria melhor se cada país decidisse por si próprio? Alguém acha sinceramente que seria melhor? Penso que não, penso que seria voltar atrás.
Agora, há riscos que não são apenas europeus. Aqui há tempos discutíamos isto com o Presidente Obama numa cimeira entre União Europeia e Estados Unidos em Bruxelas. O Presidente Obama perguntou-me a minha opinião em relação aos movimentos xenófobos, nacionalistas e nalguns casos até racistas que infelizmente há na Europa. Respondi-lhe que havia, que era verdade e contrapus-lhe o caso do Tea Party nos Estados Unidos. Ele reconheceu que o Tea Party também é um movimento nacionalista e xenófobo.
Vejam que agora o candidato que vai à frente nas sondagens do Partido Republicano, o senhor Trump, tem feito observações xenófobas, racistas, contra os mexicanos. Nós na Europa temos alguns políticos palhaços, mas normalmente reconhecemos como tal. O caso daquele líder em Itália que é mesmo palhaço profissional, o senhor Grillo.
Nos EUA temos à frente nas sondagens do Partido Republicano alguém que, enfim, nem sei como qualificar.
O que quero dizer com isto? É que o problema não é especificamente europeu, mais uma vez. Meus amigos, a xenofobia e o nacionalismo infelizmente estão em todo o lado.
Aqui há tempos imigrantes que chegaram à Malásia foram mortos e postos em valas comuns que foram dissimuladas. Muros para impedir os mexicanos de entrar nos EUA e milícias populares para matar os pobres imigrantes mexicanos, houve e há nos EUA.
Na Europa também temos esse demónio da xenofobia, do racismo, mas temos de lutar contra isso com uma resposta responsável. Resposta responsável, essa é a questão. A sua pergunta tocou tantos pontos e por isso peço desculpa por estar a ser um pouco longo.
Acho que temos também de saber (em relação a este movimento de migração para a Europa) lutar contra o crime que é o tráfico de seres humanos, contra as redes criminosas que exploram essa tragédia, mas também de saber mostrar solidariedade e acolhimento para aqueles que procuram a Europa.
Isso tem de ser feito de forma responsável, tem de haver uma partilha entre os diferentes governos europeus e sobretudo um grande esforço de integração daquelas pessoas. Aliás, alguns governos já estão a preparar isso. Por exemplo, não me parece que seja excessivo exigir àqueles que vêm para um país que aprendam a língua do país para depois se poderem integrar no país e poderem trabalhar.
Nós, aliás, temos um problema demográfico na Europa. Portanto, a migração bem gerida pode ser um trunfo para a Europa.
Estive em Lampedusa, é uma situação que nunca esquecerei, visitei depois daquele naufrágio onde mais de 300 pessoas morreram à vista de Itália, da ilha de Lampedusa. Estive lá com o Primeiro-Ministro italiano e nunca me esquecerei de ver mais de 300 caixões alinhados num hangar ali perto do porto, alguns pequenos caixões que eram de crianças ou mesmo bebés que estavam a fazer a travessia do Mediterrâneo.
Ora, como responder a esta situação? É óbvio que aqui há um dever humanitário, que a Europa e a União Europeia comparando com outros países não está a fazer o mesmo esforço, há países mais fracos que a Europa, economicamente e politicamente, como o Líbano ou a própria Turquia que estão a fazer um esforço maior do que nós.
Agora, tem de ser de facto bem controlado, tem de ser uma política de portas abertas mas não escancaradas, tem de ser com responsabilidade, porque senão vamos dar um argumento aos extremistas, aos xenófobos que então sim podem colocar movimentos racistas na Europa de longo alcance.
É um equilíbrio difícil. Penso que tem de se conseguir a resposta através da concertação europeia.
Portanto, resumindo, a Europa não sendo perfeita é uma construção democrática; a xenofobia não é algo exclusivo da Europa e podemos responder à questão com solidariedade e com responsabilidade.
Simão Ribeiro
Obrigado. De seguida, Sofia Oliveira, do Grupo Amarelo.
Sofia Oliveira
Bom dia. Dr. Durão Barroso, falou-nos há bocado da guerra não declarada entre a Ucrânia e a Rússia. Apesar de aqui em Portugal ter-se falado disso na altura, deixou-se entretanto de falar mas continua a acontecer.
Sei que a União Europeia não pode resolver todos os problemas do Mundo, era bom, mas este é um problema que está a acontecer mesmo aqui ao nosso lado, na Europa, com um país que gostava de fazer parte do projeto europeu. Gostava de lhe perguntar o que é que de facto se está a passar na Ucrânia, já que o tema é sobre o que se passa na Europa. Acha que aquilo que a UE fez foi o suficiente, ou se acha que devíamos ter ido mais longe, ou se ainda devemos ir mais longe? Obrigada.
José Manuel Durão Barroso
A questão da Ucrânia é que se cometeu uma violação completa do direito internacional. A Ucrânia é um país que, como sabe, está entre a Rússia e a União Europeia e queria vir mais perto para a União Europeia.
Negociámos - eu próprio estive nessas reuniões, nem sempre eu mas era o Presidente da Comissão -, durante cinco anos com a Ucrânia um acordo de associação que incluía uma parte comercial. Em inglês diz-se Deep and Comprehensive Free Trade Area ou Free Trade Agreement, ou seja DCFTA.
Negociámos durante cinco anos aquele acordo que era uma aspiração das diferentes forças políticas da Ucrânia, incluindo as chamadas forças pró-russas, curiosamente. O Presidente Yanukóvich queria aquele acordo. Passei horas e horas a falar com ele sobre o assunto, embora ele fosse considerado pró-russo.
Só que a Ucrânia rubricou o acordo mas quando ia assinar o acordo a Rússia fez ameaças e o Presidente Yanukóvich veio ter connosco na Cimeira de Vilnius com os governos todos da UE e disse que não podia assinar o acordo.
A mim, pessoalmente, disse que não podia porque os russos não deixam e que se o fizer isso podia levar à fragmentação do país, nomeadamente da parte Leste da Ucrânia.
Depois, houve a frustração da maior parte dos ucranianos, nomeadamente dos mais jovens na chamada Maidan, a praça central de Kiev.
Mais uma vez faço um parênteses para aqueles que acham que a Europa está em crise. Se vissem aqueles milhares e milhares de ucranianos, com temperaturas negativas, a mostrarem a bandeira europeia, não é porque a Europa está em crise; eles querem juntar-se ao modelo europeu de liberdade, de economia social de mercado, de progressividade que é a Europa.
A verdade é que depois houve uma revolta, o Presidente Yanukóvich teve de sair do poder e a Rússia anexou a Crimeia, parte da Ucrânia.
Não pode haver justificação para um país muito maior - que neste é o maior país do Mundo, como sabem a Rússia em termos de extensão geográfica é o maior país do Mundo -, pegar em parte de um país vizinho mais pequeno e declarar que essa parte é sua, organizando à pressa uma espécie de referendo que não teve qualquer democraticidade e dizer "isto é nosso”. Foi o que se passou.
No Conselho de Segurança das Nações Unidas a ação foi condenada mas teve veto da Rússia e uma abstenção da China. Todos os outros países, europeus e não-europeus, condenaram a Rússia na Assembleia Geral. Mas obviamente a Rússia como membro permanente do Conselho de Segurança pode impedir medidas mais gravosas. O que é que a Europa podia fazer? Podia fazer várias coisas: a primeira era não fazer nada, o que em política é sempre uma hipótese, não fazer nada, fechar os olhos e fingir que não era grave. Dizer: "Ao fim e ao cabo, houve tempos em que a Crimeia já foi da Rússia, eles falam russo, por quê estarmos a incomodarmo-nos, a Rússia para nós é muito mais importante do que a Ucrânia já que é o nosso principal fornecedor de gás; vamos esquecer isto e passar à frente.”, era uma hipótese.
Havia outra hipótese que era mobilizar a guerra contra a Rússia. Perante estas hipóteses alternativas acho que a Europa tomou a posição adequada que foi de mostrar a nossa condenação e a nossa indignação, não apenas através de um discurso diplomático - isso foi feito, os comunicados foram aprovados e tudo isso - mas vamos fazê-lo através de sanções que são um grau acima daquilo que se faz com declarações do ponto de vista formal diplomático.
Fiquei bastante orgulhoso, devo dizer, porque apesar das diferenças que há na Europa e apesar de alguns dos nossos países europeus estarem 100% dependentes no que diz respeito ao fornecimento de gás da Rússia (Portugal tem zero de dependência) mas os países aceitaram a posição comum da União Europeia. Isto demonstra que apesar de tudo e do que dizem os críticos, a Europa é capaz de tomar decisões de conjunto.
Penso que foi a decisão correta. Ao mesmo tempo lançámos um processo. Na altura, quando lá estive, eu próprio fui convidado pelo Presidente Putin a ir a Minsk, não fui por razões várias mas foi a Comissão, enviei três comissários: A Vice-Presidente da Comissão e também Alta Representante, o Comissário da Energia e o Comissário do Comércio. A senhor Merkel tomou a iniciativa; é interessante que a Alemanha tomou uma iniciativa muito importante juntamente com a França mas na realidade o grande instigador foi a Alemanha. Fizeram-se os chamados Acordos de Minsk, que a Rússia continua a não respeitar.
Portanto, temos uma situação em que acho que temos de mostrar paciência e estratégia.
Penso que está fora de questão a UE reconhecer a anexação, seja lá qual for. Temos de manter o diálogo com a Rússia que é um parceiro importante. Não sou a favor de qualquer tipo de nova guerra fria, acho que não é interessante, mas numa posição de princípio. Portanto, repito que acho que numa posição inicial a UE foi correta e que de acordo com os princípios foi equilibrada, não é a ideal mas qual seria a alternativa? Não me parece que a alternativa seja partir numa guerra generalizada, nem os europeus nem os americanos querem que tal aconteça.
Razão pela qual, aliás, agora como sabem a NATO está a reorganizar-se mas para os países que são membros da NATO e a Ucrânia não é membro da NATO.
Mais questões?
Simão Ribeiro
Temos o Francisco Silva, do Grupo Laranja.
José Manuel Durão Barroso
Julgava que o Grupo Laranja era o primeiro.
[RISOS]
Ontem cheguei um pouco tarde, já passava da uma da manhã, vim de férias e encontrei um grupo muito ativo. Falei um bocado com eles, mas achei-os um bocado tristes. Depois disseram-me que eram o Grupo Rosa.
[RISOS]
Francisco Silva
Quero, desde já, saudá-lo.
Nos últimos anos, temos assistido na Europa ao facto de termos sido abatidos pela crise económica e financeira há relativamente pouco tempo e há um ressurgimento dos nacionalismos e extremismos desde a direita à esquerda em diversos países da União Europeia, ou seja, dentro de portas.
Gostaria de mencionar a Hungria que mais recentemente está a construir um muro na fronteira com a Sérvia, são mais de 200kms. Ou seja, já sabemos onde os muros vão dar. Uma frente internacional emergente em França e uma extrema-direita nalguns países nórdicos, nomeadamente na Holanda e na Suécia, têm vindo a ganhar terreno no panorama político nacional destes países.
Nesta situação, tendo em conta o que se está a passar a nível político na Europa, a pergunta que eu queria fazer é: qual é o caminho que as instituições europeias deverão tomar para que a solidariedade e a moderação - que são valores comuns e que justificam a existência desses países-membros enquanto união política, económica e monetária - voltem a orientar e a nortear a atuação política deses países-membros?
José Manuel Durão Barroso
As instituições europeias estão a explicar e a fazer a sua pedagogia, mas repito o que disse há pouco: acho que o essencial não está aí, o essencial está a nível nacional. Quero dizer: de nada serve - vamos ser muito sinceros - a Comissão Europeia fazer as campanhas de informação que quiser o Parlamento Europeu aprovar as decisões que entender, se a nível nacional os políticos ditos democratas e do chamado mainstream , do centro de esquerda ou do de direita, mas que não são essas forças populistas, nacionalistas ou xenófobas, eles próprios não fizerem esse trabalho.
Esse é que é o ponto.
O que vejo às vezes é que há políticos do centro de esquerda ou do de direita que cedem perante essas forças. Mais, que começam a incorporar alguns argumentos da xenofobia. Isso é perigoso. Porque na verdade, na Europa, esses demónios existiram.
Foi aqui na Europa civilizada do séc. XX que aconteceu o Holocausto em que pela primeira vez na História da Humanidade houve um país, um governo, que tinha como objetivo a exterminação completa de uma raça, de uma etnia, e isso é de facto terrível. Ora estes demónios não morreram, estão neste momento sob controlo mas existem. Razão pela qual temos de explicar constantemente estas questões, mas é um debate em que temos de ter a opinião pública connosco.
Porque de facto, como há bocadinho foi dito e bem, o que se passa quando a maioria das pessoas quer isso? Se há forças políticas dessas que um dia tomam o poder, é terrível.
Até agora praticamente não tomaram. Houve uma subida, mas não exageremos, nem a Frente Nacional formou o governo em França, nem houve realmente forças extremistas verdadeiramente xenófobas que tenham tomado o poder.
O caso da Hungria é um pouco mais complexo. Meu caro amigo, a verdadeira força xenófoba na Hungria é o partido de extrema-direita Jobbik. É verdade que certos comportamentos do atual governo causaram preocupações na Europa. Aliás, eu próprio quando estava na Comissão abrimos processos contra eles e ganhámos, foi um processo no Tribunal de Justiça. Mas aí não foi no caso de racismo, foi pela falta de respeito pela independência da Comissão da Proteção de Dados, respeito da independência dos juízes, do poder judiciário, do próprio Banco Central, entre outros.
Lá está, a Europa tem mecanismos para atuar nesse caso, mas um governo verdadeiramente xenófobo, um partido extremista até hoje ainda não tomou e espero não vir a tomar o poder num país europeu.
Se tomar, temos de ter mecanismos para atuar e há, há o artigo 7º do Tratado da União Europeia que permite a suspensão de um país-membro.
Mas, repito, que antes de chegarmos aí, era importante que tivéssemos nas nossas próprias democracias a nível nacional um trabalho feito nesse sentido. A esse respeito tenho muito orgulho em ser português.
Portugal é dos poucos países da Europa onde não há forças políticas extremistas do ponto de vista ultranacionalista ou xenófobo organizadas. Acho que também é algo de que nos devemos orgulhar, porque hoje noutros países, diria uma maioria na Europa, existem esses movimentos.
Como há bocadinho disse, não é só na Europa. O Tea Party nos EUA corresponde muito a isso e noutros países também.
Simão Ribeiro
Muito obrigado. Temos de seguida Paulo Brito, do Grupo Castanho.
Paulo Brito
Bom dia, Dr. Durão Barroso. Antes de mais, deixe-me felicitá-lo pela sua excelente intervenção.
Ia questioná-lo relativamente à crise no Mediterrâneo, nomeadamente sobre a resposta humanitária que a UE deveria dar a esse problema. Contudo, o Dr. acabou por dar essa resposta na sua primeira intervenção à pergunta de um colega meu. De maneira que eu vou colocar a questão por outro ponto de vista, nomeadamente o ponto de vista da segurança.
Sendo certo que todos nós, europeus, estamos inquietos com a crise humanitária do Mediterrâneo e o drama daquelas vidas que se perdem todos os dias, não posso deixar também de refletir sobre até que ponto o terrorismo islâmico não poderá tentar fazer algum aproveitamento para se infiltrar no espaço europeu através desse movimento migrante.
Considerando que os Estados europeus têm vindo a reduzir substancialmente os seus orçamentos militares e é certo que ninguém aqui deseja a guerra, até que ponto a Europa e os estados europeus estão preparados para fazer frente a uma eventual ameaça que se venha a verificar de forma palpável e realista?
Obrigado.
José Manuel Durão Barroso
Muito obrigado. Em primeiro lugar, em relação à questão de fundo, só mais uma precisão: mais uma vez de que é que falamos quando falamos de Europa? A competência em termos de pedido de asilo é, na UE, uma competência nacional. Ou seja, é um governo que pode ou não aceitar dar o estatuto de exilado político a uma pessoa, não é a UE.
Por isso é que não me parece justo sistematicamente dizer-se que a Europa não responde, pois são os governos que não estão a responder, alguns até estão e outros nem por isso.
O que é que a UE pode fazer neste momento? As instituições europeus - e foi o que fez a Comissão que me sucedeu pois a crise se agudizou agora -, podem propor mecanismos de gestão desses movimentos e de partilha da responsabilidade. Penso que é a única via para pôr alguma ordem nesta situação. Mas, repito, que na UE temos de ver aquilo que é competência dos Estados-Membros e aquilo que é competência nacional, ou competência europeia, competência comunitária.
Por isso é que temos de encontrar uma solução que recolha o consenso dos governos europeus e alguns, como se sabe, não estão nada favoráveis a uma posição de partilha desta responsabilidade, deste encargo.
Quanto à questão do terrorismo, estou de acordo com a sua pergunta, ao fim e ao cabo a hipótese de base da sua pergunta. É óbvio que existe um risco acrescido, mas esse risco já existe hoje em dia, já há terrorismo endógeno na Europa.
Não podemos considerar a religião muçulmana como algo de completamente estranho à Europa. Há muitos europeus que professam a religião muçulmana e obviamente a esmagadora maioria não é terrorista nem professa ideias de morte e de terrorismo. Mas isto exige das autoridades das nossas democracias vigilância, prevenção e determinação a nível de política de segurança externa e interna no combate ao terrorismo.
Temos de vencer esse problema com determinação, usando também os mecanismos de segurança interna de que os Estados podem socorrer-se nessas circunstâncias. Porque o terrorismo é de facto injustificável, a morte de inocentes não pode encontrar justificação e as barbaridades a que estamos a assistir feitas por aquele dito Estado Islâmico, desde a destruição de parte da cidade histórica de Palmyra, à degolação de vítimas inocentes, à exibição da cultura de morte mais radical, é insustentável.
Por isso, temos de lutar no plano internacional e no plano interno da segurança.
Fez uma referência, meu amigo, à questão da defesa e se bem percebi critica o pouco investimento dos Estados na defesa. Se for essa a questão, concordo, acho que a Europa se quer ser respeitada a sério tem de fazer mais em termos de defesa comum.
Nós não podemos passar a vida a criticar, como tantos criticam, os EUA e depois pôr-nos ao abrigo da proteção americana em tudo. Até porque os americanos hoje em dia têm outros desafios. Está a haver um relativo desinvestimento das EUA na defesa europeia. Não estão a abandonar a NATO longe disso, pelo contrário, mas têm outras prioridades também.
Por isso, nós europeus, sem pôr em causa a NATO que penso que continua a ser uma garantia essencial de segurança, temos de ir construindo uma identidade política e de defesa credível. Isso implica também esforço nesse domínio. Nalguns casos até se pode ter facilidade pela crise financeira.
O que quero dizer com isso? A doutrina que hoje em dia está na UE e também na NATO é muito a chamada "partilha de capacidades”.
Por exemplo, nós na Europa temos um número de tipos de helicópteros que é muito maior que os EUA. Podíamos perfeitamente como temos o Airbus, haver dois ou três tipos de helicópteros, mas o que se passa é que às vezes os países andam a competir entre si na venda de material de defesa.
O que faz sentido aqui é ter também capacidades de defesa europeias. Aliás, os norte-americanos têm utilizado a política de defesa inteligentemente para a investigação.
Agora, como talvez saibam, estou a dar aulas em Princeton, nos EUA, e é onde passo a maior parte do tempo. É extraordinário ver o papel que o orçamento de defesa tem na investigação. Muitos destes grandes avanços americanos em termos de inovação não vêm só da cultura empresarial ou das universidades, mas de grandes investimentos dos orçamentos da defesa que leva a investigação de ponta que nós na Europa nem sempre conseguimos acompanhar.
Simão Ribeiro
Obrigado, Dr. Durão Barroso. Aldo Maia, do Grupo Roxo.
Aldo Maia
Muito bom dia a todos. Antes de mais, deixe-me agradecer-lhe, Dr. Durão Barroso, a mensagem entusiasta que nos traz sobre a Europa numa altura em toda a gente parece querer no fundo falar um pouco mal da Europa.
A minha pergunta apesar de tudo numa altura em que Portugal começa a vestir-se, mas em que a Grécia não está de tanga mas anda de tanga na mão, não resisto a perguntar-lhe como é que analisa a possibilidade do fenómeno Grexit e se conseguir conjugar esse tema com os próximos passos a dar no sentido de uma maior integração política na Europa?
Obrigado.
José Manuel Durão Barroso
Muito bem, em relação à Grécia só uma pequena recapitulação: de 2008 a 2012, esses anos todos em que acompanhei a crise, posso dizer-vos que a Comissão e eu próprio fizemos tudo, mas tudo, o que estava ao nosso alcance para evitar o Grexit. Por quê? Não só porque os gregos não queriam e é um país que nos merece o maior respeito, mas também por causa dos possíveis efeitos de contaminação nos outros países.
Era para mim claro que se a Grécia tivesse um default completo, se a Grécia tivesse de sair da zona euro, Portugal seria o próximo. Portugal era considerado pelos mercados, pelos analistas, o mais próximo parceiro da Grécia nessa eventual saída do euro.
Mas não se esqueçam que não foi só Portugal, foi também a Irlanda, a Itália, e a Espanha que também pediu um programa de resgate. O G20 de Novembro de 2011 em Cannes, França, teve uma discussão sobre se sim ou não a Itália devia pedir um programa completo - chamado em inglês full-fledged program.
Ora, a Itália é uma das maiores economias do Mundo, a 7ª maior. Estávamos numa situação de pânico generalizado dos mercados e por isso, na altura, contrariando a opinião de alguns economistas que normalmente não sabem do que falam, nomeadamente porque não conhecem a União Económica Monetária.
Convidei para a Comissão Europeia prémios Nobel da Economia e tenho o maior respeito pela disciplina económica, mas confesso que ficou um bocado em causa quando prémios Nobel da Economia me diziam exatamente o contrário. O que quer dizer que mesmo na Economia que é uma ciência, no final há uma parte que é uma questão de julgamento, é uma questão política ao fim e ao cabo.
Havia quem dissesse reestruturação da dívida grega, a Grécia sai do euro é melhor, mas essa nunca foi a minha opinião, porque para mim era evidente que se a Grécia saísse, os efeitos de arrastamento a Portugal, a Espanha, a Itália, e portanto à própria zona euro porque Itália é uma das maiores economias do Mundo, seriam terríveis.
Fizemos tudo, discretamente, porque naquele momento em que havia o pânico dos mercados e uma grande cacofonia, preferi fazer as coisas discretamente do que andar com megafone.
Por exemplo, eu próprio estive horas a falar com a senhora Merkel a convencê-la e à Alemanha a aceitar para a Grécia, Portugal e Irlanda, maturidades mais longas e juros mais baixos. Alguma coisa foi feita nesse sentido. Mas não como queriam aqui em Portugal algumas pessoas que francamente não sabiam do que falavam, a chamada reestruturação ou corte da dívida, porque se houvesse esse corte teria sido irresponsável. Porque, cá está, hoje em dia a dívida da Grécia, a maior parte, é dívida a Estados. Ou seja, aquilo que têm de pagar é dívida à França, à Alemanha, também agora a Portugal alguma coisa, a Espanha e outros países, ou então dívida ao Banco Central Europeu, tirando a dívida do FMI.
Ora, os senhores já imaginaram o que era se agora houvesse o chamado haircut , o chamado perdão dessa dívida? É óbvio que as tais forças antieuropeias, por exemplo em França, haviam de dizer que iam contra isso, seria a morte do euro e a vitória dos nacionalistas e das forças extremistas.
Por esta razão, a chamada reestruturação da dívida grega não teve lugar nem vai ter lugar. O que vai haver, espero eu e é a minha posição como também da Comissão, o chamado alívio da dívida que pode ser feito precisamente jogando com a maturidade, com períodos de carência, etc., aquilo que em inglês se chama debt relief.
Às vezes, na nossa Comunicação Social aparece isto mal traduzido. Aparece debt relief como perdão da dívida. Não é, é diferente.
As últimas conclusões da zona euro são claras: não há reestruturação da dívida, corte ou perdão da dívida, pois teria efeitos negativos no sistema. Claro que para aqueles que pagam é muito melhor não ter de pagar, mas nós temos de pensar responsavelmente quais são os efeitos sistémicos que isso gera.
Perguntou-me o que se vai passar. Continuo a pensar que é possível evitar que a Grécia saia da zona euro. E este último teste foi absolutamente interessante. Pela primeira vez tivemos na UE a eleição de um governo que era contra a doutrina generalizada. Porque o partido Syriza não é como um partido socialista mais ou menos moderado, eles eram radicalmente contra.
Diziam que não eram contra o euro, mas contra toda a política do euro. Sustentavam eles que os programas não estavam a funcionar, embora tenham funcionado para a Irlanda, para a Espanha e para Portugal.
A verdade é que estes países, a Espanha e a Irlanda, são dos que estão a crescer mais na Europa e foram dos países que aplicaram mais austeridade. Portanto, contrariamente ao que se diz, que a contração orçamental traz recessão, a contração orçamental trouxe crescimento. Porque a contração orçamental naqueles casos era essencial para restabelecer a confiança das economias e hoje em dia a Irlanda está com um crescimento espetacular, Espanha também e Portugal também ainda que mais moderado, mas está a crescer.
Tivemos um problema que foi a Grécia e o problema grego deveu-se a fatores políticos internos. Quando estávamos no maior pânico, coincidente com o G20 em Cannes, tivemos o Primeiro-Ministro grego sem ter avisado ninguém a dizer que ia fazer um referendo. Isto no momento em que os investidores estavam em pânico. Obviamente que quem tinha lá dinheiro retirou-o e agora o que se passou nesta última crise foi que houve milhares de milhões de euros que saíram da Grécia nos últimos meses. Isso quando de acordo com as previsões internacionais, da UE, do FMI e todas as outras organizações, a Grécia estaria a crescer já 3% para o ano.
Isto demonstra aos que dizem que a política não conta, que o que conta são os mercados, que olhem a prova, porque às vezes conta pelas más razões.
Um erro político paga-se extremamente caro. O que custou ao povo grego este governo, de facto é difícil de contabilizar.
Apesar de tudo, no final, como não tinham alternativa tiveram de aceitar um programa infelizmente mais duro do que o que estava desenhado, o que é de facto mais um teste.
Perguntaram-me aqui há tempos numa conferência nos EUA em termos de probabilidades e eu disse de 60% que a Grécia fique no euro. É bastante elevado os 40% de probabilidade que saia. Depois deste acordo penso que reduziu essa probabilidade.
Agora, há uma coisa que lhe posso dizer: se a Grécia sair um dia, o que eu não desejo e continuo a não esperar, mas que seja claro para o Mundo que não foi por falta de esforço dos outros mas sim porque a Grécia, ela própria, não quis ou não pôde. Isso é muito importante.
Era muito importante do ponto de vista de perceção que não aparecessem os outros a empurrar a Grécia, mas esta a ser ainda alvo de um esforço final. Isto foi uma última tentativa, vamos ver se resulta, espero que sim, mas mesmo que não resulte, penso que hoje a zona euro já está preparada e tem mecanismos para evitar o tal efeito de contágio que seria grave.
Portanto, estou absolutamente confiante no futuro da moeda única e do euro.
Não resisto a contar-vos algo: era 2012, também um momento muito difícil da zona euro e consequentemente da Grécia, e o Presidente Putin numa cimeira em S. Petersburgo perguntou-me o que é que devia fazer. Disse-me: "Olha lá, estás com esses problemas todos na zona euro, nós Rússia temos mais de 20% de reservas em euros, o que me aconselhas, devo vender os meus euros ou não?”. Isto disse-me a Rússia; ora, o Presidente Putin estaria mais avisado se pensasse no rublo, porque se vê agora o que se está a passar com o preço do petróleo e não só, com as consequências da política da Rússia.
É por isso, meus caros amigos, quando vos falarem da crise da Europa, os senhores ponham a questão: e os outros? Olhem as incertezas que nos rodeiam, as economias emergentes como o Brasil e digo isto com maior amizade pelo Brasil com quem estou familiarmente ligado já que tenho uma grande parte da minha família no Brasil.
São economias, no caso brasileiro, em que a política não acompanhou ainda o desenvolvimento da sociedade. E é o país de todas as economias emergentes que tem a democracia mais avançada. Vê-se o caso da Rússia, ou da China.
Portanto, esta questão de fazer da Europa a causa de todos os problemas do Mundo parece-me manifestamente exagerada. Conhecem aquela história do Mark Twain - aquele grande escritor que fez o Huckleberry Finn e outros e era correspondente de guerra dos EUA -, em que houve um erro no jornal do qual ele próprio era jornalista a dizer que "Mark Twain morreu”. Ele mandou um telegrama, que ficou célebre, a dizer: "A notícia da minha morte é ligeiramente exagerada”.
[RISOS]
Eu também acho que a notícia da morte da Europa é pelo menos ligeiramente exagerada.
[APLAUSOS]
Simão Ribeiro
Segue-se a Ana Santos, do Grupo Verde.
Ana Ramos dos Santos
Bom dia, senhor Dr. Durão Barroso. Foi o português com a pasta mais relevante na Europa desde a adesão à UE e no momento em que a Europa lidou com assuntos significativos como tratados, dívidas soberanas e crises geopolíticas. Já partilhou aqui connosco algumas histórias mas gostaríamos de saber quais os maiores desafios que enfrentou à frente da Comissão Europeia nos seus dez anos de presidência, como os ultrapassou e já agora do que é que mais se orgulha.
Obrigada.
José Manuel Durão Barroso
Acho que os desafios já elenquei: a crise institucional logo ao início, quando ficámos praticamente sem tratado; quero dizer, o anterior ainda estava em vigor, mas aquela deceção provocada pelo fracasso da Constituição Europeia conseguimos depois resolver aprovando o Tratado de Lisboa. E este mantém os princípios, ainda que não todo o articulado do projeto do tratado constitucional.
Foi a crise também geopolítica com a Rússia e a Ucrânia; não foi só esta guerra, não se esqueçam que já tinha havido duas crise em que a Rússia cortou o fornecimento de gás a alguns países da UE. Cortou especificamente à Ucrânia, mas como é a Ucrânia que é o país de trânsito esse gás não chegou à União Europeia.
Foi também aquilo que ao mesmo tempo se deu como esperança e crise, chamado "Primavera Árabe”, que mostrou a aspiração dos povos da orla mediterrânea nomeadamente da juventude dos países árabes à liberdade, mas que depois teve problemas conhecidos quando algumas forças procuraram gozar dessa mesma liberdade e com os problemas de instabilidade que se conhece.
Para além da crise económica e financeira, nomeadamente da dívida soberana, do que eu vivi nestes dez anos que não houve dia que não houvesse crises. Posso dizer que sou especialista em crises, na verdade. Não houve um dia sem problemas, posso dizer-vos sinceramente, um dia ou uma noite, já que muitas dessas reuniões de resposta eram até às duas, três, quatro da manhã.
De que é que mais me orgulho? O facto de apesar de todas estas dificuldades a Europa ter aguentado, ter mostrado a tal resiliência e não ter desistido. Termos conseguido soluções que não sendo perfeitas mostram que a Europa "está cá para as curvas” - se me permitem a expressão -, que é mais resistente do que muitos pensavam e que ultrapassámos aquilo que chamo em inglês de intellectual glamour of pessimism.
O glamour do pessimismo que hoje em dia domina muitos intelectuais que querem mostrar que são mais inteligentes, prevendo o pior e julgando que assim são mais inteligentes, a verdade é que eles se enganaram em 2011/2012 quando previram que a Grécia ia sair imediatamente e quando previam que o euro ia acabar.
Fiz em 2012 uma reunião com os economistas chefes dos maiores bancos operando na Europa, um brainstorm de três horas na Comissão Europeia, e perguntei-lhes: digam lá os senhores o que pensam sobre a Grécia, no final de 2012 acham que a Grécia faz parte ou não da zona euro? Todos eles, menos um, disseram que a Grécia já não estará na zona euro no final desse ano.
Ora, estamos em 2015 e ainda está; por isso, talvez eles se tenham enganado. Depois, perguntei quais dos senhores pensavam que o euro resistia àquela crise e se manter e metade deles disse que a zona euro não era capaz de se manter. Isto disseram os economistas chefes, especialistas dos mercados, e foram eles que escreveram por exemplo em grandes revistas internacionais que Portugal não era capaz de evitar um segundo resgate e que estava condenado.
Portugal evitou um segundo resgate e deve ter orgulho nisso. Não apenas o governo, mas Portugal e os portugueses devem ter orgulho em ter evitado um cenário pior que foi o cenário grego.
Para isso, a Comissão Europeia deu um contributo e isso me orgulha. Agora, o momento que senti mais importante já referi há pouco, foi quando com os meus colegas e muita emoção fui receber o Prémio Nobel da Paz em Oslo.
E quando fiz o meu discurso de aceitação falei de Portugal e do 25 de Abril, falei da Europa como um projeto de liberdade e um projeto de cultura também.
A Europa não é só um projeto económico, é um projeto de liberdade e de cultura. Esse foi provavelmente o momento que mais me sensibilizou como Presidente da Comissão ao longo destes dez anos.
Simão Ribeiro
Muito obrigado, senhor Dr. Durão Barroso. Vou passar agora ao António Tondela, do Grupo Encarnado.
António Tondela
Bom dia, Dr. Durão Barroso e caros colegas da Universidade de Verão. Dirijo também um breve cumprimento ao reitor da nossa Universidade de Verão, o eurodeputado Carlos Coelho.
Segundo as autoridades italianas, têm chegado a Palermo cada vez mais crianças sozinhas. Na última segunda-feira, dos 548 migrantes 45 eram crianças. Ao longo do ano, chegaram cerca de 7.400 crianças sozinhas à Europa. Como se explica que estas crianças cheguem sozinhas? O que pode fazer o governo europeu? O que podem fazer os Estados europeus para salvar estas crianças de serem usadas, recrutadas, por células terroristas e criminosas e por redes de tráfico humano?
Afinal de contas, qual é a estratégia da Europa para este grave problema?
Obrigado.
José Manuel Durão Barroso
Já falámos sobre esse ponto várias vezes, mas o caso específico das crianças não sei dizer. Presumo que obviamente é pelas razões que estão implícitas na sua pergunta: para explorar a situação, obrigar a Europa a mostrar-se mais humanitária.
O que se passa, isso sei porque falei com as pessoas, há bocadinho disse-vos sobre aquele encontro mas não só nesse, noutros também, estive em vários campos de refugiados. Estive, por exemplo, em Zaatari na Jordânia. Campos que, aliás, são sustentados com dinheiro da UE. É a UNICEF que está no terreno mas somos nós que damos dinheiro à UNICEF para as crianças sírias.
Perguntei a muitos refugiados que estavam a chegar à Itália, nomeadamente uns eram sírios e outros vinham de regiões de África como a Somália e Eritreia, porque é que eles vinham. As respostas são óbvias: uns vêm para fugir da guerra; por exemplo, muitos dos refugiados sírios com os quais me encontrei são pessoas ditas de classe média. Não é o tradicional exilado que vem meramente por razões económicas.
Houve cidades e vilas na Síria que foram literalmente destruídas. Lembro-me por exemplo de estar a falar com uma família síria em que o pai era médico, ficaram sem nada e eu faria o mesmo. Compreendo aquelas pessoas.
Se eu fosse sírio, se a minha cidade tivesse sido destruída e se eu tivesse, como tenho, três filhos, faria tudo o que pudesse para chegar à Europa. Com certeza. Não queria continuar a viver naquele país naquela situação. É por isso que temos de compreender aquela situação.
Agora, o que é que se passa? Falei também com uns rapazes da Eritreia e estou a lembrar-me de um em concreto que me disse que a família toda juntou dinheiro para ele vir, pagaram ao tipo que fazia o tráfico e organizava a viagem num barco sem quaisquer condições; todas as economias da família para pagar a chegada dele à Europa para depois sustentar a família que estava a morrer literalmente de fome.
O que é que havemos de fazer numa situação destas? É por isso que é uma questão muito delicada, exige que se atue cirurgicamente sobre os traficantes. Mas penso que existe também uma resposta humanitária perante essas situações, procurando integrar as pessoas, é muito importante, pois não podemos criar novos guetos na Europa pelas razões já ditas pelo vosso colega aqui até sobretudo em termos de segurança e não apenas económicos e sociais.
Não podemos criar novos guetos. Temos de fazer um trabalho de formação daquelas pessoas. Algumas delas estão muito preparadas.
Por exemplo, a Alemanha neste momento neste aspeto está mais à frente dos outros: está já a selecionar os possíveis candidatos a asilo. É evidente que acho que isto tem de ser feito com alguma inteligência.
Agora, o problema é estrutural e não vai ser resolvido só com medidas de polícia. Enquanto se mantiver a instabilidade que existe desde a Líbia até a Nigéria com Boko Haram passando pelo Chade. A Líbia é um dos principais centros de recrutamento de terroristas e de imigração. Depois o próprio Médio Oriente com a Síria, o Líbano, etc. indo até ao Afeganistão. Portanto, o que nós temos aqui é o chamado Médio Oriente alargado.
Enquanto esta situação se mantiver e infelizmente penso que se vai manter por muito mais tempo e ainda há-de piorar antes de melhorar; é a minha análise sobre o que se está a passar naquela região, vamos ter de conviver com este problema e temos de ter uma resposta à medida que tem de ser de repressão das redes criminosas, mas também de acolhimento e de solidariedade para com aqueles que precisam da nossa ajuda.
Duarte Marques
Muito obrigado. Dava agora a palavra ao Gabriel Albuquerque, do Grupo Cinzento, um dos mais novos alunos deste ano.
Gabriel Mateus de Albuquerque
Antes de mais, bom dia. A nossa pergunta prende-se sobretudo com a União Europeia e o Tribunal dos Direitos do Homem do Conselho da Europa.
Portanto, no Tratado de Lisboa, estava prevista a adesão da UE à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. No entanto, o Tribunal de Justiça de Luxemburgo recusou-se a submeter-se ao Tribunal do Conselho da Europa de Estrasburgo.
Assim, queríamos saber se acha acertada a opinião do Tribunal de Justiça em Luxemburgo a recusar-se a submeter-se à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente ao Tribunal de Estrasburgo. E, sobretudo, qual acha que deve ser a melhor solução para resolver este impasse que existe neste momento.
Obrigado.
José Manuel Durão Barroso
Foi comigo que lançámos precisamente o processo de adesão da UE à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Eu próprio lancei essas negociações e penso que é um objetivo que deve ser prosseguido, mas como você disse e bem, isto foi para já inviabilizado por uma decisão do Tribunal de Justiça da UE.
Também a verdade é que há vários governos que não querem isso, não é só o Tribunal de Justiça. O Tribunal de Justiça reflete uma opinião jurídica que eu respeito, respeito os tribunais, embora também tenhamos direito a discordar dos tribunais. Compreendo as razões do Tribunal de Justiça, mas não penso que sejam fundamentadas.
Acho que o que há a fazer, portanto, como não se pode ir contra uma decisão do Tribunal, é renegociar novas condições com o Conselho da Europa e apresentar um novo projeto.
Acho que não se deve abandonar o objetivo; acho que seria bom para a UE e também para o Conselho da Europa que prosseguíssemos esses objetivos.
Duarte Marques
Muito obrigado. Fernanda Catarino, do Grupo Bege.
Fernanda Catarino
Tendo em conta que foi adotada oficialmente no sistema legal britânico a lei Sharia que, entre outros, prevê a inexistência de liberdade de expressão, de religião, etc., poderá tal medida legal ser adotada pelos restantes Estados-Membros indo contra os valores basilares da União Europeia?
José Manuel Durão Barroso
Sou contra essa lei absolutamente. Leis que não deem às mulheres os mesmos direitos do que aos homens sou absolutamente contra.
Peço desculpa, há quem considere isto uma questão cultural mas acho que é uma questão de atraso civilizacional.
Acho que devemos ter orgulho na legislação que dá os mesmos direitos aos homens e às mulheres. As leis que negam isso não. Acho que, por exemplo, apedrejar uma pessoa por adultério é absolutamente inaceitável, é um crime horrível e condeno também a pena de morte.
Aliás, é uma das condições para se ser da UE, é não haver pena de morte. Aqui está: a Europa deve ter orgulho em não ter a pena de morte e não permitir que haja pena de morte. Devemos impedir todo o sistema dessas chamadas leis ou doutrinas que são contra os valores fundamentais do respeito da pessoa humana.
Duarte Marques
Tem a palavra o Bernardo Mesquita, do Grupo Rosa, o tal Grupo azarento.
[RISOS]
Bernardo Barros Chitas
Bom dia, mais uma vez as boas-vindas.
A questão que preparámos foi: quais são as diferenças na presença de Portugal na UE antes e depois do resgate? Qual o sentimento dos outros países perante um "novo” Portugal?
Obrigado.
José Manuel Durão Barroso
Acho que Portugal ganhou imensa credibilidade com o modo determinado com que fez face ao resgate.
Sei que aqui em Portugal, algumas pessoas, criticam aquilo que é chamada de política do bom aluno. Mas aqui não é uma questão de ser mau ou bom aluno, embora eu ache que é melhor ser bom do que mau aluno. A questão é uma questão de liberdade.
Meus amigos, acho que compreendem isto em termos políticos: quando um país está completamente dependente dos outros obviamente que tem menos liberdade para propor e levar a cabo a sua própria agenda. A verdade é esta, é que quando um país pede ajuda está de certa forma condicionado. É a realidade da política.
Até pode ser num contexto de solidariedade, mas a UE é uma realidade muito complexa, somos 28 países à volta de uma mesa, mais o Presidente do Conselho e o da Comissão. Cada país tem de negociar, temos o chamado "capital de negociação”.
Agora, se temos um assunto em que queremos que os outros nos apoiem não podemos estar sempre a pedir o apoio. Se estamos neste momento condicionados porque temos um resgate e temos de pagar a nossa dívida, obviamente que temos menos liberdade.
Portugal ganhou imenso por pertencer à União Europeia e não apenas em termos económicos e sociais. Se lerem as estatísticas de como estávamos em 1986 e de como estamos hoje a diferença é extraordinária. As mais importantes estatísticas não são aquelas de dívida, para mim são a mortalidade infantil e a esperança média de vida.
O nível médio português mudou de maneira absolutamente radical com a ajuda essencial da UE.
Talvez nem sempre os investimentos tenham sido os melhores para o aumento da produtividade, mas aumentaram muito os índices sociais de bem-estar e isso é importante.
Mas Portugal ganhou também do ponto de vista diplomático. Para vos dar um exemplo: alguns, com certeza, ainda se lembram da campanha que fizemos para a independência de Timor-Leste. Se não fosse a UE, Portugal não tinha tido hipótese de levar a cabo a campanha que fez para alertar todo o Mundo para a situação de Timor-Leste.
Porque Portugal sozinho não tinha força suficiente para impor um custo grande à Indonésia, na altura, que não queria aceitar a independência de Timor-Leste e nem sequer um referendo.
Mas quando era a própria União Europeia, quando era Portugal que impedia que houvesse reuniões com a Indonésia por causa de Timor-Leste, ou ameaçava impedir, isso em si mesmo deu uma visibilidade enorme à questão de Timor-Leste. Portanto, cá está algo que não teríamos conseguido se não fosse a UE.
Indo mais diretamente à sua pergunta: se um país está numa situação de resgate, em que está completamente dependente dos outros e, desculpem a expressão que é um bocadinho dura, mas quase de mão estendida, é uma capitis diminutio que limita a sua autonomia.
Ora Portugal ganhou muito boa reputação com isto, mostrando que é um país responsável e em que se pode confiar. Acho que isso é um crédito que devemos dar ao governo e aos portugueses que fizeram esse esforço.
Duarte Marques
Muito obrigado. Vamos agora passar à fase do "Catch the Eye” e tenho já duas inscrições. Enquanto vou apontando as outras vou dar a palavra de imediato à Beatriz do Grupo Castanho.
Beatriz Almeida
Muito bom dia.
Há pouco referiu que efetivamente a zona euro é essencial para a Europa porque contribui para a coesão monetária. Mas até que ponto não considera que poderia ser vantajoso numa fase transitória a criação de outra moeda que fosse paralela ao euro, que desse possibilidade aos países com mais dificuldades de se tornarem mais competitivos nos mercados internacionais, visto que assim teriam a possibilidade de desvalorizar a sua moeda e consecutivamente aumentar as suas exportações?
Muito obrigada.
Duarte Marques
Vou dar a palavra ao Hélder Oliveira, do Grupo Laranja.
Hélder Quintas de Oliveira
Bom dia a todos.
Dr. Durão Barroso, tendo em conta a sua experiência enquanto Presidente da Comissão Europeia e o conhecimento que tem da realidade dos Estados-Membros, fugindo um pouco aos tópicos das últimas questões, gostaria de saber se a política de coesão económica e social regional da União Europeia não seria mais eficaz nos países em que existe um nível de administração regional, com legitimidade democrática e autonomia financeira, algo que no nosso país não existe?
José Manuel Durão Barroso
Sobre a primeira questão: sou contra a criação de uma moeda transitória, alternativa, ou seja o que for. Em primeiro lugar, porque acho que seria praticamente o fim da União Económica Monetária, pelo menos como a conhecemos atualmente.
Ou seja, seria criar duas classes de países. Por que razão é que países como Portugal, ou a Grécia, ou a Espanha, ou a Itália quiseram fazer parte do euro? Temos de perguntar por quê? Estavam todos enganados?
Lembro-me, porque estava no governo nessa altura quando se deu essa decisão de aderir ao euro, que foi porque quisemos evitar a ideia de que havia uma Europa de primeira e uma de segunda; que haviam uns que eram capazes de se governar e outros não.
É por isso que a ideia da desvalorização da moeda, a meu ver é uma má ideia, é aquilo a que se chama em francês de fausse bonne idée , uma falsa boa ideia porque um país que desvaloriza a moeda desvaloriza-se a si próprio. Isso quer dizer que o trabalho dos portugueses, o produto das nossas empresas vale menos. É verdade que dá maior flexibilidade, mas à custa da desvalorização do país.
Ora, o caminho a seguir não é a desvalorização, o caminho a seguir é exatamente a valorização. Como? Através das reformas estruturais que dão maior competitividade, através de investimento e inovação, através de investimento em educação, entre outros.
Acho que não há nenhuma razão para pensar que Portugal não é capaz de competir com os outros países europeus. Não somos mais mas também não somos menos do que os outros países. Por isso, acho que seria um erro, abriria uma fissura, uma fenda, uma rutura na zona euro, que é portanto de evitar e que nem sequer seria uma solução para os países.
Por quê? Porque é muito uma questão de confiança. Vejam o que se passa com a Argentina. A Argentina, desde que teve um caso de insolvência em que não foi capaz de acompanhar a política monetária que tinha sido determinada, não há confiança. A Argentina, hoje, praticamente para ter que importar tem que exportar, mas a Argentina é um país rico com grandes riquezas naturais.
Portugal, ou a Grécia, por exemplo, não têm grandes riquezas naturais. Se houvesse uma rutura de Portugal com a zona euro ou outro país, neste momento, o resultado seria menos confiança dos investidores internacionais em Portugal. Ora, Portugal precisa de mais confiança porque é a confiança que dá mais investimento, o que cria emprego e progresso económico e social.
Quanto à segunda questão, é um problema até mais português do que da UE, mas eu respondo. Defendo uma maior descentralização para Portugal.
Já há muito defendia. Aliás, no governo que tive a honra de presidir começámos por um processo mas que não era de cima para baixo, era de juntar as comunidades locais para se federarem em coisas que fizessem mais sentido do ponto de vista da dimensão.
Acho que sim, ou seja, acho que faz falta em Portugal haver estruturas intermédias com maior legitimidade, mas penso que seria um erro irmos para o modelo de regionalização política.
Isto, por várias razões: em primeiro lugar, porque em Portugal não há uma verdadeira tradição regional como há noutros países. Ou se há é assimétrica, quando concordamos que há um Algarve e tudo o resto é um bocado difuso. Faríamos uma região Norte? Uma de Trás-os-Montes? Tudo isso é um bocado complexo.
Por outro lado, conhecendo bem o país como conheço, a pressão para o despesismo e os gastos seria imensa. Por isso, a solução deve ser - a meu ver - uma maior descentralização, mas de baixo para cima permitindo às comunidades urbanas que se juntem e que tenham poderes capazes de negociarem em melhores condições com o poder central a própria execução dos fundos estruturais.
Porém, não através de um programa com um projeto de regionalização política administrativa. Aliás, como sabem, houve um referendo em Portugal e continuo a pensar que não seria uma boa solução.
Acho que foi e é uma solução para as regiões autónomas. Aí é evidente pois Madeira e Açores têm uma especificidade que tem de ser reconhecida, sem qualquer espécie de dúvidas, mesmo se aí tivemos de pagar alguns custos em termos de excesso de despesa. Mas, enfim, politicamente as regiões autónomas têm toda a justificação como regiões políticas. No caso do resto do país penso que seria muito arbitrário, penso que seria dividir muito o país, consumir muitos recursos públicos, por isso não defendo isso.
Embora também reconheça que a situação atual não é boa. Há uma concentração excessiva em Lisboa, que aliás tem agravado de uma forma muito radical. Na minha biografia, que puseram aí no dossier , dizem que eu nasci no Porto, mas eu nasci em Lisboa.
[RISOS]
Isto é o mal de copiarem do Wikipédia, não? Não foi.
Não tenho nada contra o Porto mas for the record nasci em Lisboa e não no Porto. Embora seja transmontano dos quatro costados: pai, mãe, avós, é tudo transmontano na minha família, mas eu nasci em Lisboa.
Acho que Lisboa hoje em dia está a consumir excessivos recursos. Há um problema grande a nível nacional, mas a solução que vejo não é através da criação de regiões políticas do país.
Duarte Marques
Muito obrigado. Vamos agora a mais duas perguntas: da Mara Alves, do Grupo Amarelo, e do Nuno Moreira, do Grupo Verde.
Mara Alexandra Alves
Bom dia a todos.
A minha pergunta é muito simples. Estando na área das contabilidades e a Europa precisando de credores, a minha pergunta vai no seguinte sentido: a transparência das contas públicas de cada Estado-Membro e a harmonização contabilística a nível da contabilidade pública tornou-se imperativa e fundamental para garantir mais fiabilidade.
Esta preocupação por parte da Europa não surge muito tarde, visto que o pilar da confiança dos investidores dos mercados de capitais ficou abalado com a crise? A Europa não previa?
Nuno Moreira
Muito bom dia.
A pergunta que eu queria fazer aborda uma questão económica que me parece incontornável e muito importante. O que eu queria saber é se acredita que a união monetária na Europa é compatível com a autonomia orçamental e fiscal, tendo em conta que os países não podem recorrer individualmente ao ajustamento cambial para corrigirem ou atenuarem os ciclos económicos que podem atravessar.
Assim sendo, queria saber se julga ser benéfico abdicarmos de um pouco da nossa soberania nesse sentido para alcançarmos maior crescimento e convergência económica.
José Manuel Durão Barroso
A primeira pergunta sobre contabilidade, já há bocadinho disse que na primeira Comissão que presidi propus que houvesse mais poderes de investigação do Eurostat e na altura foram recusados por alguns Estados-Membros com argumentos soberanistas. Depois, mudaram de opinião quando viram que tinha sido possível por exemplo cortar práticas e deficits na Grécia precisamente porque não havia uma autoridade independente.
Ou seja, este ponto é muito importante e sei que interessa a alguns de vós. Precisamos, num sistema democrático e avançado, de entidades independentes credíveis: um banco central, autoridades de concorrência e de regulação. Mas a verdade é esta de que muitas vezes a nível nacional há uma promiscuidade entre as autoridades. Ou seja, um banco central nacional tem uma tendência para fechar os olhos ao que se passa no seu próprio sistema. Isso é normal, mesmo em países de maior dimensão que o nosso. É a razão pela qual, sobretudo naqueles que partilham uma moeda, é indispensável - já estou a responder à segunda pergunta - termos mais poderes supranacionais para garantirem que a contabilidade está certa, que não há ocultação de números, manipulação de estatísticas, entre outros.
Por isso, a Europa está a fazer esse trabalho. Começou não tão cedo quanto eu gostaria de ter começado, porque houve resistências nacionais, mas está a fazer esse trabalho.
É importante, como há pouco referi, um single rules book , ou seja um sistema comum de regras. Também nós na Comissão queríamos mas não foi ainda aceite pelos governos, uma base comum fiscal, que em inglês é CCCTB - Common Consolidated Corporate Text Base.
Ou seja, não era a harmonização das taxas de impostos, mas ter as mesmas regras para os impostos para tornar a vida mais simples às empresas, nomeadamente às pequenas e médias empresas. Porque as grandes empresas podem pagar advogados para fazer isso mas uma pequena empresa se vai de um país para o outro e tem de conviver com um regime fiscal completamente diferente é muito difícil.
Por isso, uma certa harmonização do ponto de vista contabilístico é indispensável não apenas para a moeda única mas também para o mercado interno funcionar como deve. Daí que se é contabilista ou se está nessa área, felicidades, porque acho que vamos precisar cada vez mais de contabilistas.
Em Portugal, muitas vezes fico revoltado quando se diz que aquela pessoa tem uma visão meramente contabilística, como se fosse mau ter as contas em ordem.
Não sei se sabem, mas o meu pai era contabilista, chefe de contabilidade, e eu lembro-me do meu pai voltar depois de horas e horas, sobretudo no fim do ano, a fazer o balanço e balancete a pôr tudo aquilo como deve ser.
Acho que ser contabilista, ter as contas certas é muito bom. Não chega, é preciso mais, mas um país que tem uma visão negativa da contabilidade devia tratar-se.
A segunda questão que era sobre os poderes e as competências necessárias, acho que deu a resposta: nós, para a moeda única, precisamos de mais poderes e de maior integração.
Como eu disse há pouco, a União Económica e Monetária está incompleta. Temos uma união monetária com um banco central independente, temos uma moeda, mas não temos uma união orçamental, nem uma união económica e não temos muito menos uma união política. Temos de dar passos neste sentido.
Quando estava na Comissão, aprovámos um documento - para aqueles que se interessam, chama-se " blueprint para uma verdadeira e profunda União Económica e Monetária”. É um documento em que a Comissão explica os passos que devem ser tomados para isso, para se atingir uma maior integração.
Também constam os mesmos princípios no chamado Relatório dos Quatro Presidentes, que na altura fizemos: o Presidente do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, eu próprio, o Presidente do Eurogrupo que era na altura Jean-Claude Juncker e o presidente do BCE que era e é Mario Draghi.
Esses são os princípios e temos de ir para uma maior integração, mas o que é que se passa? O que se passa é que como de costume há diferentes perspetivas dos países. Há países que dizem que sim a maior integração mas só com maior responsabilidade; outros dizem sim mas só com maior solidariedade.
Por exemplo, a Alemanha resistiu à mutualização da dívida, a Comissão chegou a propor os Eurobonds, uma dívida comum, que na altura seria uma boa resposta, mas não foi aceite, nem pela Alemanha nem por outros países mais ricos. Porque eles acharam que não havia ainda condições de disciplina da zona euro que sustentassem credivelmente esse passo adiante na integração.
Acho que é inevitável e que é uma questão de tempo. Acho que é inevitável se se quer ter uma moeda única. Mais tarde ou mais cedo, a lógica da moeda única vai levar a isso.
Repare: no início, uma vez dei uma entrevista ao Financial Times a dizer que precisamos de uma união bancária e recebi três telefonemas de colegas meus a dizerem que não podia falar de união bancária porque não estava no Tratado, que a Comissão estava mais uma vez a exorbitar os seus poderes e a questionarem o porquê de uma união bancária. A minha resposta foi de que não está nos tratados mas para garantir o objetivo do Tratado, nomeadamente a união económica e monetária precisamos de uma união bancária.
A verdade é que hoje em dia temos uma união bancária e que foi aprovada em tempo recorde. Temos uma união bancária, isto é, um sistema de resolução e de supervisão comuns. O BCE hoje em dia tem mais poderes em muitas áreas do que o banco central americano FED.
Mas não temos toda a união bancária; falta-nos, por exemplo, um sistema de garantias comum, mas acho que o caminho vai ser esse. Contudo, irá demorar e vai ser, como normalmente na UE, um processo incremental, por adaptações sucessivas.
Duarte Marques
Muito obrigado. Dava agora a palavra à Catarina Sousa, do Grupo Sousa, e de seguida ao Luís Ponte, do Grupo Azul.
Catarina Martins de Sousa
Bom dia.
A minha questão é sobre um tema muito discutido atualmente, que é a solidariedade europeia. Gostava de saber como é que os países da União Europeia conciliam os interesses próprios com os interesses comuns.
Obrigada.
Luís Mário da Ponte
Bom dia a todos.
Dr. Durão Barroso, de 2008 a 2011, vivemos um período de pânico financeiro aqui em Portugal. Qual foi o papel do G20 na intervenção da resolução desse problema e quais são os ensinamentos que nos pode transmitir da sua interação com esse bloco?
Obrigado.
José Manuel Durão Barroso
Em relação à primeira questão, sobre solidariedade europeia, esta é das tais palavras na Europa. Aliás, costumo dar isto como exemplo de como é difícil gerir a Europa.
Quando estava na Comissão Europeia quando eu dizia a palavra solidariedade, só a palavra, como é que a palavra era entendida? Nos países do Sul em geral era bem entendida: "bom, ele está a pedir mais aos mais ricos para dar aos mais pobres”. Para os países do Norte quer dizer: "ora cá está o Barroso, que é português, a pedir mais dinheiro para os mais pobres”.
Quero dizer, a mesma palavra tem conotações diferentes consoante o contexto cultural em que é pronunciada. Por isso é que usamos sempre duas palavras juntas: responsabilidade e solidariedade.
Se disser "responsabilidade”, os alemães diziam: "cá está o Barroso a dizer que os outros têm de ser mais responsáveis”. Mas os gregos diziam: "Cá está o Barroso a fazer de alemão”. Estão a ver?
Portanto, a solidariedade é um princípio essencial pois sem ela não há UE, mas atenção: a solidariedade não dispensa o trabalho que cada um deve fazer por si próprio. É, por isso, neste equilíbrio entre solidariedade e responsabilidade que se constrói a UE.
Esta crise teve deste ponto de vista consequências muito negativas. Não sei se viram mas aquilo que se dizia na Alemanha sobre a Grécia e vice-versa é terrível. Ou seja, houve uma perceção de falta de solidariedade, apesar dos montantes que foram empregues baterem todos os recordes.
Às vezes, oiço comentadores dizerem que o que era preciso era um Plano Marshall para a Europa. Os planos que foram feitos são mais de 20 vezes o Plano Marshall já atualizado. O dinheiro mobilizado pela zona euro para socorrer os países em dificuldades faz muitos planos Marshall e é dinheiro que está em risco de não ser pago, os que são empréstimos e porque uma parte são fundos estruturais que são dinheiros a fundo perdido.
Mas, no âmbito da zona euro, aquele dinheiro que foi disponibilizado são empréstimos com taxas de juros a nível europeu praticamente nulas comparadas com o mercado internacional e até comparadas com o FMI.
No entanto, se perguntarem ao cidadão grego médio ele acha que a Europa não foi suficientemente solidária. Se perguntarem ao cidadão alemão, ele acha que já estão a fazer um esforço demasiadamente grande.
É mais uma vez a questão de encontrar o equilíbrio entre as duas faces da construção europeia, a solidariedade e a responsabilidade.
A segunda questão foi sobre o G20. Há pouco já disse, a criação do G20 foi uma ideia da UE. Achámos, na altura, que era importante haver uma resposta global. Na altura, havia o G8, depois a Rússia entretanto foi convidada a sair, mas eram os quatro países europeus mais importantes em termos económicos, a França, a Alemanha, o Reino Unido e a Itália, e mais os EUA, o Canadá e o Japão. Estes países, por si só, não tinham a força, o leverage necessário para organizar uma resposta global e não estavam as chamadas grandes economias emergentes, desde a China, à Índia, ao Brasil e outros países como a Coreia por exemplo.
Por isso, tomámos a iniciativa de criar o G20 e também porque as Nações Unidas como tal é muito bonita a ideia de ter todos, mas não é exequível. Era muito difícil tomar decisões a nível mundial sobre esta matéria, por exemplo com Cuba, ou com a Coreia do Norte e outros países que pura e simplesmente não aceitam consensos nestas matérias, por isso é que houve o G20.
Penso que o G20 foi positivo, porque pelo menos evitou o retorno ao protecionismo; houve fenómenos de protecionismo, mas chamemos-lhes de baixa intensidade. Não houve, como tinha havido na grande recessão os anos 30 do séc. XX que começou também nos EUA, um recurso total ao protecionismo e lançaram-se bases para uma maior responsabilidade na legislação financeira, além das medidas tomadas na luta contra a evasão e fraude fiscais.
Portanto, é positivo o processo e acho que vai continuar, embora me pareça que ultimamente tenha perdido um bocado de ritmo e de força. Isto também é muito da natureza humana e política: quando há o sentido da urgência faz-se mais.
Jean Monet, que foi um dos fundadores da União Europeia, dizia que a Europa vai fazer-se nas crises e será a resposta nas sucessivas crises. Lembrei muito disso durante estes anos. É de facto com a pressão das crises que os governos se predispõem a fazer coisas que até então eram impensáveis, como foi a união bancária.
Portanto, o G20 foi positivo, agora vamos lá ver: decisivo para a UE não foi o G20 mas as decisões tomadas no âmbito da UE, mais concretamente da zona euro.
Duarte Marques
José Ribeiro, do Grupo Azul, e de seguida o Manuel Poejo, do Grupo Encarnado.
José Manuel Ribeiro
Muito bom dia. Estão a aproximar-se as eleições. O programa da coligação e do PS assentam em pontos basilares diferentes. A minha pergunta é esta: acha que corremos o risco de um segundo resgate caso haja uma mudança do rumo e da estratégia que foi tomada até agora.
Manuel Poêjo Torres
Boa tarde, Dr. Durão Barroso. Tinha uma série de perguntas para lhe colocar sobre a projeção de poder, mas não posso fazê-lo por respeito a todos os alunos aqui presentes.
Sou dos alunos mais velhos, com orgulho, e cabe-me um pouco fazer esta questão diretamente a si porque o senhor é das poucas pessoas em Portugal e provavelmente na Europa que nos pode ajudar. Nesse caso é "ajude-nos a ajudá-lo”, porque os jovens mais tarde vão poder liderar o país e a minha pergunta incide sobre empregabilidade nas instituições europeias.
Consegui um pouco furar essa barreira, com muita dificuldade e muito pesar, foi muito complicado, mas acho que o senhor é a pessoa ideal para nos dar as dicas corretas sobre o que é que se está a passar hoje em dia, se é, ou não, complicado penetrar essas barreiras e como é que funcionam os lobbies nacionais?
Falo por experiência própria, pois conheço comitivas dinamarquesas, espanholas, italianas, que têm muita força nas organizações e que colocam os seus estagiários diretamente nos gabinetes por todo o lado, mas infelizmente os portugueses que são das pessoas tecnicamente mais bem preparadas que eu conheço, não têm a mesma estratégia. Eu não compreendo por quê, por isso gostava de ouvir a sua opinião.
Obrigado.
José Manuel Durão Barroso
Em relação à primeira questão, não posso neste momento dar uma resposta com precisão a essa matéria, acho que seria politicamente um pouco arbitrário fazê-lo e não queria entrar na política partidária sinceramente, hoje pelo menos. Estou aqui, obviamente muito orgulhoso do partido a que pertenço, mas estamos numa universidade e estou a tentar fazer um exercício de rigor. Comecei as minhas palavras hoje dizendo isso: independentemente da nossa convicção política penso que devemos estudar os assuntos, fazer uma análise tão objetiva quanto possível; devemos evitar preconceitos, sobretudo quando lidamos com factos complexos.
O que posso dizer é o seguinte: independentemente de quem ganhe as eleições, Portugal merece muito respeito pelo que fez nestes últimos anos. Há alguns anos, a maioria dos analistas internacionais, incluindo os mais qualificados, previa que Portugal não seria capaz de cumprir o primeiro resgate, que era inevitável ter um segundo resgate, ou então previa até a chamada saída não limpa, ou seja, uma saída condicionada.
E Portugal, batendo todos os pessimismos, conseguiu executar o programa com sucesso. Não se esqueçam que o objetivo do programa era Portugal voltar aos mercados, ser capaz de se financiar. O objetivo não podia ser de um dia para o outro Portugal voltar a crescer extraordinariamente. Isso infelizmente foi posto em causa por políticas anteriores acumuladas que levaram a uma dívida muito elevada e para além da manutenção de problemas de falta de competitividade estruturais em Portugal.
Portugal no seu conjunto tem todas as razões para se sentir orgulhoso do esforço feito. Penso que isso deve ser sublinhado e àqueles que duvidam disso eu digo sempre para olharem para a Grécia, para a tragédia que lá se passou. Como houve dúvidas e problemas políticos, os gregos estão a pagar um preço extremamente elevado por erros políticos e Portugal neste momento já não está a pagar.
Por isso, estamos neste momento num caminho ascendente e acho que vai haver razões para manter este caminho ascendente. Agora, a verdade manda que se diga o seguinte: não estamos completamente imunes a uma alteração das circunstâncias.
Na altura da crise, disse publicamente, mas sobretudo sempre que vinha a Portugal e me encontrava com o Presidente da República - tive muitos encontros com o Prof. Cavaco Silva e com o Primeiro-Ministro Passos Coelho -, não sei viram o filme "Match Point” do Woody Allen, mas se a bola caísse de um lado ou do outro da rede, o que estava em causa era o destino do protagonista.
Portugal era comparável à tal bola de ténis que está na rede e que podia cair no lado da Irlanda ou no lado da Grécia. Caiu do lado da Irlanda e não da Grécia, porque o governo teve muita determinação e evitou um cenário à grega. Isso é - repito - um grande ativo nacional português.
Agora, cada vez que há dúvidas sobre a Grécia, embora Portugal, Espanha e Itália já consigam empréstimos nos mercados a juros muito vantajosos, estes três países têm mais problemas; uma pequena turbulência, mas têm.
Isto quer dizer, em termos de análise económica e de mercados, que ainda não estamos completamente livres de voltarem os problemas.
É por isso que seja quem for que ganhe as eleições - e quero aqui colocar-me numa perspetiva de rigorosa objetividade - é importante que se mantenham uma política de responsabilidade orçamental. Há hoje mais margem do que anteriormente, mas deve-se sobretudo manter a política de reformas para aumentar a nossa produtividade e competitividade.
Enfim, que se façam os investimentos seletivos de que o país precisa. Espero que, seja quem for que ganhe as eleições, leve a cabo uma política responsável e que não meta em causa os ganhos de credibilidade que foram acumulados nos últimos anos.
Em relação à questão do nosso amigo em relação à empregabilidade na União Europeia, acompanhei muito isso durante todos estes anos. Todos os anos recebi na Comissão Europeia os estagiários portugueses, passaram muitos por lá, muitos ficaram em instituições europeias e muitos não.
A minha opinião é esta: o sistema é sério e credível, os exames são anónimos, é competitivo e a razão pela qual os portugueses fazem melhor ou pior tem a ver com a preparação específica para aqueles testes.
Ainda antes de estar como Presidente da Comissão Europeia, como Ministro e Primeiro-Ministro, organizei aqui em Portugal, nomeadamente no Ministério dos Negócios Estrangeiros, uns cursos especiais para aqueles exames e aí os nossos resultados melhoraram muito.
Sabem por quê? Porque, por exemplo, na Faculdade de Direito e devem estar aqui muitos que estudam ou estudaram Direito, quando eu andei na faculdade não tínhamos a experiência de fazer aqueles testes de escolha múltipla que são normais nestes testes.
Portanto, nós tínhamos gente muito bem preparada mas que tinha muitos maus resultados naquele teste.
Àqueles que se querem candidatar a lugares na Comissão, no Parlamento, no Conselho, posso aconselhar é que além da cultura que adquiriram na sua formação e que em geral é boa - estou de acordo consigo, a cultura geral de um estudante português é boa, não é inferior à média europeia -, mas que se preparem especificamente para aquele tipo de exames.
Aliás, houve universidades privadas que organizaram cursos específicos, eu próprio dirigi um desses cursos de formação para esses exames.
Depois, claro, a imagem do país conta. Mas hoje em dia em termos de número de funcionários Portugal não está mal representado, aliás, está acima da média.
Eu próprio nomeei vários funcionários para lugares de topo como vários diretores-gerais. Em termos médios temos mais do que um e a nível intermédia temos uma presença acima da média, mas podíamos ter mais se conseguirmos mais gente nova a entrar. Acho que hoje em dia é muito importante ter portugueses nessas instituições comunitárias pelas razões que hoje já desenvolvi.
Duarte Marques
Muito obrigado. Dava agora a palavra ao Ricardo Pinto, do Grupo Cinzento, e ao Duarte Canhão, do Grupo Verde. Se querem respostas completas façam perguntas rápidas para dar tempo.
Obrigado.
Ricardo Pinto
Muito bom dia, queria cumprimentar a mesa e o Dr. Durão Barroso, por quem tenho um apreço especial.
A minha intervenção não é tanto no sentido de questionar sobre algo, mas mais a título de curiosidade. Foi agora adiantada uma notícia no DN intitulada: "Barroso diz que Trump é um palhaço racista e a Europa um andaime”. O que tem a dizer para eventuais polémicas?
Muito obrigado.
[APLAUSOS]
José Manuel Durão Barroso
Não vou criticar a Comunicação Social, pois acho que em democracia é um poder. Não, meus amigos, para aqueles que criticam a Comunicação Social livre, pensem o que é onde não há Comunicação Social livre.
Mais vale uma asneira da Comunicação Social do que aqueles países em que não o direito a fazerem asneiras.
[APLAUSOS]
É verdade. Não vou criticar porque às vezes é difícil; há uma simplificação sempre. Isso que diz, não estou a pôr em causa a sua boa fé, é verdade que eu comparei o senhor Trump aos palhaços da política europeia, dizendo que a diferença é que nos EUA não os qualificam como tal.
Mas não chamei palhaço ao senhor Trump, se quisesse fazê-lo teria feito. E não disse que a Europa é um andaime, mas sim que muitas vezes quando falo da Europa gosto de usar a imagem do andaime para fazer uma comparação no sentido de que é um processo em construção.
Isto é injusto mas é verdade: a Comunicação Social tem de sintetizar e na simplificação muitas vezes perde-se uma parte do conteúdo e o sentido da nuance. É isso que acontece muitas vezes. Isto, aliás, é um dos problemas da União Europeia - que foi a questão de fundo que o meu amigo coloca e é importante. É porque a Europa é complexa, é difícil por natureza. Se na realidade o sistema português, por exemplo, já ele próprio é complexo, com a Assembleia da República, os partidos, o governo, Presidente da República, Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal de Justiça; tudo isto é complexo e exige algum estudo.
Agora imaginem isto multiplicado por 28 países e não só. Ao lado destes 28 países têm de pôr o sistema europeu que é um sistema por si próprio.
Umas das dificuldades que temos quando falamos da Europa é como evitar a simplificação que distorce a realidade. Essa é, aliás, uma das armas dos populistas. É que os populistas são aquilo que às vezes alguns chamam de terríveis simplificadores, que para simplificarem fazem demagogia.
Ora, eu não disse isso que está aí mas compreendo: o jornalista quis sintetizar e dá uma imagem que para quem ler aquilo vai pensar que Durão Barroso já não sabe o que diz.
Até acho que fui bastante ponderado e moderado nas minhas observações, mas é verdade que quando se transcreve discurso sobre matéria muito complexa incorre-se nesse discurso de simplificação abusiva e é por isso que é importante desenvolver o espírito crítico das pessoas.
Por isso é que vos digo e estamos numa universidade: mais importante que vocês possam aprender nesta ou noutra experiência do que a matéria é o método.
Se me permitem um conselho, sem qualquer paternalismo da minha parte, nunca acreditem só numa fonte. Quando virem uma coisa que vos é dada como verdade, tentem ver outras informações, confrontem essa fonte com outras fontes. O método é essencial e muitas vezes estamos, de facto, à mercê dessas simplificações, mas o melhor modo de a combater não é atacando a liberdade essencial que é sagrada que é a liberdade de imprensa, nem fazendo ataques primários aos nossos amigos jornalistas, mas sim procurando esclarecer através do debate racional a complexidade das coisas.
É nesse sentido que vou continuar.
[APLAUSOS]
Duarte Marques
Obrigado. Falta só uma pergunta ao Dr. Durão Barroso, que é do Duarte Canhão, do Grupo Verde.
Duarte Canhão
Muito boa tarde. Vou fazer a única pergunta que estava à espera que alguém fizesse mas ninguém fez. Já se fala isto, acho que a primeira pessoa que falou nestes termos foi Churchill, sobre a Europa federal como temos o exemplo máximo dos EUA que têm leis diferentes entre Estados, mas acabam por funcionar da mesma forma, sem fronteiras, como nós também temos a mesma moeda, símbolos europeus como uma bandeira e um hino, mercadorias de pessoas, etc. Só falta mesmo a língua, mas a Europa também tem como oficiais o inglês e o francês.
Será a Europa federal o próximo passo para a União Europeia?
José Manuel Durão Barroso
Sim, de facto isso é uma questão que podia ser uma conferência só por si. Mas eu tenho, como disse há pouco, bastante respeito pela dignidade humana e por isso não vou abusar da vossa paciência. Depois de me estarem a ouvir depois de duas horas e meia, seria pedir demais da vossa parte.
O que posso dizer-vos é o seguinte: a meu ver a Europa vai continuar a ser, no futuro que é previsível, algo que não é facilmente classificável. A Europa não será uma organização intergovernamental, mas também não será uma espécie de Estados Unidos da Europa como são os Estados Unidos da América.
Aí lamento desiludir alguns dos meus amigos federalistas. Também me considero federalista do ponto de vista do método. Acho que o método federal é o método mais adequado para gerir situações plurinacionais, mas temos de atentar na realidade histórica da Europa. Diferentemente dos Estados Unidos da América do Norte e de outras experiências, a Europa baseia-se em Histórias muito antigas. Portugal já tem cerca de 900 anos com uma identidade e tantos outros países europeus são muito antigos e mesmo quando não tinham exatamente as fronteiras que hoje têm, nem a mesma delimitação do Estado, baseiam-se em Histórias de séculos.
Penso que a comunidade nacional vai continuar a ser, no futuro previsível que não posso prever a muito longa distância, a principal referência. Por isso, o que temos de fazer é uma partilha de soberanias que permita às comunidades nacionais sentirem-se respeitadas mas permite ao mesmo tempo a criação de uma identidade política europeia.
Ou seja, podemos ser ao mesmo tempo cidadãos do nosso país, neste caso cidadãos da Europa e cidadãos europeus, não abdicando da nossa própria identidade europeia e da nossa identidade portuguesa.
Claro que isto é mais complexo, mas a verdade é que hoje em dia as pessoas não estão disponíveis para fazer pela Europa os mesmos sacrifícios que fazem pelo seu país. E a génese europeia é diferente da génese nacional e nomeadamente de outras construções políticas.
Por isso é que acho que a Europa vai avançar. A tendência forte vai ser para maior integração na zona euro pelas razões que há pouco disse pois a credibilidade da moeda única depende disso. Mas também precisamente por outro fator que não falámos aqui hoje porque não houve tempo para falar de tudo, que é o fator globalização.
Pensem nisto um bocadinho: China tem hoje mais de 1.200 milhões de pessoas, vai ter em breve 1.500 milhões assim como a Índia; na Europa, o maior país que é a Alemanha, tem 80 milhões; os países considerados grandes têm à volta de 60 milhões e Portugal tem só dez milhões.
O que é que pode um país de dez milhões de habitantes ou mesmo de 80 milhões de habitantes em face de gigantes com 1.200 ou 1.500 milhões?
Por isso, a Europa e os países europeus se quiserem contar no Mundo, se não quiserem ficar irrelevantes, o único modo que têm é de se unir perante gigantes como os americanos que são nossos aliados mas nem sempre os interesses dos americanos coincidem com os nossos, ou perante uma China ou uma Índia. Ou mesmo a Rússia que não sendo uma grande potência económica é uma potência económica média e é um dos maiores países do Mundo e uma grande potência militar aqui às nossas portas.
Daí, acho que a própria globalização vai levar a maior integração europeia. Porque senão os nossos países não têm capacidade de eles próprios fazerem valer os seus pontos de vista no Mundo, não têm força suficiente. A globalização veio para ficar, pode haver acidentes ou retrocessos, pois nenhum processo histórico é linear, mas a verdade é que a globalização não é controlada por nenhum poder. Alguns gostam de pensar que há conspirações mundiais, que algumas pessoas reúnem-se aqui ou além a dirigir a globalização, mas não. A globalização, hoje em dia, não é dirigida politicamente, nem sequer pela maior potência do Mundo, que apesar de tudo ainda são os EUA. A globalização é dirigida pela Ciência e pela Tecnologia, nomeadamente as Tecnologias de Informação e Comunicação.
Não há nenhum governo no Mundo que consiga completamente ficar imune a essa transformação. Por isso é que é importante e talvez seja esta a minha última palavra para vocês hoje, é que nós abracemos as hipóteses abertas pela globalização.
Há riscos na globalização e falámos hoje de alguns: redes criminosas transnacionais, instabilidade financeira, terrorismo internacional, mas há grandes hipóteses na globalização e vai-vos oferecer imensas possibilidades.
A vossa geração, sob esse ponto de vista, está muito melhor do que a minha. Entrei para a faculdade em 1973 e não havia liberdade em Portugal. Eu não podia ler os livros que queria, não havia liberdade de imprensa; hoje em dia com a Internet têm acesso praticamente a tudo, até àquilo que não é necessário, pode dizer-se.
Hoje em dia, o problema já não é tanto a informação, é o conhecimento, a capacidade de reter a informação útil. Mas este processo de globalização é uma grande hipótese. Vocês vão ter um percurso de vida diferente da minha geração, vão ter de se habituar a conviver com vários contextos, provavelmente a mudar de emprego várias vezes, é bom falar várias línguas, não é mau.
Por isso, queria deixar-vos este apelo: vejam na globalização uma oportunidade; não se escondam atrás da mesa porque vêm aí a globalização e nós, portugueses, temos vocação para isso. Se houve um país que deu algum contributo para que o Mundo se conhecesse como tal, isto é como Mundo e não apenas como parte do Mundo, foi Portugal. Deu um contributo maior do que aquele que a sua dimensão suporia.
Portanto, acho que devemos ver a União Europeia como a melhor forma de os europeus em conjunto, partilhando a sua soberania mas mantendo as suas identidades nacionais, serem capazes de responder à globalização. Isto, não numa atitude meramente defensiva, mas procurando moldar a globalização, defendendo os seus próprios interesses e promovendo os valores da paz e da liberdade sobretudo.
Muito obrigado pela vossa atenção.
[APLAUSOS]
Dep.Carlos Coelho
Vamos acompanhar o Dr. Durão Barroso à saída e vocês vão continuar com os vossos trabalhos. Depois de o Nuno Matias e o Pedro Esteves conduzirem esta parte dos trabalhos, o Paulo Colaço tem uma comunicação a fazer-vos. O almoço é servido lá em cima e retomamos os trabalhos às 14h30 com a aula sobre Ambiente.