O sistema português no quadro dos sistemas de governo
Dep.Carlos Coelho
Muito bom dia. Vamos dar início à nossa última aula da
Universidade de Verão, faz parte do currículo obrigatório termos uma aula de Ciência
Política e o tema de hoje é o sistema português no quadro dos sistemas de
governo. O nosso convidado especial é o Dr. Paulo Rangel que já tem colaborado
noutras iniciativas da Universidade de Verão, participando em diversos debates
e programas e que para além de nos emprestar a sua inteligência também nos dá o
seu apoio, uma vez que o grupo europeu dos deputados do PSD, de que ele é o
coordenador, é um dos patrocinadores desta Universidade de Verão. O Dr. Paulo
Rangel foi um brilhante líder parlamentar do PSD na Assembleia da República e,
pela segunda vez consecutiva, é o líder da bancada do PSD no Parlamento do
Europeu e Vice-Presidente do Grupo Parlamentar do PPE, que é o maior grupo parlamentar
no Parlamento Europeu. O nosso convidado de hoje tem como hobby ler, tem como
comida preferida o arroz de frango, tem como animal preferido o cão, o livro
que nos sugere é "As Memórias de Adriano” de Marguerite Yourcenar, o filme que
sugere é "Trainspotting” e a qualidade pessoal que mais aprecia é a
frontalidade, qualidade de que ele, aliás, dá provas no exercício da atividade
política. E, sem mais delongas, convido o Dr. Paulo Rangel a usar da palavra na
última aula da Universidade de Verão de 2015.
[APLAUSOS]
Paulo Rangel
Em primeiro lugar eu queria, naturalmente, saudar todos
os presentes, depois agradecer o convite que me foi feito para, com todos vós,
refletir um pouco sobre sistemas de governo e, de alguma maneira, focar isso,
embora penso que nós podemos fazê-lo, até com vantagem, na altura das perguntas,
sobre o sistema de governo português, porque o conhecem apesar de tudo melhor e
daí podemos tirar casos e experiências. Mas queria obviamente saudar a mesa.
Saudar o Carlos Coelho com quem trabalho, enfim, não vou dizer diariamente, mas
semanalmente e que é, sem dúvida, eu ia dizer a alma mater , mas talvez seja melhor dizer a alma pater , da Universidade de Verão. Cumprimentar também o Simão
Ribeiro, Presidente da JSD, cumprimentar o Nuno Matias que está presente e, ter
uma palavra muito especial para o Duarte Marques e para o Pedro Esteves que são
as duas pessoas com quem eu trabalhei e trabalho no Parlamento Europeu
diretamente e que fazem muito a ligação ao partido e, em particular, à JSD
também, porque eles próprios também têm o seu ADN marcado na JSD e, já agora,
nas Universidades de Verão. Feita esta introdução, que não exclui outras
pessoas que aqui estão e que eu conheço muito bem.
Quero começar por fazer um intervalo, eu diria de 20-25
minutos, (depois viremos para a atualidade), um intervalo, um parêntesis, sobre
a atualidade política, sobre o mundo em que nós vivemos hoje. Porque aquilo que
eu queria que cada um, cada uma de vós, percebesse, é que para nós chegarmos às
democracias que temos hoje, a um sistema presidencial como têm os Estados
Unidos, a um sistema parlamentar como tem, por exemplo, o Reino Unido, ou a um
sistema semipresidencial como tem a França e que inspirou largamente o sistema
português, são precisos séculos e séculos e séculos de História da civilização
ocidental. E é muito importante ir a essas raízes, também por razões atuais,
porque aquilo a que estamos a assistir neste momento é que esses valores
ocidentais, esses valores da civilização ocidental, estão postos em causa, e
portanto nós temos que ir às raízes. E a primeira coisa que eu lhes queria
dizer é o seguinte: estamos em 2015 e cumpriram-se agora, em junho ou julho,
800 anos sobre a aprovação de um documento fundamental para as democracias do
Ocidente - foi a Magna Carta de 1215.
Aliás, este ano de 2015 comemoram-se duas coisas muito
importantes: uma muito importante para a democracia em geral, a Magna Carta,
que é uma carta de liberdades dos senhores feudais, dos barões, dos
aristocratas, se quisermos assim, contra o rei, em Inglaterra. O rei João Sem
Terra que é o príncipe João, do Robin Hood, portanto, não sei se conhecem a
história do Robim dos Bosques, mas há o príncipe João que depois de ser príncipe
veio a ser rei e ele é que é o homem que assina a Magna Carta, em 1215. E há
uma segunda data muito importante para nós, que se cumpriu aliás esta semana,
que é a tomada de Ceuta, 600 anos da tomada de Ceuta, que é o início da
Expansão portuguesa e portanto da afirmação de Portugal como um país, uma
identidade, um Estado, até, diria eu. Mas porquê é importante perceber isto? É
que na Idade Média,( que a maioria das pessoas que aqui está julga que é a
Idade das trevas, das bruxas e das fogueiras, e que são mil anos de regressão
histórica, e que são mil anos horríveis em que as pessoas… só havia coisas
terríveis toda a gente vivia muito mal), na Idade Média, nenhum rei tomava
decisões fundamentais sem ouvir o Parlamento. No caso da Península Ibérica
chamavam-se as Cortes, no caso da França chamavam-se os Estados Gerais, no caso
da Inglaterra chamava-se o Parlamento, porque era o sítio onde se "parla”, isto
é, onde se fala. E onde estavam representadas todas as classes sociais. Por
isso é que havia uma Câmara dos Comuns e uma Câmara dos Lordes. Toda a gente…
no caso português, nas Cortes, estava gente de todos os concelhos. Cada
concelho que tinha um foral tinha dois Homens Bons, quer dizer, dois notáveis
da terra, escolhidos pela terra para os representar. E que decisões é que o rei
tinha de submeter a essas Cortes ou esses Parlamentos? Duas. E vão já ver como
afinal as coisas não mudaram assim tanto. Aumentos de impostos ou definição das
penas. Ou seja, tudo o que fosse matéria fiscal tinha de ser decidido pelas
Cortes. O rei não podia aumentar impostos, isto é, não podia sobrecarregar os
cidadãos sem o consentimento dos representantes dos cidadãos. E o rei não podia
definir novas penas, novos crimes, isto é: pena de morte, que era bastante
comum, penas de castigos físicos, que eram comuns na altura, multas, prisões e
outro tipo de penas. Por exemplo, proibições de exercer uma profissão, etc.,
sem isso ser aprovado pelas Cortes, pelo Parlamento, pelos Estados Gerais, (nos
países de Leste, na Alemanha, chamavam-se Dietas a estas instituições).
Portanto, a Idade Média, sob este ponto de vista, era uma
idade de uma certa liberdade, não havia um rei absoluto. Certo? O quê que
aconteceu ao longo do tempo? Os reis foram centralizando o poder e foram
convocando cada vez mais raramente as cortes para tomar decisões. Isto foi
evoluindo, evoluindo, evoluindo no século XI, XII, XII até ao XVI–XVII e quando
chegamos ao século XVII, em França, o rei já tem o poder absoluto. O homem que
faz isto é o primeiro-ministro do rei, que é o Cardeal Richelieu, de Luís XIII,
que todos conhecem tão bem da história dos três Mosqueteiros e o D'Artagnan (os
que não conhecem o D'Artagnan conhecem o "D’Artacão” e vai dar à mesma coisa, e
a Julieta, essa tem o mesmo nome). Mas portanto, o Luís XIII, através do seu
primeiro-ministro, primeiro o Richelieu, que é o mais importante, e depois o
Mazarin – ou Mazarino –, vai concentrar todo o poder. Ao mesmo tempo, em
Inglaterra, havia um rei que era escocês, que é o James Stewart, quando morre a
Isabel I, que era a rainha virgem, como sabem, que foi a grande rainha da
concentração do poder, quando vem o Tiago I - porque a tradução de James não é
Jaime, é Tiago. Eu podia aqui explicar isto, mas fica para as perguntas, se
quiserem - porquê que James deve ser traduzido por Tiago e não por Jaime. E
então este rei diz: vamos fazer em Inglaterra o que estão a fazer os franceses.
Vamos acabar com o Parlamento, vamos acabar com os tribunais independentes, que
existiam também na Idade Média. Ele entretanto morre, o seu filho Carlos I
sucede-lhe e começa a haver uma reação inglesa fortíssima dos barões, dos
cidadãos, dos burgueses, a quererem impedir isso. A ponto, vejam bem, quase
toda a gente, não toda a gente, mas quase toda a gente nesta sala sabe que
quando se dá a Revolução Francesa (1789), passado dois anos o rei é decapitado
e a Maria Antonieta também, a rainha. Mas em Inglaterra o rei foi decapitado em
1649, 140 anos antes. Porquê? Porque queria impor o absolutismo e não queriam…
e até foi decretada a República. O Reino Unido foi uma República entre 1649 e
1660.
Portanto, o quê que aconteceu em Inglaterra? O que
aconteceu em Inglaterra foi esta coisa fantástica. É que aquilo a que nós
chamamos a Revolução Inglesa, que se dá em 1688 que é a continuação deste
processo, são 80 anos de lutas entre os partidários do absolutismo e os partidários
de manter o Parlamento antigo, ganharam os partidários do Parlamento antigo.
Portanto, a Inglaterra era um país anacrónico. Não foi uma revolução, foi uma
reação. Revolucionário no século XVII era ter um rei absolutista que impusesse
o desenvolvimento do país, que construísse estradas, palácios, academias de
arte, academias de ciência, que foi o que fez o absolutismo francês e que deu
origem ao Iluminismo. Os ingleses mantiveram-se na Idade Média. Por isso é que
os ingleses ainda hoje têm um Parlamento que tem uma Câmara dos Lordes e uma
Câmara dos Comuns. Muita gente diz que a Inglaterra é a mais velha democracia
do mundo. É e não é, porque um país que tem um Parlamento em que as pessoas são
distinguidas segundo a família em que nascem – embora isto para a Câmara dos
Lordes não seja verdade desde 97, mas foi assim até 1997, até 1998, mais ou
menos, a partir de 2000, digamos assim -, não é bem uma democracia. Certo?
Sabendo que a Câmara dos Lordes, pelo menos até ao princípio do século XX, era
a mais importante, era a que tinha decisões mais importantes que a própria
Câmara dos Comuns. Portanto, estão a ver que… isto o quê que fez? Fez com que a
Inglaterra desde cedo mantivesse um sistema parlamentar. O quê que fizeram as
câmaras parlamentares em Inglaterra depois de terem vencido os reis que queriam
impor o absolutismo? E aqui entramos nos sistemas de governo… Começaram a dizer
ao rei "meu caro amigo, os seus ministros têm de vir ao Parlamento. Têm de vir
ao Parlamento explicar as suas políticas”. E o rei dizia "não senhor, vocês
legislam, fazem as leis, têm de aprovar os impostos, as penas - era assim-, mas
o resto do governo sou eu que trato. Tenho aqui um primeiro-ministro e os
ministros e eles tratam da governação”.
"Ai é, então vamos colocar um impeachment ”. Como sabem, o impeachment é uma instituição que existe nos Estados Unidos, existe no Brasil – tem-se
falado agora muito no Brasil -, que é para impedir um Presidente, mas pode não
ser um Presidente, pode ser um ministro, pode ser até um juiz, pode ser um
deputado, que, por ter praticado atos criminais – corrupção, suborno, traição
ao Estado, alta traição, coisas deste género -, pode ser votada no Parlamento a
sua remoção. É o impedimento, é o impeachment.
O quê que fez o Parlamento inglês de inteligente? O Parlamento inglês fez o
seguinte: vamos, se os ministros não vierem cá explicar a sua política, nós
vamos pôr um impeachment contra eles.
E o rei dizia: "mas eles não cometeram crime nenhum”. – Nós consideramos que é
crime não vir ao Parlamento explicar as políticas, e portanto quem define o que
é crime e o que não é, somos nós. E foi assim que nasceu a moção de censura.
Aquilo que nós hoje conhecemos como uma moção de censura, que é fazer cair um
governo, foi desta maneira. Foi com uma chantagem, com uma instrumentalização,
com uma manipulação. Havia uma instituição que era o impeachment só para três ou quatro casos e eles, em vez de os
usarem para os casos de crime, passaram a usá-los para os casos de política, de
explicação política. Porque é que eu estou a entrar neste detalhe? Porque é
assim que nasce o sistema parlamentar! O que é que é o sistema parlamentar? É
um sistema em que o Governo depende do Parlamento. Há eleições para o Parlamento
e do Parlamento sai um governo. E a todo e qualquer momento o Parlamento pode
fazer cair o Governo. Certo? E substituí-lo por outro. Sem eleições. Vejam bem:
a senhora Thatcher, que era a senhora Thatcher, saiu do governo em 90, foi
substituída pelo senhor Major, sem eleições. Houve uma demissão da senhora
Thatcher e criou-se um novo governo com base na mesma maioria que era a maioria
conservadora. O senhor Blair deixou de ser primeiro-ministro e foi o Sr. Gordon
Brown sem eleições. Porque o Parlamento tinha uma maioria e escolheu um outro
primeiro-ministro. O senhor Kohl, que é o senhor Kohl – que fez a reunificação
alemã – passou a ser primeiro-ministro, neste caso Chanceler da Alemanha, que
também é um sistema parlamentar, em 1982. Ele era do PPE, portanto do nosso
campo político, foi substituir o Chancelar social-democrata alemão, portanto
socialista. Trocaram um pelo outro, com um voto no Parlamento, em que o partido
que estava no meio, que era o Partido Liberal, deixou de apoiar os socialistas
e passou a apoiar a CDU alemã. Sem eleições. Portanto, o único partido que se
manteve no governo 25 anos sem mudar foi o Liberal. Que, aliás, teve o mesmo
Ministro dos Negócios Estrangeiros, que era o Senhor Genscher, durante 25 anos.
Primeiro com uma coligação à esquerda e depois com uma coligação à direita.
O que é que eu quero dizer com isto? O Parlamento é
soberano num sistema parlamentar. Claro, dirão os senhores, mas isso não dá um
poder enorme ao Parlamento e não enfraquece o governo? Não! Porquê? Porque nos
sistemas parlamentares – isto é muito importante para Portugal que não é um
sistema parlamentar, mas tem características parlamentares – nos sistemas
parlamentares, o quê que acontece? O governo tem uma arma atómica que é
promover a dissolução do Parlamento. Promover a dissolução do Parlamento,
através do Chefe de Estado. Pede ao Chefe de Estado e este é obrigado… O Chefe
de Estado é a rainha, é o rei ou é um Presidente da República eleito indiretamente,
portanto não tem competências próprias, é apenas um poder simbólico, é um poder
de representação, e o Primeiro-Ministro pede para dissolver o Parlamento, e
portanto, dissolvendo-se o Parlamento, há de novo eleições e há um novo Parlamento.
Como é que isto funciona, só para perceberem. Isto funciona como um duelo. De
um lado está o Parlamento, do outro lado está o Governo. O Parlamento pode
matar o Governo e o Governo pode matar o Parlamento. Porque o Parlamento pode
destituir o primeiro-ministro com uma moção de censura e fazer cair o governo e
o primeiro-ministro pode dissolver o Parlamento e com isso convocar novas
eleições. Há uma diferença entre estes dois poderes: é que se o Parlamento faz
cair o Governo, como eu lhes expliquei, pode haver um novo Governo com o mesmo Parlamento.
Mas se o primeiro-ministro, através do Chefe de Estado, faz cair o Parlamento,
dissolve o Parlamento, ele é um bombista suicida, porque cai o Parlamento mas
também cai o governo, porque obviamente com o novo Parlamento, novo Governo.
Portanto, ele no fundo é um jiadista, não é?
Agora, isto é importante porque muitas vezes os deputados
estão lá e ouvem: "meus caros amigos, se os senhores não aprovarem este
orçamento eu não vejo outra solução senão ir para eleições”. E isto faz com que
haja um certo, digamos, balanço. Portanto, os poderes equilibram-se. Claro,
quando há uma maioria absoluta de um só partido as questões são facilmente
resolvidas – o primeiro-ministro tem tudo na mão. Mas quando não há maioria
absoluta de um só partido – vejam o caso da Grécia que também é um sistema
parlamentar, vejam o que se passou nestes últimos tempos – a situação é muito
difícil. O que fez o Primeiro-Ministro? "Já que eu não sou capaz de levar a
cabo as minhas políticas, vou propor a dissolução do Parlamento”. E é o que vai
acontecer com eleições antecipadas, com resultados que não sabemos quais vão
ser, mas que, neste momento parecem bastante incertos. Isto é o nascimento do
sistema parlamentar – nasceu assim. O que eu queria que percebessem, amigas e
amigos - porque é muito importante para nós todos -, é que estes sistemas de
que nós falamos não nasceram ontem. Não são coisas novas. Por exemplo, a
preocupação com o orçamento, com as receitas, com as despesas, é anterior à
criação dos próprios Estados modernos que nós conhecemos. Já na Idade Média era
assim. Se um rei queria aumentar os impostos não o podia fazer livremente.
Durante o período absoluto, podia. Mas isto é século XVII-XVIII, não é XI, não
é XII, não é XIII. Na nossa tradição ocidental, europeia, está ínsita a ideia
de que sempre que há medidas gravosas para os cidadãos: perda da liberdade,
eventualmente até a morte ou castigos corporais, multas, todo o tipo de sanções
graves, ou impostos, isto é, ataque ao nosso rendimento ou à nossa propriedade,
tem de ser consentido por nós, através de uma lei geral do Parlamento. Agora,
perguntam as minhas amigas e os meus amigos: mas então se a Inglaterra chega ao
século XVIII e, apesar de ter instituições antigas e anacrónicas, consegue com
aquele expediente do impeachment ,
desenvolver o tal sistema parlamentar que hoje é dominante em toda a Europa – é
o sistema da Espanha, é o sistema da Bélgica, da Holanda, da Suécia, da
Noruega, é o sistema da Itália, é o sistema da Grécia, é o sistema do Reino
Unido, evidentemente, e portanto, é o sistema da Índia, portanto, é um sistema
amplamente divulgado, o da Austrália e do Canadá, porquê que os Estados Unidos,
que eram uma colónia do Reino Unido, da Inglaterra, que tinham uma tradição de
grande cumplicidade com a Inglaterra, quando fazem a sua revolução, porque é que eles optam por um sistema presidencial e
não por um sistema parlamentar? É que é estranho…
É estranho que a Inglaterra e os Estados Unidos que têm
tanta coisa em comum que às vezes até os divide da Europa Continental – fala-se
de mentalidade anglo-saxónica, por contraposição à chamada romano-germânica,
que é a continental – como é que se explica que os americanos vão inventar um
sistema que é o contrário do sistema que tinham os britânicos que são, no
fundo, os seus pais fundadores? Meus caros amigos, a questão volta outra vez,
sempre, à questão dos impostos. O que acontece? Em Inglaterra os impostos eram
definidos pelo Parlamento no século XVIII. Já havia moções de censura, o
governo do rei já dependia do Parlamento, o rei estava a ser cada vez mais
simbólico, já não tinha poderes efetivos, estava cada vez mais afastado da
governação, tinha um primeiro-ministro, que esse é que ia ao Parlamento
explicar as políticas, etc. Quem aumentava e baixava impostos era o Parlamento
britânico, certo?
Ora, nos anos 50 e 60 do séc. XVIII, nos Estados Unidos,
havia uma guerra forte entre a França e a Inglaterra. A França dominava a
Louisiana, por exemplo cidades como Nova Orleães, (o Québec no caso do Canadá, não
era Estados Unidos mas provava a presença francesa na América do Norte) e
estavam presentes os ingleses que eram bastante mais fortes. O quê que fizeram
os Ingleses a pedido dos colonos, isto é, dos britânicos que estavam lá
estabelecidos já desde há 100 ou 200 anos a construir uma nova terra mas que
era uma colónia, naquele momento eram treze colónias, dizem ao exército inglês:
"olha, venham para cá que nós temos que expulsar os franceses de vez”. E então,
o governo inglês mandou para lá uma armada fortíssima, tiveram uma guerra forte
e expulsaram os franceses de todo o lado, naquilo que é hoje o território dos
Estados Unidos. Como sabem, no Canadá não conseguiram expulsá-los do Québec.
Mas no resto expulsaram-nos de todo o lado. Bom…
Mas as guerras ficam caras, certo? As guerras ficam
caras! Logo, alguém tem que pagar as guerras. O que pensou o Parlamento
britânico? Pensou: agora que nós expulsámos os franceses, agora que os colonos
estão numa terra muito mais rica do que a nossa e são mais ricos, vamos subir
os impostos dos americanos para eles pagarem o esforço de guerra que nós
andámos a fazer. Bom, e os americanos disseram: "não senhor”. Nós não podemos
ter um Parlamento, onde não estamos representados, a subir os nossos impostos. No taxation without representation. Não
há tributação sem representação. Vocês estão aí em Westminster, mas está aí
algum eleito nosso? Não. Estão eleitos do País de Gales, da Escócia, da Inglaterra,
da Irlanda. Na altura não havia ainda Norte e Sul, a Irlanda era mais um reino
dos britânicos. Estão todos sentados aí no Palácio de Westminster, mas não está
ninguém de Nova Iorque, não está ninguém de Filadélfia, não está ninguém da
Virgínia, não está ninguém da Carolina do Norte ou da Carolina do Sul, não está
ninguém de Road Island, portanto, vocês estão a aumentar impostos sem que nós
dêmos o nosso consentimento. E eles diziam: "bem, mas nós é que somos o Parlamento”,
enfim, isto foi-se travando, e então os americanos disseram: "nós vamo-nos
tornar independentes”, e fizeram a Guerra da Independência.
Claro que tudo se paga nesta vida. Quem é que veio ajudar
os colonos americanos a travar a guerra da independência? Os franceses,
nomeadamente, o Lafayette, o célebre general Lafayette, não o homem dos
armazéns Lafayette de Paris, certo? Mas o general Lafayette foi mandado pelo
Luís XV e depois pelo Luís XVI para dizer assim: já que nós não ficamos com
aquilo, eles também não hão de ficar.
Agora vem a explicação do sistema presidencial. Porquê
que os americanos optaram por um sistema que é o contrário do sistema
britânico? Em que há um Presidente, o Presidente é o governo, sozinho. É um
órgão unipessoal - ele sozinho é o governo. Uma vez o Lincoln, portanto
passados 100 anos disto, o Lincoln estava com todos os seus Secretários, ou
seja, os membros do Governo. Estava com o Vice-Presidente, com o Secretário do
Tesouro, o Secretário da Defesa, o Secretário de Estado, ou seja, os Ministros,
numa reunião. Estavam 14 – vamos-lhes chamar ministros e o Presidente. E ele
ouviu a opinião dos 14 sobre uma medida e falou um, dois, três, até chegar ao
décimo quarto. E todos disseram "não”. E ele concluiu da seguinte maneira: 14
"nãos”, 1 "sim”, a moção está aprovada. [RISOS]
Portanto, isto significa que o Governo nos Estados Unidos
é apenas uma pessoa. Não é um órgão colegial, como tal, é um órgão unipessoal.
O resto são apenas colaboradores. A decisão é sempre em última instância do
Presidente. E o Presidente não pode ser nunca, nem os seus ministros,
destituídos, não respondem perante o Parlamento, porque o Presidente é eleito
pelo povo. Logo, se é o povo quem o elege, não pode ser o Parlamento a tirá-lo fora.
E, por outro lado, o Presidente também não pode destituir o Parlamento, não
pode dissolver. É aquilo a que se chama um casamento sem divórcio. Portanto,
eles têm de coabitar – o Presidente tem de viver com o Congresso e o Congresso
tem de viver com o Presidente. Compreendem isto? Portanto, é um casamento sem
divórcio. Claro, há o caso extraordinário do impeachment , mas esse aí é mesmo a sério, não é como na Inglaterra.
É preciso dois terços da Câmara dos Representantes, mais dois terços do Senado.
Ora, isto são maiorias inatingíveis e, portanto, nunca é possível destituir o Presidente.
Aliás, não há nenhum caso de impeachment nos Estados Unidos. Há no Brasil, caso de Collor de Mello, em que ele foi
destituído por impeachment. Mas nos
Estados Unidos não há; contra o Presidente. Porque nunca se conseguiu chegar
aos dois terços. Houve casos de Presidentes, por exemplo, Nixon que esteve para
ser destituído, mas ele demitiu-se muito antes de o processo começar. Portanto,
assim que percebeu que o escândalo ia ter repercussões tremendas, com o célebre
Watergate, que é de 1974…. Quando percebeu isso, demitiu-se e o assunto
arrumou-se dessa maneira.
Portanto, agora queria só deixar aqui uma nota que é para
perceberem que isto está sempre ligado aos impostos. No fundo, estavam na Costa
Leste, ali em Nova Iorque, em Boston, em Filadélfia, estavam a olhar para a
Inglaterra. Do ponto de vista dos americanos, quem é que os estava a oprimir?
Não era o governo britânico, não era o rei britânico, era o Parlamento
britânico. Porque se a competência para aumentar os impostos é do Parlamento, o
Parlamento é que é o opressor. E portanto, para os americanos, criar um sistema
parlamentar era criar um sistema em que íamos dar um poder imenso àqueles que
nos tinham feito mal. Porque a lógica é essa. Enquanto na Europa os Parlamentos
eram considerados naturalmente os defensores dos cidadãos, nos Estados Unidos a
lógica é que os Parlamentos podiam agredir os cidadãos, porque eles tinham
aumentado impostos aos colonos americanos sem que eles estivessem lá
representados. A célebre ideia do imposto do chá, etc., tudo isso deu origem à
independência americana em 1776, enfim, não vou entrar em detalhes históricos,
mais do que aqueles em que já tenho entrado, que são muitos para uma aula tão
curta quanto esta. Mas o que eu queria que percebessem é que foi uma reação
americana à ideia de que o Parlamento pode ser opressor dos cidadãos. Isto na
Europa é impensável; até ao século XX na Europa toda a gente pensou sempre que
o Parlamento defende os cidadãos, o governo ataca os cidadãos. Nos Estados
Unidos era o contrário: era o Presidente que representa os cidadãos porque foi
eleito por ele, o Parlamento representa os Estados e representa as comunidades
locais na Câmara dos Representantes, mas é perigoso. É tão perigoso que os
Estados Unidos fizeram uma coisa: criaram um Supremo Tribunal Federal com
competência para fiscalizar a constitucionalidade das leis. O Supremo Tribunal
Federal americano tem nove juízes, pode fiscalizar a constitucionalidade das
leis. Pode dizer: o Parlamento aprovou esta lei, mas esta lei vai contra os
direitos fundamentais dos cidadãos e, portanto, esta lei é nula. Ora, nós só
conhecemos a experiência dos tribunais constitucionais na Europa, em rigor a
partir de 1929, mas em rigor, rigor, rigor, só depois da Segunda Guerra
Mundial. Só depois das atrocidades do nazismo e do comunismo é que os nossos
sistemas democráticos começaram a criar tribunais, ou pelo menos um tribunal,
que pode anular as leis do Parlamento. Os americanos têm isto desde 1789,
porque eles desconfiavam do Parlamento. Por isso eles são um sistema
presidencial. Enquanto nós dizíamos: não, o Parlamento nunca tomará uma decisão
contra os cidadãos, ele representa os cidadãos.
Por isso, há aqui na Europa muitas vezes hostilidades
relativamente aos tribunais constitucionais. Ainda ontem ao jantar tratavam
dessa questão com o Luís Montenegro, se há tensões… Há uma certa hostilidade,
porquê? Porque na cabeça das pessoas ainda está aquela velha ideia do ADN dos
nossos sistemas – aquela velha ideia – de que os Parlamentos representam os
cidadãos, representam a tal vontade da maioria e, portanto, nesse sentido, não
devia haver um tribunal que possa travar isso. Mas para os americanos é a coisa
mais natural do mundo. Porquê? Porque eles acham que os Parlamentos, se
atacarem os direitos fundamentais, devem ser travados. Nomeadamente, a
propriedade, a vida, a liberdade das pessoas. Vida, liberdade e património, são
nos fundo os três valores principais para os americanos. São as declarações de
direitos.
E aqui têm dois sistemas. Claro que os senhores já sabem
que os franceses são originais. E portanto os franceses disseram: bem, um
francês nunca podia ter um sistema inglês e muito menos um sistema americano.
Nós conhecemos os franceses - não pode ser. Tiveram um sistema parlamentar
muito tempo e funcionou sempre mal. Mal. Muito tempo, especialmente entre 1865
e 1957, tiveram a Terceira e Quarta República, e praticamente tinham governos
todos os anos. Era um pouco como a Itália entre 1947 e 1992. Eram governos a
cair a toda a hora, era eleições a toda a hora, as coisas não funcionavam bem.
E então há uma pessoa que eles chamam, que é o De Gaulle, o general De Gaulle,
para resolver a crise argelina, a independência da Argélia, que era uma colónia
francesa, mesmo em frente a França, do outro lado de Marselha, onde vivia um
milhão de franceses, (alguns deles viviam lá já há mais de 100 e 200 anos). Mas
enfim, havia uma guerra colonial, era preciso resolvê-la e chamaram o De Gaulle
que era o grande herói da Segunda Guerra Mundial francesa, da Resistência, para
ser Presidente. E o De Gaulle disse – aliás, chamaram-no para primeiro-ministro
– e o De Gaulle disse: eu sou primeiro-ministro seis meses, resolvo o problema
argelino mas tenho de mudar a Constituição. E fez um referendo para mudar a
Constituição. E criou um sistema que é um sistema semipresidencial.
O que é um sistema semipresidencial? É um sistema em que há
caraterísticas do presidencial e há caraterísticas do parlamentar. Ou seja, o
governo por um lado depende do Parlamento e por outro lado depende do Presidente.
Portanto, é duplamente responsável. Ao mesmo tempo, é duplamente legitimado,
porque tem a legitimidade do Presidente e tem a legitimidade do Parlamento. Ou
seja, o Presidente é eleito diretamente como nos Estados Unidos e o Parlamento
é eleito diretamente como nos Estados Unidos. O governo sai do Parlamento, é
certo, mas tem de ser nomeado pelo Presidente. E tanto o Parlamento como o Presidente
podem destituir o governo. Se o podem destituir mais ou menos facilmente, isso
é que diz se o Presidente tem mais ou menos poderes. Mas há um poder
fundamental que o Presidente tem sozinho e que não tem nos sistemas
parlamentares nenhum Chefe de Estado. É que o Presidente pode dissolver o Parlamento
sem consultar o Governo para isso. Tem a chamada bomba atómica, que, aliás, em
Portugal foi amplamente usada várias vezes já. Porquê que ele tem essa bomba
atómica? Porque ele é eleito diretamente, e, portanto, o facto de ele ser
eleito diretamente, se ele tem legitimidade própria, ele é uma espécie de
árbitro que quando vê que há um impasse ou um conflito que não tem solução, ele
pode resolver o jogo dizendo: agora pára tudo e o jogo recomeça para a semana;
portanto, os senhores vão todos para os balneários e recomeça para a semana. E
portanto pode interromper uma legislatura e dissolvê-la. Pode vetar leis, pode
mandar leis aprovadas pelo Parlamento ou pelo Governo para o Tribunal
Constitucional e tem poderes de nomeação. Por exemplo, no caso do
Procurador-Geral da República. É uma proposta do governo mas tem de ter o
acordo do Presidente da República. E outros altos cargos desta natureza. O
Presidente tem o Conselho de Estado para reunir. Tem direito de enviar
mensagens à Assembleia da República. Tem o tal poder da palavra. Tem muitos
instrumentos… Tem o poder de escolha do primeiro-ministro, que normalmente é um
poder que não é muito forte se os resultados forem claros, mas pode ser um
poder muito forte se os resultados exigirem negociações muito delicadas.
Portanto, tem estes poderes. É este o sistema que os franceses criaram. No caso
francês nós falamos num semipresidencialismo muito presidencial; o Presidente
normalmente é o líder do partido maioritário e, portanto, existe uma sintonia
entre Presidente, a maioria no Parlamento, e portanto há um Presidente, um
governo, uma maioria - é o sistema tipicamente francês.
No caso, por exemplo, português ou no caso finlandês, ou
noutros casos mais fraquinhos ainda, o austríaco ou irlandês, ou no caso, por
exemplo, romeno, ou no caso, por exemplo, polaco, nós falamos de
semipresidencialismos de pendor parlamentar, isto é, o Presidente é uma figura
mais apagada. Por tradição, porque pode aparecer um candidato ou pode aparecer
um Presidente que até exerça poderes fortes. Nós já tivemos um Presidente que
fez governos de iniciativa presidencial, embora com outro texto constitucional
- Ramalho Eanes, que fez três governos: governo Nobre da Costa, governo Mota
Pinto e o Governo Maria de Lurdes Pintasilgo. Nós já tivemos Presidentes que
recusaram a indicação de primeiros-ministros. Mário Soares fê-lo em 87, o Eanes
já o tinha feito em 83 recusando Vítor Crespo, o Mário Soares fê-lo recusando
uma aliança entre o PRD, que era um partido eanista, o PCP e o PS na altura,
com o Vítor Constâncio. Já tivemos um Presidente como Jorge Sampaio, que
dissolveu a Assembleia da República com maioria absoluta, quando o Santana
Lopes era primeiro-ministro da coligação e ele dissolveu a Assembleia da
República, com maioria absoluta instalada. Portanto, os Presidentes têm mais
poderes… podem às vezes exercer poderes mais fortes do que nós imaginamos.
Mas sobre isto nós também podemos falar bastante depois...
Aquilo que eu vos queria dizer é o seguinte: o calcanhar de Aquiles do nosso
sistema semipresidencial é sempre esse, esta ambiguidade muitas vezes entre o Parlamento
e o Presidente. Se há uma maioria absoluta coesa, a questão está mais ou menos
resolvida. Se ela não existe, existe uma grande incerteza e uma grande
ambiguidade.
E por isso é que agora… e eu estou, enfim, a entrar na
reta final, nos últimos cinco minutos, e queria vir aqui para a atualidade,
porque eu quis dar-lhes, e sinceramente gostava de lhes dar, aqui também este
espaço de cultura, porque uma Universidade não é apenas um espaço para nós
refletirmos sobre estratégias e táticas políticas. É um espaço de
enriquecimento cultural. "Universitas” – abertura ao Universo. Mas claro, eu
também sou um político, e não posso deixar de, a propósito do sistema político
português, comentar também aqui a atualidade, sobre aquilo que eu espero que
vão ser os desafios que nós temos no próximo mês, no mês de setembro, que é um
mês crucial.
Eu queria-lhes dizer que estou inquieto por duas razões.
E a primeira razão é esta: eu tenho olhado para o discurso do Partido Socialista;
eu tenho olhado para o discurso de António Costa e eu pergunto-me todos os
dias, todos os dias ao levantar-me: que quer António Costa para Portugal? Que
ideia é que António Costa tem para Portugal; que rumo é que António Costa tem para
Portugal? António Costa não dá uma ideia do Portugal que quer. Ele quer que
Portugal seja a Grécia, quer que Portugal seja a Escócia, ou quer que Portugal
seja o Brasil, ou a Índia, como disse - os novos brasis e as novas índias? É
que não há um rumo, não há uma ideia para Portugal. Nós sabemos o que queremos.
O nosso primeiro-ministro, o nosso partido, a nossa coligação, já disseram aos
portugueses muito claramente o que queremos. Nós queremos continuar no caminho
em que estamos, que é: saneamento das Finanças Públicas, credibilidade do país
e crescimento gradual. Era muito fácil, digo-vos eu que sou um político com
alguma experiência, e especialmente a olhar para muitas eleições que estão a
decorrer - estão a decorrer eleições em todo o lado -, era muito fácil fazer
flores e foguetes para aumentar as percentagens nas sondagens nestes últimos 3
ou 4 meses.
Mas não é isso que nós queremos. Nós queremos um
crescimento sustentado. Nós queremos criação de emprego sustentada, mas nós não
queremos voltar atrás. O quê que Costa quer do futuro? Eu não vos estou a falar
do Costa do passado, isso nós sabemos todos o que foi o Costa no passado. Eu
pergunto o que quer o António Costa para o futuro. Qual é a ideia que ele
trouxe? Eu só o ouço falar sobre casos. Ou é sobre o Metro do Porto, ou é sobre
o Banco de Fomento, ou é sobre os Fundos Europeus… mas ele não tem uma ideia
para o país, não diz que modelo é que quer.
O quê que ele quer para o país? Diz que quer mais
rendimento para as pessoas; bem, isso queremos todos. Quem é que não quer mais
rendimento para as pessoas? É que nós não enganamos ninguém. Nós dizemos: há
sacrifícios que vão diminuir mas vão ter de continuar, não vão deixar de ser
sacrifícios. Nós não estamos a mentir às pessoas. Nós estamos a dizer: hoje já
há resultados, o desemprego está abaixo do que estava em 2011, quando Sócrates
deixou o governo. Depois da crise tremenda, termos tido o desemprego neste
nível é fabuloso. Nós estamos a crescer, é certo que é pouco, que é tímido, mas
é consistente, é gradual. Portugal é hoje um país credível, é o exemplo
apontado. O investimento está a crescer de uma forma sustentada, o consumo
também vai crescendo e vai ajudando. Que modelo é que quer António Costa? Sabem
qual é a impressão que eu tenho? É que António Costa - que era o Presidente das
taxas e taxinhas - quer ser o primeiro-ministro dos casos e casinhos. [APLAUSOS]
Não tem uma ideia, não tem uma visão para o país. Não
tem!
Portanto, é o que eu vos digo, eu não vim falar do
António Costa do passado. Já outros o fizeram aqui, e fizeram-no tão bem que
não é preciso dizer mais nada sobre isso. Eu estou a perguntar o que Costa quer
para o futuro, que futuro é que nos aponta Costa? Ele não sabe, aqui alguém
respondeu. Este senhor sabe que ele não sabe e nós sabemos que ele não sabe.
[APLAUSOS]
Segunda razão que me está a preocupar, e que me está a
preocupar muito, mesmo muito. Eu ontem ouvi… foi uma pequena frase. Sabem que o
António Costa tem um hábito que é interessante como comentador quando está na
Quadratura do Círculo, mas que é muito nefasto quando se é líder político ou
quando se é responsável político, que é estar sempre a ironizar, estar sempre a
ridicularizar os outros. E então ontem, a propósito do Banco de Fomento, o
António Costa tem esta pequena tirada: "Falam-nos do banco bom…” assim neste
ar… um pouco, digamos, de irrisão, num certo ridicularizar. Dizia assim:
"Falam-nos do banco bom, falam-nos do banco mau, mas não nos falam do Banco de
Fomento.” E eu pergunto-me: como é que uma pessoa que quer ser
primeiro-ministro de Portugal pode brincar desta maneira com um caso como é o
caso Espírito Santo? Como é que pode tratar este caso com esta leveza e com esta
ligeireza? É que eu acho que António Costa não percebeu o que se passou no
país. Muitos julgam que o que se passou no país foi apenas o saneamento das
Finanças Públicas. Tornar as Finanças Públicas sãs - e já não era pouco, era
muito. Mas não foi apenas isso. Foi durante este governo – não é obra deste
Governo, não é mérito deste Governo – mas foi durante este Governo que, pela
primeira vez em Portugal, houve um ataque sério, profundo, consistente à
corrupção e à promiscuidade. [APLAUSOS]
Reparem bem: alguém acredita que se os socialistas
estivessem no poder, haveria um primeiro-ministro sob investigação - eu não
estou a dizer se ele é culpado ou se ele não é –, haveria um primeiro-ministro
sob investigação? Alguém acredita que o maior banqueiro do país estaria sob
investigação e se o banco teria passado pelo que passou, se nós tivéssemos um
governo socialista? O Governo não fez nada, isto é obra do poder judicial. Mas
há uma coisa que é certa: o ar democrático em Portugal, hoje, é mais
respirável. Nós somos um país mais decente. [APLAUSOS]
E é isto que eu vos queria dizer, e digo com a autoridade
de quem há cinco anos foi candidato à liderança do PSD contra Pedro Passos
Coelho. É que Pedro Passos Coelho dá-nos confiança. E dá-nos confiança porquê?
Porque sabendo que a queda de um banco pode arruinar todo o trabalho que ele
fez durante quatro anos… (ninguém sabia qual o impacto da queda do Banco
Espírito Santo) nada fez para impedir isso, deixou a Justiça correr, respeitou
por completo a autonomia da Justiça, é um primeiro-ministro que não nos dá
apenas confiança nas Finanças Públicas, dá-nos confiança nas instituições,
dá-nos confiança no sistema democrático. [APLAUSOS]
Meus caros amigos, este é um ponto crucial. Eu sei que
todos gostam – incluindo o próprio primeiro-ministro – de falar da diminuição
do défice, das contas públicas, do crescimento das exportações, mas nós temos
que olhar também para este lado da saúde das instituições. São vocês, jovens,
que dizem que os portugueses estão desinteressados da política. Mas como é que
alguém se pode interessar pela política se não houver políticos que querem
sanear o sistema, que deixam o sistema funcionar. Reparem, isto é uma reforma
extraordinária. Eu não ponho em causa a presunção da inocência, eu não estou a
acusar ninguém, nós devemos deixar tudo isto funcionar. Mas o simples facto de,
havendo suspeitas, haver uma investigação consistente relativamente ao grande
poder financeiro ou relativamente ao poder político passado, isso é uma
conquista para o país tão importante como ter recuperado as Finanças Públicas.
É uma conquista decisiva para a decência, para a salubridade, para a respeitabilidade
da democracia e das instituições públicas. Porque outros governos, eu posso
garantir-vos, até talvez com boas intenções, com receio das consequências do
que poderia ser a credibilidade internacional do país, teriam tentado, de uma
forma mais forte ou mais fraca, mais aberta ou menos aberta, impedir a ideia de
escândalos... Teriam tremido com isso e aqui houve mão firme. É certo que
António Costa tem dito que não mistura a política com a justiça. Tem dito isso.
Fica-lhe bem dizer. Mas há uma coisa que Passos Coelho tem: é que já demonstrou
que não mistura a política com a justiça, porque já tem dois ou três bons
exemplos de que nunca misturou, nem deixa misturar, nem deixa que haja
promiscuidade entre a política e a justiça. E há uma coisa que eu lhes quero
dizer: eu respeito imenso António Costa. Acho que é um homem com valor, sem
dúvida, um cidadão dedicado, com certeza, com todo o empenho. Mas há uma coisa
que eu lhe peço: peço-lhe encarecidamente que, quando falar destas questões,
como a questão, por exemplo, do Banco Espírito Santo, que não faça graças nem
graçolas.
Estão a afetar muita gente, podiam ter posto em causa
todo o nosso programa de ajustamento. E portanto são coisas demasiado sérias,
que exigem demasiado de nós, que exigem verdadeiramente uma resistência e uma
capacidade de determinação por parte do primeiro-ministro, por parte do
Governo, por parte das equipas que são responsáveis, exige de tal maneira essa
capacidade, esse grau de confiança, que eu pedia que ele não brincasse com
isso. Portanto, ficam com estas duas perguntas. Primeira: que ideia tem António
Costa para o país? Que nós saibamos, até agora, nenhuma. Segunda: nós não nos
limitámos a sanear as Finanças Públicas e a pôr a economia em melhor estado e
em estado de crescimento. Nós também contribuímos para que se reforçasse a
democracia e a decência no quadro das instituições políticas, das instituições
públicas e das instituições financeiras que estavam na origem da crise. E o
facto de nós termos respeitado essa autonomia do poder judicial, de não termos
interferido, de não termos tido medo das consequências é um crédito que está a
favor da nossa coligação, do nosso Governo e do nosso candidato a
primeiro-ministro.
E com isto estou disponível para todas as vossas
perguntas e, enfim, desejo que tenhamos agora um diálogo salutar. Muito
obrigado. [APLAUSOS]
Simão Ribeiro
Muito obrigado, Professor Paulo Rangel. Passo então a
palavra, para a primeira questão do dia, à Soraia, do Grupo Rosa.
Soraia Lopes
Bom dia, caro Professor, descentrando ligeiramente dos
sistemas de governo…
Paulo Rangel
Professor, é o outro…
Soraia Lopes
Muito bem. Senhor deputado, descentrando ligeiramente dos
sistemas de governo, mas dentro das matérias de Estado, gostaria de lhe
perguntar sobre o papel de Defesa, não só nos Estados, mas também na União
Europeia. Os novos desafios do terrorismo e as crises da imigração levam-nos a
repensar o patrulhamento das nossas costas e o reforço do controlo de
fronteiras. Ora, como se pode seguir estes dois caminhos sem prejudicar
Schengen nem a imagem de paz que a União Europeia tem no mundo? Como deve a
União Europeia orientar as suas políticas de defesa?
Paulo Rangel
Aqui há várias questões, mas eu vou ser muito cartesiano,
procurar ser muito disciplinado. Vamos cá ver… primeiro ponto: uma questão é a
questão das migrações que nós temos neste momento. A questão mais grave, do meu
ponto de vista, da Europa, não é a crise económica. Nessa matéria eu sempre
defendi que nós devíamos ter uma política comum. Não apenas para o asilo, não
apenas para o acolhimento de refugiados, mas para as migrações, quer dizer,
para o mercado laboral europeu em geral. Nomeadamente para as migrações. E para
isso eu sempre fui favorável à criação de uma guarda costeira, isto é, ou de
uma guarda fronteiriça, se quiserem, comum.
Claro que isto é a visão de um federalista, que é uma
coisa que não está muito em voga, mas, como vão ver, vai ser rapidamente
recuperada porque a crise agora está em tal grau que vai ser rapidamente
recuperada. Sempre defendi isso e continuo a defender. E isso poderia ser o
embrião daquilo que mais tarde viesse a ser um exército europeu, uma força
militar europeia que eu acho que também era importante.
Neste momento, o quê que eu digo? A crise dos migrantes é
de tal maneira urgente que vai ter que ter respostas imediatas. Nós,
felizmente, no Grupo Parlamentar do PSD no Parlamento Europeu, temos o maior
especialista do Parlamento Europeu nesta matéria, que é o Carlos Coelho. E,
portanto, Portugal vai ter de certeza no Parlamento Europeu uma voz ativíssima
nesta matéria. Aliás, é conhecido no Parlamento Europeu não por Carlos Coelho,
não por senhor Reitor, mas por senhor Schengen. E, portanto, temos aqui este
ativo. Este é um aspeto.
Outro aspeto é o aspeto militar. Quanto ao aspeto
militar, eu devo dizer-lhes que estamos muito atrasados. Eu sempre defendi um
eixo franco-inglês. Nós devíamos ter uma força que, embora com a participação
dos outros, essencialmente se alicerçasse nos únicos dois países com verdadeira
capacidade militar, que são a França e a Inglaterra, e ter um orçamento para
pagar missões a essa força que eles coordenariam. E assim teríamos um eixo
franco-britânico na questão da defesa e um eixo franco-alemão na questão
económica, o que talvez nos desse algum equilíbrio de poderes dentro da União
Europeia. Sempre defendi isto.
Não é aceitável que a França, por exemplo, esteja no
Chade ou no Mali a proteger-nos e esteja a pagar essa fatura. Não é aceitável
que a Grécia e a Itália estejam a pagar a fatura dos migrantes sozinhos.
Portanto, estas políticas têm de ser políticas comuns.
Eu só terminaria com uma segunda reflexão sobre isto
tudo, que é esta: todos vós que estais aqui, mulheres e homens, há uma coisa
que têm que mudar, porque nós fomos educados para uma sociedade de paz e não é
essa a sociedade que nós vamos encontrar nos próximos 20 a 30 anos. E, portanto,
o país tem que ser capaz de começar a afetar mais PIB à defesa e a preparar
todos os cidadãos para a defesa. Eu não estou a dizer que vamos ter um serviço
militar obrigatório para homens e mulheres outra vez, não é isso que eu estou a
dizer. Não que me parecesse uma ideia tonta, porque não acho que era tonta,
precisava de ser refletida e debatida. Mas, meus caros amigos, quem julga que
vive no mundo da Guerra Fria em que havia os índios e os cowboys e havia dois
blocos que se equilibravam, como no duelo que dizia que há no sistema
parlamentar, que se vão equilibrando porque ambos sabem que se podem destruir –
isso desapareceu.
Nós precisamos de jovens que tenham a coragem que tiveram
aqueles dois marines americanos, e o seu colega universitário, dentro de um
comboio. E por isso nós temos de ser formados para isso. Para sermos capazes de
dar a vida ou de pôr em risco a nossa segurança para defender a segurança
coletiva. E isso só com um reforço da matéria de defesa, da formação de defesa
dos jovens. Ninguém pense que os tempos que aí vêm vão ser tempos iguais aos
que nós tínhamos. Isto mudou.
Portanto, há aqui mudanças
institucionais importantes a fazer, muito difíceis, na União Europeia, mas há
uma mudança mais importante. Que as mães e os pais de todos vocês e que cada um
de vocês, especialmente quando forem mães e pais, também terão de fazer, que é,
nós vamos precisar de voltar a ser capazes de autodefesa. Não é para atacar
ninguém, mas se eu for na rua e alguém me apontar uma faca, eu tenho de me
defender. Portanto, nós temos ameaças e temos de estar preparados para elas.
Uma sociedade que se esquece do capítulo da defesa é uma sociedade vulnerável.
E Portugal, não tenham dúvidas, é um país vulnerável. Até agora a nossa sorte é
que nós não somos um país apetitoso. Mas é um país vulnerável porque nós não
estamos preparados para esse tipo de ameaças.
Nuno Matias
Muito obrigado. Tem agora a palavra, pelo Grupo Azul, o
Luís Ponte.
Luís Mário da Ponte
Muito bom dia a todos. Eu queria a sua opinião acerca do
seguinte assunto. A falta de flexibilidade da Constituição da República Portuguesa
que vincula o Presidente da República, que, por sua vez, vincula o Governo e a
Assembleia da República, poderá, em certas circunstâncias, restringir o governo
na prossecução do interesse nacional, do interesse público, visto que a
sociedade atual vive em constante mutação, por vezes a ritmos potentíssimos?
Obrigado.
Paulo Rangel
Ora bem, a sua pergunta é muito interessante, mas sabe
que isto depende da conceção de Constituição que cada um tem. Portanto, aqui em
Portugal, em particular, os juristas são muito formalistas e são muito dados… E
isso explica, por exemplo, algumas decisões do Tribunal Constitucional... Eu
não diabolizo nada o Tribunal Constitucional, nem sequer concordei em alguns
casos com o tom que às vezes o nosso governo, um pouco… (eu percebo que a
pressão era muita para conseguir os objetivos) mas um pouco zangado às vezes
com o Tribunal Constitucional. Não defendo isso. Mas eu acho que o Tribunal
Constitucional em Portugal é uma instituição conservadora, não é uma
instituição proactiva, Porque as constituições não são apenas o que está
escrito, são o que está escrito em ligação com os valores do momento e a
realidade. Eu dou um exemplo: a Constituição americana que tem lá o princípio
da igualdade, (não foi logo no início, foi logo a seguir, quando se fez a
Declaração de Direitos), foi compatível com a escravatura. Claro, os escravos
eram iguais entre si e os livres eram iguais entre si, cumpria-se o princípio
da igualdade. Depois começou a entender-se que todos eram livres, mas foi compatível
com o Apartheid, certo? Foi compatível com o Apartheid. O mesmo texto! Depois
nos anos 50 acabou-se com o Apartheid e então agora já não há escolas para
negros e escolas para brancos, as escolas são para todos. Ou os autocarros, por
exemplo. E depois até se criou a discriminação positiva, isto é, àqueles que
partem de uma, digamos, situação pior, vamos dar algumas vantagens, vamos
deixá-los partir cem metros à frente para que eles possam recuperar e as
gerações seguintes deles possam estar ao nível dos outros. Ou seja, uma
interpretação dinâmica da Constituição. Veja, até há pouco tempo, por exemplo,
o Supremo Tribunal Federal considerava que o casamento gay era contrário à
Constituição e agora entende que é imposto pela Constituição americana. Alguém
fez alguma revisão constitucional? Não. É uma interpretação de acordo com os
valores dos tempos. Há 30 anos isso era uma coisa impensável e passados 30 anos
já não é. Portanto, é precisa uma leitura dinâmica da Constituição.
Eu acho que nós precisávamos de uma revisão
constitucional ou até de uma nova Constituição, mas isso para mim não é uma
coisa fundamental. Se houver um Tribunal Constitucional que seja dinâmico,
proactivo, progressista na leitura da Constituição, nós temos todas as
condições para, com o texto que temos, podermos ter as respostas necessárias a
cada momento. Portanto, aquilo que eu entendo é: tudo vai da leitura que nós
temos da Constituição. Se é uma leitura, dizem os juristas como eu,
positivista, isto é, que vai atrás do texto, evidentemente que nós não vamos
sair da cepa torta porque estamos ainda com muitas marcas de 1974. Agora, se
nós fizermos, como outros fizeram, como fizeram, por exemplo, os franceses... se
lerem a Constituição francesa não está lá nenhum regime semipresidencial, o De
Gaulle é que o criou na sua cabeça, portanto, interpretou aquilo daquela
maneira com as suas práticas e os outros foram atrás daquelas práticas.
Portanto, se o nosso Tribunal Constitucional tiver essa flexibilidade e essa
abertura para se abrir ao tempo… aliás, há um grande autor alemão, que era o Bäumlin, que dizia: "uma norma
constitucional é uma norma aberta ao tempo”. Se tiver esta abertura eu acho que
isso dá flexibilidade suficiente para nós não precisarmos, para cada coisa, de
uma revisão constitucional. Senão vamos mesmo precisar de revisões
constitucionais. Mas nós já fizemos bastantes. Mas talvez fossem precisas mais
algumas, alguns acertos. Essencialmente no sentido de limpar um pouco a
Constituição.
Até porque hoje a nossa Constituição, deixem-me só dizer
isto, não é apenas a Constituição portuguesa, é também a Constituição europeia.
Por exemplo, em caso de matérias económicas, o que conta são os tratados
europeus, isso é que é a verdadeira norma constitucional. A nossa Constituição,
hoje, é plural, há vários níveis de constituição. As questões económicas estão
no domínio europeu, as questões de sistema de governo estão no domínio nacional
e nós não podemos parar o vento com as mãos. Nós podemos escrever coisas na
Constituição… nós podemos escrever na Constituição que toda a gente vai ter uma
casa com piscina, mas isso pode lá estar escrito na Constituição do Burkina
Faso, mas isso não vai acontecer. O mesmo texto na Suécia ou no Burkina Faso
terá sempre uma realidade diferente para operar.
Portanto, aquilo que eu entendo é: é preciso mais
abertura na leitura da Constituição. Com isso nós já teríamos soluções
suficientes para resolver os problemas financeiros. Mas, por exemplo, ter um
estado de necessidade financeira na Constituição, eu acho que era uma coisa que
podia ter ajudado muito nesta crise e ter facilitado muito a tarefa aos
portugueses, ter exigido menos sacrifícios, porque nós não íamos precisar de
ter as medidas de efeito equivalente que tiveram efeitos negativos na economia
que, de outra forma, não teriam ocorrido.
Nuno Matias
Muito obrigado. Tem agora a palavra, pelo Grupo Amarelo,
a Marta Madureira.
Marta de Madureira
Bom dia. Acha que, num sistema semipresidencial como o
nosso, faz algum sentido admitir um governo de iniciativa presidencial, como já
aconteceu com a presidência de Ramalho Eanes e, já agora, porquê? Obrigada.
Paulo Rangel
Ora bem, vamos cá ver… Há aqui uma diferença muito grande
entre a situação de 1977, que é quando essa questão se põe pela primeira vez, e
a situação atual. É que a Constituição foi revista em 82, em termos tais que
retirou um poder muito importante ao Presidente da República e deu outro poder
muito importante ao Presidente da República. Eu vou explicar.
Quando o Presidente Ramalho Eanes, perante um impasse do
Parlamento, em que havia o PS, depois o PSD e depois, enfim, o CDS, e depois o
PCP e depois havia o MDP e a UDP com muito pouca expressão... mas havia estes
quatro partidos. O PS tinha uma maioria relativa depois vinha o PSD, depois
vinha o CDS, depois vinha o PCP. Mais ou menos isto. Quando isto acontecia era
muito difícil formar governos. Houve um primeiro governo de maioria relativa de
Mário Soares. Houve um segundo governo de aliança PS/CDS, com Mário Soares a
Primeiro-ministro, mas ficou Freitas do Amaral, que era líder, de fora. Era o
Basílio Horta, agora no PS, que chefiava de alguma maneira, digamos assim (era
Ministro do Comércio Externo, creio eu) o CDS dentro do Governo. O quê que tinha
o Presidente? O Presidente tinha uma cláusula na Constituição que dizia: o
Presidente pode demitir o Governo. Só, sem razão nenhuma, por falta de
confiança. Esta cláusula foi mudada em 82 e passou a ser redigida da seguinte
maneira: o Presidente pode demitir o Governo em caso de irregular funcionamento
das instituições democráticas. Portanto, ou seja, foi muito restringida. Até 82
o governo precisava da confiança política da Assembleia e da confiança política
do Presidente. Portanto, o Presidente tinha um papel de confiança política, por
isso podia nomear primeiros-ministros. Nomeou o Nobre da Costa, mas esse governo
não chegou a ver o seu programa aprovado. Depois o Mota Pinto ainda teve governo
durante algum tempo e depois criou um governo, só para fazer eleições, da Maria
de Lurdes Pintassilgo, ali em 79, foi o célebre governo dos 100 dias, porque
vigorou apenas 100 dias porque foi só para organizar eleições. É um pouco como
tem agora a Grécia, que tem uma senhora a primeiro-ministro só para organizar
eleições.
Portanto, eu acho que hoje é difícil haver um governo de
iniciativa presidencial. O que eu acho que pode aproximar-se de uma estatura
maior ou um contributo maior do Presidente da República é o seguinte: havendo
resultados eleitorais pouco claros e tendo de haver negociações de bastidores,
isto é, nos corredores do Parlamento, que é que acontece na Bélgica, o que
acontece na Holanda, na Dinamarca, na Suécia, na Noruega - portanto não é nada
do outro mundo –, na Itália, aconteceu durante muito tempo. Ou seja, não havia
maiorias absolutas claras, e, portanto, nestes países tem sempre de haver
coligações. Por isso a pessoa nunca sabe quem vai ser o primeiro-ministro.
Quando estamos a votar na Bélgica ou na Holanda nós nunca sabemos quem vai ser
o primeiro-ministro. O primeiro-ministro pode ser do terceiro partido, porque o
primeiro e o segundo não se entendem, mas há três que se entendem e então para
não ser o primeiro, nem o segundo, é o líder do terceiro. Isto acontece por
exemplo, na Letónia aconteceu ainda há dois anos. No caso da Bélgica é evidente
que o atual primeiro-ministro é do quarto ou quinto partido; é a pessoa que é suscetível
de gerar consensos para este efeito. Portanto, aí o Presidente pode ter um
papel, porque a nossa Constituição diz: o Presidente escolhe o
primeiro-ministro; não há eleições para primeiro-ministro, há eleições para o Parlamento
e quem escolhe o primeiro-ministro é o Presidente. Claro, se as eleições dão
uma maioria absoluta clara, o Presidente não tem margem de escolha. Ou se dão
uma maioria relativa muito clara, pelo menos tem de indigitar aquela pessoa
para tentar formar governo, ver se ela consegue, e se ela conseguir formar um governo,
naturalmente, que dará posse a essa pessoa.
Agora, se houver uma situação muito cinzenta, os seus
poderes aumentam e ele pode até ter o papel, por exemplo, de encontrar uma
terceira personalidade que possa fazer o pleno entre dois partidos que se
queiram coligar. Portanto, essa hipótese, na Constituição portuguesa, não está
descartada. Não faz parte da nossa tradição, mas, como a realidade muda muito
dinamicamente, eu não excluíria um cenário desses, no futuro, poder acontecer
isso.
Agora, um governo de iniciativa presidencial como nós
tivemos, eu acho que só com o texto de 82 - já não seria possível agora. Ou com
uma nova reforma constitucional que viesse presidencializar o regime ou
aumentar a sua componente presidencial.
Já agora, só para deixar esta informação, qual foi o
poder que o Presidente ganhou? É que, dantes, o Presidente não podia dissolver
livremente o Parlamento, precisava de um parecer favoravel do chamado Conselho
da Revolução, que hoje seria do Conselho de Estado. Portanto ele não decidia
sozinho, precisava, antes, de ter aquele parecer favorável. E a partir de agora
era um poder solitário. O Presidente está em Belém, acorda, toma o
pequeno-almoço, sente uma ligeira indigestão – pode dissolver o Parlamento. Isto
é constitucional, não é inconstitucional. Claro, depois terá que responder aos
jornalistas todos que aqui estão e é capaz de a indigestão aumentar gravemente,
mas… [APLAUSOS] mas é constitucional. Ou seja, de acordo com a Constituição,
ele pode invocar um mau pequeno-almoço para dissolver o Parlamento.
Simão Ribeiro
José Paulo Miller, Grupo Laranja.
José Paulo Miler
Muito bom dia. O Dr. Paulo Rangel defendeu a mudança do
sistema eleitoral para a Assembleia da República com a introdução dos círculos
uninominais. Deste modo, e tendo em consideração o contexto atual de crise em
que vivemos, considera que é congruente uma reforma do sistema político nesse
âmbito e, se sim, qual é o modelo que defende? Obrigado.
Paulo Rangel
Olhe, eu vou dizer-lhe o seguinte: eu acho que nunca
defendi isso, mas, quando uma pessoa tem 47 anos nunca pode dizer que nunca
defendeu nada. Pode ter a ver com alguma coisa que, numa noite obscura, eu
tenha defendido e já não me lembrar. O que eu defendi muito recentemente, isso
sim, foi uma coisa que, no fundo, vai um pouco ao encontro das preocupações que
estão por trás da sua pergunta, que foram as listas preferenciais, certo? Ou
seja, as listas preferências. Isto quer dizer que eu acho que os cidadãos
deviam ter o direito de compor a sua própria lista. Isto podia ser feito de
duas maneiras.
Uma maneira era só num partido. O partido indica os seus
candidatos, estão lá postos por ordem alfabética e a pessoa põe duas cruzes
naqueles candidatos que quer ver eleitos em primeiro lugar, e quem tiver mais
cruzes é que entra em primeiro lugar. Ou seja, desaparece o fenómeno dos
cabeças de lista. Isto obriga os partidos a escolher o quê? A escolher pessoas
que as pessoas reconheçam como pessoas válidas e competentes e não a acontecer
aquela coisa que nós vemos hoje, o António Costa que diz que renovou os cabeças
de lista e que tem cabeças de lista extraordinários, depois vai a ver os
segundos e é toda a gente igual. Aquilo no fundo são todo os mesmos… fez um
lifting, não é? Pôs um cremezinho nas listas e aquilo está, enfim, um pouco
colorido, mas, na verdade, depois vai-se a ver e é a mesma coisa. Portanto, eu
defendi as listas preferenciais.
Quero dizer que eu não seria contra um sistema de
círculos uninominais como tem a Alemanha, a que se chama sistema misto, mas que
não é um sistema misto, é um sistema de representação proporcional como o
nosso, em que metade dos deputados é eleito em círculo uninominal e metade é
eleito por listas, mas o número de deputados que cada partido tem é exatamente
aquele que corresponde à sua percentagem. Por exemplo, se nós hoje temos 120
deputados, imaginemos, ou um partido tem 120 e outro tem 100, nos resultados
continuará a ter. Desses 100, os que foram eleitos em círculo uninominal,
imagine que um elegeu 40, entram esses 40 e depois vai-se às listas buscar os
outros 60. E o outro elegeu 57, tem os 57 e depois os outros 63 vai buscá-los à
lista. Ou seja, ele mantém a proporção que tem, portanto, não altera, não torna
maioritário esse sistema, não cria aquele problema que acontece nos Estados
Unidos e que acontece também em Inglaterra, em que um partido pode ter (como
por exemplo o Partido Liberal teve nos anos 80), 25% dos votos e tinha 6
deputados em 600. Tinha 1% dos deputados e tinha 25% dos votos, porque ficava
em segundo lugar em todo o lado, e como só se elegia o primeiro, claro, os
votos eram todos deitados ao lixo, são os chamados restos desaproveitados.
Ora, o sistema alemão, que é um sistema que mistura isto,
tem dois votos – voto uninominal e voto no partido. No voto uninominal a pessoa
vota no deputado do seu círculo e no voto do partido vota no partido. Primeiro
conta-se o segundo voto e diz-se: este partido tem direito a 30 deputados.
Quantos uninominais elegeu? Elegeu 7. Então, os 7 uninominais estão aqui e
agora os outros 23 vêm das listas do partido, que o partido apresentou também
uma lista dos que iam por lista.
Este sistema permite que cada círculo se aproxime de uma
pessoa, que tenha lá um representante, e permite manter a proporcionalidade do
sistema. Não estaria contra isto.
Há uma coisa que eu estou contra – é este sistema de
listas bloqueadas que nós temos. Acho que é um sistema muito partidocrático,
muito imposto pelas direções partidárias, muito pouco aberto a respirar e à
renovação. Portanto, sinceramente, acho que o sistema que nós temos não é bom. Introduzir
algumas alterações, acharia bem. Já agora, permita-me este comentário. Há
riscos, por exemplo, num sistema puramente uninominal. Há! Eu que, por exemplo,
sempre fui contra (embora, até no PSD seja muito mal tratado por isso) a
eternização dos Presidentes de câmara nos seus lugares, nós sabemos que se
houvesse o deputado uninominal ia dar-se o efeito de "Presidente-de-camarização”
do deputado. Quer dizer, aquele deputado, a dada altura, ia ser sempre eleito e
reeleito e voltado a eleger porque se ia criar a sua ligação ao seu eleitorado
de tal maneira forte, especialmente nos círculos em que há maior proximidade
das pessoas, que estão mais no interior, etc., que, evidentemente, às tantas,
tínhamos aqui também efeitos perversos. Portanto, não é uma questão simples.
Há uma coisa que é certa e
que está por trás da sua pergunta. Temos de abrir o sistema eleitoral, temos de
abrir. Com este sistema os partidos estão a entrar em entropia, e é mau para
eles; é mau para eles. Não é por acaso que a Sra. Le Pen tem sucesso, que o
"Podemos” tem sucesso, o Sr. Grillo tem sucesso. Nós ainda não estamos nesse
grau mas um dia podemos lá chegar.
Simão Ribeiro
Muito obrigado. Rui Martins, Grupo Castanho.
Rui Manuel Martins
Bom dia. Dr. Paulo Rangel, na sequência da resposta que
acabou de dar, a minha pergunta é: nós não vivemos, mais do que uma crise do
sistema político, uma crise de valores de alguns atores do sistema político? O
que podemos fazer para mudar essa crise?
Paulo Rangel
Ora bem, vamos cá ver. Eu talvez pusesse a questão do
seguinte modo: nós não vivemos uma crise, a crise é que vive, certo? Ou seja, nós
não podemos estar constantemente a dizer que estamos em crise porque isto não é
uma crise, isto é uma mudança. Como é que eu hei de explicar? Uma vez eu
procurei explicar isto...
Vou-lhe dar um exemplo da minha profissão de jurista.
Fala-se muito na inflação legislativa. Há leis a mais, estão sempre a produzir
leis, leis a mais. Isto é uma doença, é uma crise. Uma vez eu escrevia um
artigo que dizia assim: inflação legislativa não é uma doença, é uma mutação
genética. Quer dizer: agora já não vai mudar, vai ser sempre assim. Ou seja,
nós vamos viver sempre em crise. Porque repare, o problema… para os jovens,
isto não é notório, mas para pessoas como Carlos Coelho ou como eu, nós
nascemos na Guerra Fria. E na Guerra Fria nós fomos todos formatados para que
havia dois blocos – bloco Ocidental e o bloco de Leste. E tudo se resumia a
isto. Era tudo muito simples, era preto e branco, era índios e cowboys. E
portanto, parecia-nos que havia crises de vez em quando. Havia uma crise em
Chipre, havia uma crise nas Coreias, havia uma crise, quando foi a Revolução
portuguesa, nas colónias portuguesas, se eram os Estados Unidos se era a União
Soviética que poderiam eventualmente ter ali maior preponderância. Depois da
independência quais seriam as superpotências que teriam ali maior
preponderância.
Eram as chamadas crises regionais. Era a crise na
Nicarágua, tinha sido a crise de Cuba. Isso eram crises. A partir do momento em
que está num momento globalizado, isto não é crise, é a nossa maneira de ser.
Por isso é que eu lhe disse: nós não estamos a viver uma crise, a crise é que
está a viver. Nós é que somos a crise. Este é o primeiro aspeto. Ou seja, quem
pensa que há um remédio extraordinário e que nós vamos viver num mundo de maior
segurança e de maior estabilidade, e que vai haver um remédio milagroso e que
vai ser tudo extraordinário e que os mapas vão estar fixados... Não vão! Porque
aquela ideia… pense só nisto: nós tínhamos Estados que tinham um território, um
povo e uma soberania, e o território estava muito bem delimitado. Mas a partir
do momento em que tem aviões por todo o lado, tem carros por todo o lado,
comboios, navios, tudo a circular. E depois tem a Internet, que essa é a
verdadeira mudança...
Repare, só para ver um problema: há aqui um técnico
informático brilhante, desenvolve um novo produto, vende-o para o Brasil, para
a Argentina e para o Chile. Para o vender o que é que ele precisa de fazer? Faz
um clique no seu computador, manda o produto para os seus clientes, eles fazem
o depósito e agora digam-me o seguinte: quem é que trata do IVA, dos impostos,
das declarações, etc.? Isso tudo pressupunha uma estrutura física e não
propriamente isto. Quer dizer, de repente o mundo mudou, de repente nós estamos
noutro mundo, em que não há fronteiras. Por isso é que nós temos também estes
movimentos migratórios tão fáceis. Como é que é tão fácil as pessoas
circularem, mesmo nestas condições tão precárias? Porque nós estamos no mundo
da mobilidade. Portanto, aquilo que eu lhe queria dizer é o seguinte: Nós temos
de aprender a viver a gerir a crise e não propriamente a pensar que vamos
resolver a crise, porque isto não é uma crise, isto é uma mudança de paradigma.
É sair de uma sociedade que estava organizada em Estados tradicionais para uma
sociedade que está organizada em rede de influências e em poderes assimétricos.
Dantes os poderes eram simétricos. Portugal, Estado
soberano com determinadas caraterísticas, e a Espanha a seguir, e a França a
seguir, e Marrocos e a Argélia e a Tunísia… Isto desapareceu. Agora são espaços
de influência, agora há poderes invisíveis - os mercados. Cai a bolsa em
Xangai, já está aqui… é a teoria do caos. Uma borboleta a bater as asas nos
jardins de Pequim origina um furacão no Golfo do México. Quer dizer: hoje nós
estamos noutro mundo. E, portanto, a primeira coisa que queria dizer é o
seguinte: é a adaptabilidade.
Se me disser assim: qual é o valor fundamental para nós
nos guiarmos nesta nova realidade? Eu acho que é a capacidade de nos
adaptarmos, de estarmos atentos ao sinal, de estarmos atentos a esses sinais de
mudança, estarmos em constante capacidade de adaptação. E depois é reforçar as
nossas identidades, por isso eu digo, e até fui insultado esta semana no
"Público” por uma pessoa que, aliás, estimo muito, e a quem aproveito para
mandar um cumprimento, que é o Dr. Ribeiro e Castro, mas que me insultou no
"Público” sem pôr lá o meu nome, porque eu disse o seguinte (e torno a dizer
aqui a todas as minhas amigas e a todos os meus amigos), que é isto: faz mais
pela língua portuguesa e pela identidade portuguesa um bom ensino de Português
e de História nas escolas, uma boa preparação em inglês, uma boa preparação em
informática, do que mais um voto ou dois no Conselho ou o português ser língua
oficial da Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Económico. Isso não
interessa nada, o que interessa é que nós, portugueses, estejamos cientes da
nossa História, da nossa identidade, saibamos usar a nossa língua, não
escrevamos textos para a Universidade de Verão em que usamos o "k” em vez de
"que” e coisas deste género.
Se nós formos capazes de fazer isso, nós mantemos a nossa
identidade com adaptabilidade aos novos tempos. Ou seja, este é que é para mim
o ponto. E a ideia de que há uma crise de valores, claro que há uma crise de
valores, mas quer dizer, é como eu lhe digo... Que valores é que nós vamos
recuperar? São os valores de sempre, é o valor da honestidade, é o valor da
seriedade, da competência, do trabalho. Os valores são esses, não se inventa
nada.
O Homero, na Odisseia, que foi escrita 800 anos antes de
Cristo, dizia: os moinhos dos deuses moem muito devagar. A realidade está a
mudar a uma velocidade espantosa, mas a natureza humana é a mesma. Os valores
humanos são os mesmos. É o respeito pelo outro, é crer que temos uma identidade
própria, defender a nossa identidade não é afrontar a identidade dos outros.
Penso que estes são os valores para nos guiarmos numa
sociedade como esta. E é acabar com a ideia de que estamos em crise. Meu caro
amigo, nós não estamos em crise, nós somos crise. O português tem esta grande
vantagem: tem o verbo "ser” e o verbo "estar”. Nós não estamos doentes, nós
somos doentes, num certo sentido. Já não somos doentes, somos mutantes. Somos
habitantes de um novo paradigma, do ponto de vista político e do ponto de vista
societal, para usar uma expressão da sociologia, que não é apenas social é mais
global do que isso. Portanto, deixemo-nos desta coisa "hei, que crise
gravíssima, e os valores e a decadência…”, não senhor, o mundo está em mudança
e nós temos de ser capazes de agarrar essa mudança.
Simão Ribeiro
Muito obrigado. Aldo Maia, Grupo Roxo.
Aldo Maia
Bom dia, Professor Paulo Rangel…
Paulo Rangel
Já lhe disse que o professor não está aqui.
Aldo Maia
OK, muito bem, bom dia, Dr. Paulo Rangel. Eu não resisto
a puxar um bocadinho as perguntas para o lado europeu, considerando as
responsabilidades que tem. E na Europa temos vivido vários fenómenos que
poderiam ser resolvidos com políticas comuns de forma mais célere e mais efetiva,
como por exemplo a crise dos refugiados, que é uma atrocidade para qualquer
cidadão europeu. E, sendo um federalista convicto, de que forma é que vê o
futuro modelo de governo da União Europeia e quais as principais alterações que
o modelo de governo português atual teria que sofrer. Muito obrigado.
Paulo Rangel
Olhe, a primeira que eu gostava de desmistificar é a
ideia que corre para aí de que ser federalista é perder soberania. É uma ideia
que aí está agora muito em voga. Muito defendida, por exemplo, por Pacheco
Pereira, tem muitos escritos nessa linha. Eu leio-o sempre com muita atenção e
acho que ele diz muitas coisas pertinentes, muito embora o ângulo em que está,
obviamente, não o subscrevo, mas no meio daquele argumentário não deixa de
estar lá muita coisa pertinente. Mas ele, enfim, é um antifederalista confesso,
muito na linha britânica, diria eu. E como ele a intelectualidade portuguesa em
geral. Portanto, muita gente, muita gente.
Agora, o que eu queria explicar, era o seguinte: a melhor
forma de defender os interesses, hoje, de um país como Portugal é o Federalismo.
O que nós temos hoje na Europa não é o Federalismo, é realmente o Diretório. Por
isso eu costumo dizer: a Constituição europeia não é democrática, a
Constituição europeia é aristocrática. Tem os grandes e tem depois os médios e
pequenos, certo? Estou a ir a categorias de Aristóteles. Nem todos saberão
isso, enfim, não têm obrigação de saber, mas o Aristóteles classificava os
regimes, e considerava-os todos positivos, em Democracia, Aristocracia e
Monarquia. Depois eles tinham a sua perversão que era a Tirania, a Oligarquia e
a Demagogia. Eu acho que o que acontece é que, na Europa, o Tratado de Lisboa
não resolveu os nossos problemas. E não resolveu os nossos problemas porquê? Porque
não assume o Federalismo; o Federalismo protege mais os Estados médios e
pequenos do que o Não Federalismo. Eu vou-lhe dar um exemplo. No Conselho
Europeu, que é a câmara alta, é uma espécie de Senado, os votos são definidos
em função, não dos países, mas da população, e no Parlamento Europeu também.
Ora, o quê que acontece numa Federação? Na Câmara Alta os países têm o mesmo
voto. O Arkansas tem um milhão de pessoas e tem dois senadores. A Califórnia
tem 30 milhões de pessoas e tem dois senadores. Na Câmara dos Representantes,
às tantas, o Arkansas tem só três representantes e a Califórnia é capaz de ter
44 ou 45, talvez, não sei, estou agora só a dar um exemplo, mas é proporcional
à população. Uma Câmara representa a população, a outra representa os Estados.
Aliás, eu já fui duas vezes ao Tribunal Constitucional
alemão – o Tribunal Constitucional alemão é muito citado, mas tem uma cultura
muito aberta e então convida muitas vezes deputados europeus, convida
personalidades em geral para audições - para falar muito sobre esta questão da
primeira câmara, segunda câmara. Fui lá com mais dois deputados europeus para
falarmos sobe isto. E eu disse aos alemães: adotem a Constituição alemã na
Europa. A Alemanha é um Estado Federal, tem dezasseis Estados. Os Estados
pequenos, por exemplo, o Sarre, que tem um milhão de pessoas, tem três votos na
câmara alta. E o maior Estado, que é a Renânia do Norte-Vestefália, que tem
dezassete milhões, tem seis votos. Se a Alemanha tivesse seis votos, e
Portugal, a Grécia, a República Checa, a Bélgica, a Hungria, que têm todos dez
milhões de pessoas, tivessem quatro, depois o Luxemburgo, etc., tivessem três,
Portugal e a Hungria sozinhos tinham mais votos do que a Alemanha. Ali. Depois,
na outra câmara, não, e eram precisas as duas câmaras. Portanto, o Federalismo
protege. Mais, o Federalismo permite dizer: estas competências são nacionais e
estas competências são europeias. O que nós temos hoje é a confusão geral, tudo
é nacional e tudo é europeu. Quem é que está neste momento a governar? Não são
as instituições europeias – Comissão e Parlamento. É o Conselho – são os
primeiros-ministros. Portanto, o que nós temos é uma espécie de coletivo de
governos nacionais a dirigir o processo europeu, porque não há instituições
europeias com poder suficiente para resolver os problemas europeus. Isto
aconteceu na crise, isto está a acontecer nas migrações também. Por isso é que
depois há aquelas Cimeiras, entre os principais, para levarem as questões mais
ou menos resolvidas, enfim mais ou menos preparadas, os "non papers”, como eles
chamam... que são os "não papéis”? São papéis que circulam mas que supostamente
não existem. Eu defendia a evolução para uma Federação. Agora, se me pergunta
se isto é plausível, se isto se pode fazer no curto prazo, eu sinceramente sou
cético, sou realista, acho que é muito difícil. Há uma coisa de que eu não
tenho dúvidas: quanto mais problemas deste género emergirem – o caso da
situação grega, o caso agora que é, de longe, o mais grave, da situação dos
migrantes, o caso que não pode ser esquecido da Ucrânia -, eu acho que vão
tender para que haja maior integração, que esse processo se acelere. Depois de
um processo de renacionalização, nós vamos assistir a um processo de
reintegração. Isto, no fundo, também não é nada extraordinário.
Os Estados Unidos, que são uma verdadeira Federação,
também só são uma Federação, não há assim tanto tempo. Eu lembro o seguinte:
muita gente diz "a Europa não se entende, na Europa não se entendem!”. Sabem
como é que se criou uma Federação verdadeira nos Estados Unidos? Foi com uma
guerra civil. Foi os Estados no Norte a imporem a Federação aos Estados do Sul,
porque eles queriam vir-se embora para manter o modo de produção esclavagista.
Os Estados Unidos são a terra da liberdade, são uma Federação à força. Não são
uma Federação feita de acordo com a livre vontade dos povos e com um referendo
universal. É que às vezes nós somos muito simplistas. Quer dizer, num sítio
onde era muito mais fácil fazer uma Federação, foi preciso haver uma guerra
civil para que os Estados que não tinham escravos se impusessem àqueles que
tinham escravos. Certo?
Por vezes o nosso pensamento é muito simplista. Chegam
aqui e dizem: olhem para os Estados Unidos… se nós fossemos os Estados Unidos,
claro, estava tudo resolvido. Nos Estados Unidos? Então o que é que queriam?
Queriam agora que a Alemanha, a Holanda, a Finlândia e a Áustria pusessem um
conjunto de batalhões, avançassem pela Grécia dentro, pela Itália abaixo,
Espanha e Portugal, impusessem a disciplina financeira, agora os senhores têm
estas regras assim, assim, assim… nós é que vamos dizer como é, e acabou,
pronto, já está! Atenção, isto é só para explicar que isto são processos
complexos, os processos de integração.
E no caso de uma comunidade que tem 24 línguas, que tem
não sei quantas religiões, que não tem verdadeiramente uma homogeneidade
étnica, tem algo de comum, mas tem esta disparidade toda, naturalmente que isto
é um processo mais difícil. Mas eu estou convencido que até o Sr. Cameron está
desejoso por uma política comum de migrações neste momento. Até ele já está.
Porque os problemas são graves.
Eu chamo a atenção para isto, e volto à consciência
militar. Ameaça a Leste da Rússia, ameaça a Sul do Estado Islâmico, crise no
epicentro entre o Leste e o Sul, o Sudeste chama-se Grécia. Portanto, nós
estamos, de facto, numa situação muito, muito difícil. É extremamente difícil.
E portanto temos de estar conscientes de que temos de lidar com isto e que
temos de ter respostas para isto, e que não há antídotos universais, não há uma
vacina para esta coisa. Portanto, isto é um processo. Mas eu acho que nós vamos
entrar num processo de reforço da integração europeia. Vamos entrar num
processo desses porque não há outra forma de respondermos a ameaças desta
dimensão.
Simão Ribeiro
Vasco Ferreira, Grupo Verde.
Vasco Ferreira
Muito bom dia, Dr. Paulo Rangel. Como vê a proposta
presente na moção vencedora do último Congresso da JSD que aponta para a
transição para um sistema presidencialista em Portugal?
Paulo Rangel
Bom, essa pergunta é uma pergunta difícil porque eu fui
sempre, e continuo a ser, um defensor de um maior protagonismo do Presidente no
sistema português. Portanto, a mim não me chocaria um sistema presidencial em
Portugal, nunca fui contra isso, mas eu acho que, mesmo com a Constituição
atual, o Presidente podia ter muito mais intervenção.
Eu vou dar aqui dois exemplos que já dei publicamente, e
vou falar portanto com toda a liberdade, que aliás é uma coisa que eu faço
sempre, embora tenha um preço a pagar. É uma coisa que queria dizer aqui aos
meus amigos, e muitos são jovens políticos. Os aparelhos, especialmente por
causa das listas bloqueadas, têm tendência a não deixar falar as pessoas com
liberdade. Mas o não falar com liberdade no curto prazo pode dar um pequeno
posto, mas paga-se um preço caro, e, portanto, é preciso ter isso presente. Eu
aqui vou dizer o seguinte: como é que eu analiso os mandatos dos Presidentes da
República com o atual texto constitucional?
Vou escandalizar toda a gente, mas eu acho, achei sempre,
que funcionou bem o Presidente Mário Soares como Presidente. O Dr. Mário Soares
tem agora esta versão final que os senhores conhecem, esta última versão,
melhor dito, não é final, mas esta última versão, que eu já expliquei que tem
uma razão. É que o Dr. Mário Soares governou sempre à direita do PS, meteu o socialismo
na gaveta, mas quer ficar para a História como um homem de esquerda. Então
aproveitou esta altura em que as coisas dele já não têm efeito nenhum para
tentar ficar nos manuais como homem de esquerda. Mas foi ele que combateu o
comunismo em 74/75, foi ele que esteve aqui com o FMI… a pessoa que melhor
compreende o primeiro-ministro Passos Coelho em Portugal é o Dr. Mário Soares,
embora ele não o diga e não tenha a coragem de o dizer, porque ele foi
primeiro-ministro, justamente, nas mesmas condições. E as duas pessoas que
poderiam compreendê-lo tão bem como ele, já morreram, apesar de bastante mais
novas. Um era o Dr. Mota Pinto, e faz este ano 30 anos que morreu o Dr. Mota
Pinto e ainda não se fez aqui… talvez o Instituto Sá Carneiro pudesse pensar um
pouco em recuperar o pensamento do Professor Mota Pinto que foi um líder do PSD
importante e um líder importante nessa altura, numa altura em que era
importante resgatar o país, numa situação que não era menos difícil do que
esta. E o Dr. Ernâni Lopes que era o Ministro das Finanças e que também teve
que viver essa crise.
Portanto, eu acho que ele, mesmo fazendo algumas
tropelias ao Professor Cavaco Silva como primeiro-ministro, que também não
fizeram mal ao Professor Cavaco Silva, de vez em quando precisava de levar com
umas tropelias… Porquê? Porque o nosso modelo é aquilo que eu chamo um modelo,
no fundo, de gestão pela competição. Ou seja, quanto mais o Presidente for
exigente com o governo, melhor é o governo e quanto mais o governo for exigente
com o Presidente, melhor é o Presidente. Claro que isto pode levar a um
impasse, mas, na dose certa, alguma competição é positiva. Bom, o que é que
aconteceu com o Presidente Dr. Jorge Sampaio, de quem eu fui grande crítico, (embora
considere uma referência moral incontornável do país, das grandes referências
morais, como aliás é o General Ramalho Eanes)?
É que veio o Governo Guterres - ele foi Presidente com o governo
Guterres, - que tinha maioria relativa, faltavam quatro deputados, depois até
estava empatado, eram 115/115. E ele, vendo que o Governo Guterres estava a
levar o país para o descalabro orçamental, apoiou sempre aquele governo. Era
bem-intencionado, era a ideia de dar apoio ao governo... Mas eu preferia um Presidente
que fosse mais duro, mais austero, mais crítico, que puxasse as orelhas, que às
vezes até desse um bofetão, do que um que vai sempre deixando… É como aquelas
pais que deixam sempre os filhos fazerem tudo e depois chega a uma altura em
que já não há correção possível.
O Presidente Jorge Sampaio, que se dizia um Presidente
pró parlamentar, que no fundo queria ser o Presidente o mais neutral possível,
não queria intervir, etc., foi o único Presidente que usou o poder de
dissolução contra uma maioria absoluta. Não estou a falar agora do General
Eanes, porque o General Eanes estava noutro contexto constitucional quando o
fez, no caso Vítor Crespo, e já era a terceira AD, tinha morrido o Dr. Sá
Carneiro, eram coisas totalmente diferentes Ou seja, o que aconteceu com o
Presidente Jorge Sampaio? Ele quis apoiar e suportar o governo, fazia até uns
certos elogios, quis dar algum apoio, mas depois foi capaz de usar um
instrumento brutal e terrível no sistema. E, curiosamente, coisa semelhante
aconteceu com o Presidente Cavaco Silva. O Presidente Cavaco Silva, também no
início do Governo Sócrates, também achava que o Governo Sócrates fazia um bom
trabalho... que a Ministra da Educação estava a fazer um bom trabalho, e
mostrava uma grande cooperação estratégica e uma certa abertura, para depois
chegar ao seu discurso de posse e desfazer o Governo em plena Assembleia da
República. Mau!
Eu prefiro um Presidente que ponha espinhos no caminho
quando tem de pôr e que depois não tenha de usar as armas brutais quando o mal
já está feito. E portanto, para mim, um Presidente interventivo, um Presidente
que alerta, um Presidente que critica, um Presidente que está presente, não é
um mau Presidente. Um Presidente complacente é um mau Presidente. Por isso,
qual é a minha resposta? Eu não teria nada contra um sistema presidencial, não
diria presidencialista que tem uma conotação latino-americana má. Quando nós
nos referimos aos Estados Unidos dizemos que o sistema de governo é presidencial,
quando nos referimos, por exemplo, à Venezuela, dizemos que é presidencialista,
certo? Eu diria presidencial. Não tenho nada contra isso, mas não acho isso
necessário.
Mas também não tinha nada contra uma nova Constituição,
nada. Muita gente dizia "ai meu Deus, mudar a Constituição…”. A França mudou de
Constituição várias vezes, todos os países democráticos mudam, não vejo nisso nenhum
drama, não faço disso um bicho-de-sete-cabeças, mas eu acho que com o nosso
sistema nós podemos ter um perfil de Presidente que seja mais interventivo. E a
verdade é que, embora muitas vezes, o Dr. Mário Soares, quando foi Presidente,
fosse irritante para o Governo de maioria absoluta do nosso partido, a verdade
é que isso puxava para que nós fossemos melhores, porque nós tínhamos de lhe
levar as propostas feitas de forma a que ele não as pudesse criticar. Nós
tínhamos que incorporar também um pouco do pensamento da esquerda, porque ele
representava mais esse setor. E, portanto, as governações eram mais
abrangentes, no fundo nessa competição, levada até um certo limite, não é cair
no exagero de fazer um congresso contra o governo que existe, como depois já
fez o Dr. Mário Soares no fim, já em apoteose final. Não estou a dizer isso,
mas o que eu digo é: eu sou a favor de uma maior intervenção presidencial,
sempre fui. E sempre tive uma leitura de que o nosso sistema é semipresidencial,
verdadeiro e próprio.
Por exemplo, grandes nomes de constitucionalistas
portugueses, estou a pensar, por exemplo, no Prof. Gomes Canotilho ou no Prof.
Vital Moreira, por exemplo, estão sempre a falar num parlamentarismo
racionalizado, num sistema misto parlamentar-presidencial mas mais parlamentar,
onde o Presidente é uma figura, digamos, de último recurso. Enfim, eu sou
favorável a uma maior intervenção e acho que é isso que os portugueses esperam
do Presidente da República. Dos últimos vinte anos, eu sou crítico, num certo
sentido, dos mandatos de Jorge Sampaio e de Cavaco Silva, e respeito muito os
dois, e acho que são duas reservas morais da Nação, e então no caso do Prof.
Cavaco Silva tenho até uma relação, não é pessoal mas é afetiva, porque faz
parte do nosso património, do nosso ADN e, o reconhecimento de uma coisa que ele tem, de facto, que é um
zelo enorme pelo interesse nacional, e nisso acho que é inexcedível, o seu zelo
pelo interesse nacional. Mas a forma como interpretam o mandato é de facto uma
forma muito singular querem-se proteger muito no início e acabam por se
desproteger muito ao fim.
E, portanto, isto eu acho que é um pouco como educar… o governo
precisa de um certo tratamento que é de vez em quando pôr-se os pontos nos "is”.
Claro, isso faz-se em privado mas às vezes também é preciso fazê-lo em público,
dar sinais públicos. Portanto, um candidato com um perfil mais interventivo,
para mim, seria uma coisa que eu veria com interesse.
Simão Ribeiro
Muito obrigado. Antes de dar a palavra à nossa próxima
interveniente quero apenas alertar que a partir deste momento podem-se
inscrever para o catch the eye. De
forma tranquila… Portanto, Rita Vitorino, Grupo Vermelho. Tem a palavra.
Rita Honório Vitorino
Ora, boa tarde. A equipa cinzenta apanhou-nos de
surpresa, nós íamos perguntar o que se podia fazer para o Presidente da
República se tornar mais ativo, mas, visto isto, gostávamos de saber se será
que o nosso sistema político é compatível com ideia de federalização europeia?
Obrigada.
Paulo Rangel
Olhe, eu vou-lhe dizer o seguinte: há várias coisas que
nós podemos fazer, porque eu aqui fiz uma análise do passado, mas, por exemplo,
se tivesse que haver uma revisão constitucional – e isto no fundo permite
responder à sua pergunta diretamente – eu acho que há coisas importantes que se
podiam fazer, no sentido de reforçar o papel do Presidente da República. Uma
matéria que eu acho que era muito importante, era na área da Justiça. Eu acho
que o Presidente da República deveria ter a presidência dos Conselhos
Superiores de Magistratura e dos Tribunais Administrativos e Fiscais, portanto
devia ter esse encargo. O Presidente devia poder nomear juízes para o Supremo,
uma quota, para os vários Supremos e para o Tribunal Constitucional. Portanto,
eu acho que a área da Justiça que é uma área na qual o Governo não pode
interferir é uma área na qual o Presidente podia ter uma atuação maior. Não é
por acaso que nós dizemos que o Presidente da República é o mais alto
Magistrado da Nação. A Constituição prevê algumas. Veja as competências que tem
o Presidente da República: nomear o Procurador-Geral da República, nomear o
Presidente do Tribunal da Contas ou, por exemplo, indultos. O Presidente da
República pode comutar penas. Portanto, já temos aqui um núcleo de matérias nas
quais ele pode intervir.
Outro aspeto que eu ponderaria – isso tem a ver com a
questão segunda que pôs – é a questão da Europa. Que papel deve ter o
Presidente da República na Europa? Poderíamos perguntar se o Presidente da
República não poderia ter um papel mais ativo na política externa. No modelo
francês, como sabe, o Ministro dos Negócios Estrageiros despacha diretamente
com o Presidente da República, assim como o Ministro da Defesa, portanto, a
área dos Negócios Estrageiros e da Defesa, embora esteja inserida no Governo, é
diretamente tratada pelo Presidente da República, eu acho que na questão
europeia talvez pudéssemos pensar num modelo em que o Presidente tivesse uma
intervenção maior, não apenas a Assembleia da República, mas o próprio
Presidente. Portanto, há áreas, há nichos…
No caso das Forças Armadas eu reforçaria o papel do
Presidente da República. A tendência tem sido para não reforçar, tem sido até
para diminuir, na nomeação das chefias militares, etc. Eu reforçaria a sua
intervenção, nas áreas críticas de soberania, e não tanto de policies mas mais de politics , ou seja, mais daquilo que são
as políticas estáveis, eu reforçaria os papéis do Presidente da República. Eu
acho que esse seria um caminho.
Agora, se o nosso modelo é compatível com uma
federalização? É totalmente compatível. O que uma Federação permite é
justamente isso – é que cada Estado tenha a sua organização política própria, e
depois há uma organização política própria da Federação. Isso é perfeitamente
possível. Os Estados Unidos chegaram a conviver com vários modelos diferentes.
Hoje isso não acontece.
No próprio caso alemão também acontece, cada Estado tem a
sua organização. Por exemplo, no caso dos Estados Unidos, há casos em que num
Estado o método eleitoral para os Senadores é um, e noutro Estado é outro. Isto
é perfeitamente possível; houve tempos em que era, hoje já não é assim, porque
eles tenderam a imitar-se. Aquilo que um grande teórico do federalismo e da
ciência política, que é o Lijphart, aquele holandês, chama o isomorfismo, quer
dizer, a tendência que os Estados federados têm para se irem copiando, à medida
que se vão integrando vão replicando uns as estruturas dos outros.
Mas na Europa nunca poderia ser assim. Basta pensar que
nós temos sistemas que são monárquicos e sistemas que são republicanos para
perceber que cada país teria de conservar um modelo diverso. E, portanto, penso
sinceramente que temos todas as condições para conviver com isso.
Teremos de reforçar os mecanismos de controlo do Parlamento
nacional, especialmente do Parlamento nacional face aos mandatos que os
ministros têm no Conselho. Nós já temos esse esquema mas continua a ser muito
formal. Não há um acompanhamento tão forte quanto existe noutros países, por
exemplo, estou a pensar nos países escandinavos, a Dinamarca e a Suécia, e hoje
a Alemanha também, no caso do Reino Unido a mesma coisa, onde o acompanhamento
que o Governo faz no Conselho, por exemplo do Conselho de Agricultura e Pescas
ou no Conselho de Justiça e Assuntos Internos, ou nas Cimeiras, o
acompanhamento pelo Parlamento nacional é muito mais próximo do que em
Portugal. Mas isso é mais uma questão de praxis do que até de mudar as leis.
Com isto termino: há um grande escritor romano, que é o
Tácito, que escreveu uma coisa sobre a Germânia, no fundo os germanos eram os
alemães, um livro que se chama "A Germânia”, em que ele descreve a Germânia. E
dizia assim: "e aí podiam mais os bons costumes do que as boas leis”. Quer
dizer, era mais importante entre os povos bárbaros germanos os bons costumes do
que as boas leis. Não é por haver boas leis que as coisas funcionam bem, é por
haver boas práticas. Se houver boas práticas não são precisas muitas leis. É a
lição dos anglo-saxónicos, e portanto, já o Tácito, nos alvores da nossa
civilização, em pleno Império Romano, descrevendo a vida dos germanos, dizia "e
aí podiam mais os bons costumes do que as boas leis”. E agora é catch the eye , não é…
Simão Ribeiro
Diogo Correia, Grupo Cinzento.
Paulo Rangel
Ai ainda é o grupo cinzento…
Diogo Correia
Bom dia Dr. Paulo Rangel. A questão agora realmente do
grupo cinzento é a seguinte: quais as principais ameaças à União Europeia
decorrentes dos atuais sistemas de governo dos seus Estados-membros? Obrigado.
Paulo Rangel
Essa é uma pergunta que eu tenho tratado muitas vezes nos
meus artigos do "Público” e que por acaso até vai parecer uma contradição com
as coisas que eu estava a dizer antes, mas eu acho que neste momento o
principal problema que tem, especialmente, para dizer a verdade, na gestão
daquilo a que se chamou impropriamente, a crise das dívidas soberanas.
O principal problema foi a intervenção dos Parlamentos
nacionais a meio do processo. Foi o principal problema. Eu vou explicar. A
negociação europeia é uma negociação internacional, ou supranacional; certo? Os
Ministros vão lá para uma mesa, os Ministros das Finanças do Ecofin. Estão lá,
pronto. Estão a representar o seu país. Quando se está a fazer uma negociação
tem que se ter um mandato para negociar. Agora, se um Ministro diz: olhe, eu
isso não sei se o meu Parlamento vai deixar, a gente tem de parar tudo e ir
perguntar a cada Parlamento. Se há cinco ou seis Parlamentos isto é uma coisa
realizável, se há 28 isto é impossível. Chegou a acontecer, veja bem, no início
da crise, penso que estamos a falar em outubro de 2011, uma Cimeira, portanto
não era um Ecofin, era uma Cimeira de Chefes de Estado e Chefes de Governo, que
começou numa segunda-feira ou numa terça, já não me lembro bem, penso que foi
numa terça, e depois a Sra. Merkel interrompeu para haver uma votação no
Parlamento alemão, para se recuperar depois na quinta-feira outra vez, para ela
vir com um mandato do Parlamento alemã. Ora isto não pode ser.
O que eu tenho dito sempre é o que é clássico na
separação de poderes. Se for ler o John Locke, se for ler o Montesquieu, se for
ler todos os grandes autores da separação de poderes, todos dizem: a condução
das relações internacionais cabe aos governos. Aquilo a que o John Locke no seu
célebre livro de 1689, "Segundo Tratado do Governo”, chamava o poder
federativo, que é o poder de conduzir as relações internacionais. Não tem nada
a ver com federações, é o "federaty power”. E ele dizia que isso cabe ao
governo.
E depois o quê que acontece? O governo toma uma decisão e
depois o Parlamento ou aceita ou não aceita. É o que acontece com os Tratados.
O Governo português negoceia um Tratado, o Parlamento não anda lá a negociar o
Tratado, não vão os deputados negociar o Tratado. É o Ministro dos Negócios
Estrangeiros, imaginemos que estamos a falar de questões comerciais, será com
certeza o Ministro da Economia, ou até o Ministro da Agricultura, (podem ser
produtos agrícolas,) etc., estão lá, estão a negociar na mesa das negociações e
trazem um pacote. E depois o que diz o Parlamento é sim ou não. Porque senão
não há negociações possíveis. Porque repare, se cada vez que eu tenho de tomar
uma decisão eu tenho que ir consultar o Parlamento dinamarquês, eu tenho que ir
consultar o Parlamento sueco, que é o que os Parlamentos nacionais querem, isto
torna-se impossível. Porquê? Porque na gestão da crise das dívidas soberanas,
como isto não era negociado pela União Europeia, mas era pelos Estados, depois
tinha que haver uma decisão Estado a Estado. Ainda agora, para o terceiro
pacote de resgate à Grécia houve votação no Parlamento finlandês, no Parlamento
eslovaco, no Parlamento alemão, no Parlamento… quer dizer, o quê que aqui
deveria ser? Era uma negociação da União Europeia e uma votação no Parlamento
Europeu. Pronto, isto é que devia ser…
Mas como não existe um sistema europeu e vai ser o
dinheiro dos Estados que vai entrar, os Parlamentos reclamam eles próprios
intervir. Ora, isto cria o tal problema de nós estarmos num sistema que nem é
carne nem é peixe. Nem é uma Federação nem deixa de ser. É aquilo a que o
Jacques Delors há muito anos chamou um OPNI – um objeto político não
identificado. É o que é a União Europeia. E de facto isso é um impasse.
Por isso é que eu sou um federalista e represento aqui um
avanço. Eu acho que os Parlamentos nacionais devem ter poderes de controlo
forte, mas os seus poderes de controlo não devem interferir no meio das
negociações – ou são antes ou são depois, e o que tem acontecido é que eles
estão no meio das negociações. Há aqui uma outra questão para a qual eu gostava
de chamar a atenção, embora isto, enfim, diminua o catch the eye , mas é um processo que ninguém tem falado e que eu
queria que observassem com muita atenção.
Está a dar-se um fenómeno nos Parlamentos nacionais, que
é um fenómeno novo por ser disseminado. Em Inglaterra, o Sr. Cameron, que tem
uma maioria, está refém de 100 deputados que dizem que são anti Europa. Na
França, o Sr. Holland com o Sr. Vals, que tinha uma maioria absoluta, está
refém de 50 deputados que dizem que não querem austeridade nem reformas na
Administração Pública francesa. Na Alemanha, a Sra. Merkel, que é a
todo-poderosa carismática, está refém de 63 deputados que dizem que não querem
ajudas à Grécia.
O quê que nós estamos a assistir? Nós estamos a assistir
neste momento a que os deputados nos seus Parlamentos estão a criar
dissidências dentro das maiorias. Começaram a perceber que se for um, não tem
hipótese nenhuma, é posto de lado e tal… Mas se forem 50, 60, 100, começam a
pesar. E isto é uma coisa nova, porque isto sempre aconteceu, até aconteceu com
o PSD, que em 77 ou em 78 dividiu o Grupo Parlamentar em dois, em que os que
saíram eram mais do que os que ficaram, e isso é que permitiu a sobrevivência
do Governo de Mota Pinto durante algum tempo. Mas enfim, a célebre ASDI, na altura
de Sousa Franco, Magalhães Mota, enfim, Jorge Miranda e outros… mas haver
dissidências sempre houve. Agora estão a acontecer todas ao mesmo tempo.
Eu vou-lhe dizer o seguinte: eu tenho uma interpretação
para isto, e que curiosamente não é negativa, é que eu acho que os Parlamentos
começam a dividir-se mais, não tanto entre as esquerdas e as direitas, mas
entre aqueles que são mais pró integração ou menos pró integração. E isso está
a dividir os partidos, os próprios partidos das maiorias ou das minorias. Isto
significa que o sentimento de federalização está mais avançado do que nós
pensamos. Porque as divisões que se dão no Parlamento francês, no Parlamento
inglês e no Parlamento alemão, dentro dos partidos maioritários, são todos a
propósito de questões europeias. Num caso é a propósito da permanência na União
Europeia, noutro caso é a propósito da questão do Euro e noutro caso é a
propósito da questão dos resgates. E, portanto, a política europeia está a
mudar o panorama, se quiserem o espectro político dos Parlamentos nacionais.
Está a haver aqui uma contaminação. E isto é sinal de que nós temos mais Europa
do que pensamos.
Eu, aliás, digo sempre isto, queria deixar-lhes isto
muito claro. Em Portugal havia 3 ou 4 países que tinham influência na nossa vida
política. Um que teve sempre, desde 1386, que era a Inglaterra. Outro que, por
antinomia, teve sempre, era Castela e depois a Espanha, etc. A França também
uma grande influência teve… nós tínhamos uma ponte para a França e uma para a
Inglaterra que era para não sermos dominados pela Espanha. E depois falava-se
às vezes um bocado da Alemanha e da Itália, mas pouco. Mas hoje, se formos às
eleições de 2011, tinha consequências no debate português as eleições
finlandesas; vão ter consequências no debate português as eleições gregas de 20
de setembro; vão ter consequências no debate português as eleições catalãs de
27 de setembro. Eu digo uma coisa: que os resultados em Inglaterra, que os
resultados em França, que os resultados em Espanha tenham alguma repercussão em
Portugal, eu percebo. Que os resultados na Finlândia, na Grécia ou na
Eslováquia possam ter, isso é qualquer coisa de novo.
Isso é um sinal de quê? De
que nós estamos muito mais integrados do que pensamos. Estamos muito mais
integrados. Nós não temos é estruturas institucionais que reflitam esse grau de
integração. Enfim, com isto abordei três temas que mostram a complexidade que
está por trás da sua pergunta. Um é: os Parlamentos nacionais não devem
interferir em questões que são estritamente europeias; outra é: a Europa está a
dividir os Parlamentos nacionais; e a terceira é: afinal as realidades
nacionais de países que não tinham connosco nenhuma relação já mexem, já
interferem com os nossos processos de decisão internos.
Simão Ribeiro
Muito obrigado. Fernanda Catarino, Grupo Bege.
Fernanda Catarino
Muito bom dia. Na sua opinião, em que medida deve ocorrer
eleição para um Governo português, sabendo que existem muitas áreas
legislativas que, por força do Direito Europeu, já foram esvaziadas. Isto é,
será que o Governo deve ser composto pelo mesmo tipo de ministérios que são os
tradicionais ou será que alguns ministérios podem ser conjugados num Ministério
para as Relações Europeias? Muito obrigada.
Paulo Rangel
Ora bem, vamos cá ver, eu queria dizer o seguinte sobre
isso. Primeiro ponto: a primeira coisa – já escrevi sobre isso também há muito
tempo, estou farto de dizer isso, mas é pregar no deserto – que é isto: devia
haver um acordo entre PSD e o Partido Socialista para manter os mesmos
ministérios durante dez anos ou quinze, e não haver leis orgânicas para novos
ministérios.
É a coisa mais simples de se fazer. É dizer: há este
Ministério, há aquele, há aquele, há aquele, e durante dez anos nós não
mexemos. Depois deixar espaço para dois Ministros de Estado ou sem pasta, para
justamente cada partido adaptar a uma prioridade que tenha. Há um partido que
acha muito importante, por exemplo, a questão da natalidade ou da igualdade de
género, ou de não sei quê, e ter uma pasta para isso, muito bem, ou da inovação
tecnológica. Deixar ali um nicho, deixar uma margem de flexibilidade, mas os
ministérios serem os mesmos. Porque em Portugal é uma coisa absolutamente
inacreditável, estão sempre a mudar os ministérios. Eu aliás, para verem como
falo com liberdade, e aliás, disse-o ao Primeiro-Ministro antes das eleições,
depois das eleições, antes da formação do Governo, depois da formação do
Governo. Achei um erro aquela coisa das dez pastas, ou das onze pastas, etc.
A nossa estratégia devia ser a seguinte: queremos que
hajam apenas dez ministérios, muito bem. Então fazemos um Governo com catorze
ou com quinze cuja tarefa é fazer a reforma para que possamos ter os tais dez
que vão durar quinze ou vinte anos. Mas nós temos que reformar primeiro a
Administração. Isto é uma linha geral que não tem nada a ver com a Europa.
Mesmo que nós vivêssemos fora da Europa acho que era assim que nós devíamos
viver. Era com um acordo de regime quanto aos departamentos de Estado que
entendemos que devem existir. São estes! E não vamos mexer, nem vamos mexer nos
nomes. Para que havemos de chamar "Ordenamento do Território”, pronto, é o
Ministério do Planeamento é do Planeamento, depois está lá o Ordenamento do
Território e está o Ambiente e está lá não sei quê, etc., etc..
Segunda coisa: eu não acho indispensável, se quer que lhe
diga, não acho, que haja um Ministério dos Assuntos Europeus. O que eu acho que
é indispensável é que haja uma política europeia, e eu acho que hoje o Ministro
dos Negócios Estrangeiros pode perfeitamente fazer esse papel. Há aqui uma
interpretação um bocadinho nova que é a ideia de que existe uma diplomacia
económica. Nem é nova, toda a vida houve, muitos países tinham, os chamados
Ministros do Comércio Externo. Por exemplo, o Vice-Primeiro Ministro Paulo
Portas tinha muito essa interpretação quando era Ministro dos Negócios
Estrageiros de que, no fundo, devia fazer diplomacia económica.
Meus amigos, vou dizer uma coisa que vai chocar toda a
gente: não há diplomacia económica, só há diplomacia, porque toda a diplomacia
é económica, é política, é financeira, é cultural, é tudo. A economia é um
instrumento, quer dizer, não há uma diplomacia só económica. Agora, a
diplomacia não pode abstrair da economia, evidentemente. Mas não há uma
diplomacia só económica. A razão pela qual nós estabelecíamos relações com
outros Estados, muitas vezes, era por razões comerciais, económicas, etc.,
portanto isto não é uma coisa nova. Por isso, eu não gosto nada da expressão
diplomacia económica, é diplomacia, ponto final, isto é, abrange todos os
capítulos. Claro, os económicos são muito importantes, também lá estão, mas não
são os únicos. Há os culturais, há os políticos, há os de defesa, há os de
segurança, etc., etc., etc. O Dr. António Costa, com aquela ética dos casos e
casinhos, tirou da cartola o Ministério dos Assuntos Europeus, mas já está a
ver o que isto ia dar – íamos ter o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o
Ministério dos Assuntos Europeus. O Ministro dos Negócios Estrangeiros depois
ia fazer o quê? Visitar o Zimbabué? É uma hipótese... [RISOS E APLAUSOS]
Quer dizer, íamos criar aqui um conflito de competências.
O que é fundamental é que haja uma política europeia e hoje a política europeia
assenta em três ministros, fundamentalmente. Primeiro-ministro, em primeiro
lugar, porque ele é que está nas cimeiras. Depois, Ministro dos Negócios
Estrageiros, ao contrário do que muita gente, até na nossa coligação, defende.
E terceiro, Ministro das Finanças no Ecofin.
São estes os três pilares e são estas três pessoas que
têm de fazer este recorte de política europeia. E é isto que nós temos que
pensar e tem que ter estes três lados. Todas as políticas estão contaminadas
pela Europa, disse, e muito bem. Mas isso muda as nossas competências
relativas? Não. Estão confusas. Por isso eu defendi aqui: com uma Federação as
coisas eram mais fáceis. O que é da Federação é da Federação, o que é dos
Estados nacionais, é dos Estados nacionais. É do Grupo Bege, mas se fosse do Grupo
Cinzento eu diria que estamos com uma zona cinzenta muito grande. Mas o bege
também é uma cor que dá ideia de alastramento, também não é assim de grande
clareza.
Portanto, eu diria que estamos aqui, de facto, entre a
União Europeia e os Estados nacionais, estamos entre tons de bege e de
cinzento, e precisávamos de uma coisa um pouco mais, diria eu, preta e branca.
Ou se quiserem vermelha e verde, para usar as cores nacionais. Nunca, mas
nunca, ao contrário do que aqui ouço sempre, encarnado, porque isso não existe.
Encarnado não é cor. [APLAUSOS]
Eu ainda não disse isto ao Carlos Coelho, mas vou-lhe
dizer quando terminar esta sessão, vou-lhe dizer: se para o ano eu for
convidado para qualquer coisa e houver um grupo designado encarnado, eu vou
pedir interpretação simultânea durante os trabalhos, porque eu não sei o que
isso é. Lá na minha terra isso não se usa, não faz parte da nossa coisa… [APLAUSOS]
Simão Ribeiro
Muito obrigado. Para o catch the eye há aqui um conjunto alargado de inscrições, portanto,
também peço que façam perguntas. Para começar pelo Grupo Verde, Nuno Dias, e
depois o Zé Ribeiro do Grupo Azul. Nuno…
Nuno Pinto Dias
Bom dia, Dr. Paulo Rangel. É um enorme privilégio estar a
assistir a esta sua aula sobre sistemas de governo. Analisando a Constituição
dos Estados Unidos, verificamos que tem cerca de 4.400 palavras, ao contrário
da portuguesa que tem mais de 32.000, ou seja, mais de sete vezes do que a
americana. Portugal e a Europa não ligam o complicómetro quando produzem textos legais fundamentais, retirando adaptabilidade com os
valores e culturas vigentes? ou, face à multiculturalidade europeia, é
inevitável ter esta minúcia legal como garantia de idêntica interpretação por
parte de todos os seus Estados-Membros? Muito obrigado. [APLAUSOS]
Paulo Rangel
Ora vamos cá ver…
Nuno Matias
Temos uma segunda pergunta…
Paulo Rangel
Segunda, está bem. É dois em um, é champô e
acondicionador. [RISOS]
José Manuel Ribeiro
Muito bom dia, Paulo Rangel. Espero que lhe perguntem
qual a relação…
Paulo Rangel
Finalmente alguém sabe dirigir-me a palavra. É Paulo
Rangel, não é professor, não é doutor, não é não sei quê, não sei que mais. Que
é outra coisa em que o português é terrível. Deixe-me só dizer isto. Eu acho
que se devia propor… é uma proposta radical que faço aqui, mas no nosso
programa eleitoral devia-se propor a abolição, pelo menos, do uso público dos
títulos académicos, porque são um fator de diferenciação dos cidadãos e
corresponde a uma sobrevivência da aristocracia retrógrada. Vamos ver se a JSD
apresenta, pelo menos, nos concursos públicos e tal, desaparecer esse
tratamento, é o Senhor tal, ou pelo próprio nome.
José Manuel Ribeiro
Continuando, espero que… [RISOS]
Paulo Rangel
Devagar, devagar…
José Manuel Ribeiro
Espero que lhe perguntem a relação entre James e Tiago,
porque não é essa a minha questão ainda. No seu livro "Jesus e a Política” cita
"Em verdade, em verdade se diga”. Aconselha o líder do Partido Socialista a ler
o seu livro? Obrigado. [RISOS E APLAUSOS]
Simão Ribeiro
Tem a palavra, Sr. Paulo Rangel. [RISOS]
Paulo Rangel
Ora bem, eu agora estou com um problema, é que com esta
segunda pergunta esqueci-me da primeira. Já sei, é os textos, a extensão dos
textos.
É preciso olhar em primeiro lugar para os contextos
históricos; depois também não é bem verdade que aquilo seja assim tão curto,
porque aquilo já teve vinte e nove emendas, certo? Portanto, está um bocadinho
mais longo. Depois é preciso perceber que o sistema é um sistema dito
anglo-saxónico, ou seja, é um sistema de precedente. Portanto, para
verdadeiramente compreender a Constituição americana tem que ler a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em que tem, não é centenas de
milhares, é milhões e milhões de palavras produzidas ao longo de duzentos anos,
certo? Para defender um caso junto do Supremo Tribunal Federal não é assim uma
coisa tão simples. Ora, não há dúvida que é uma Constituição extremamente
flexível e que a nossa, a portuguesa em particular, é extremamente rígida, é
extremamente pesada. Mas como eu lhe disse, isto vai mais da atitude que nós
temos relativamente aos textos do que propriamente da sua extensão.
Para mim, a Constituição não é apenas o que está escrito,
são também os valores que a dominam e a realidade em que ela se aplica. Isso
não é uma questão assim tão importante. Mas há aqui questões de tradição,
pronto, há tradições. E também eu acho se nós temos a tradição de ter uma
Constituição política com determinado pormenor, não devemos ir contra a nossa
tradição. Pronto, é a nossa, vem de 1820, que era bastante mais simples, apesar
de tudo, do que esta.
E esta também foi uma Constituição de muitos compromissos,
é preciso ver isso, compromissos com militares. A Constituição inicialmente não
era democrática, tinha um Conselho da Revolução, foi baseada num pacto com
militares. Tudo isto foi assim um processo muito tortuoso, sobre o qual eu não
falei aqui, e portanto eu basicamente diria que, para mim, o problema está na
atitude de quem interpreta e aplica a Constituição, e não está tanto no seu
texto. E é isso que os Estados Unidos demonstram, é que o texto da Constituição
dos Estados Unidos também podia ser um impasse, mas não foi impasse pela
atitude que, quer o Supremo Tribunal, quer o Congresso, quer o próprio
Presidente foram tendo ao longo do tempo. E quando o Supremo Tribunal Federal
foi extremamente conservador, nos anos 30, quando se deu a grande depressão, o
Presidente Roosevelt ameaçou alterar a Constituição e nomear, em vez de ter 9
juízes passar a ter 16, para ficar com uma maioria que permitisse alterar a
jurisprudência do Tribunal.
Isto só para dizer que também houve um momento em que o
Supremo Tribunal Federal também foi muito conservador, estava muito agarrado a
uma visão muito literal do direito de propriedade em particular. Era a questão
do Well Fare State , no fundo, o New Deal , a política de intervenção e de
financiamento para combater a Grande Crise. Para dizer, enfim… não olhemos com
tanto simplismo, eu volto àquele exemplo da Guerra Civil; as pessoas dizem: que
difícil construir a União Europeia quando nos Estados Unidos aquilo foi uma
maravilha. Os Estados Unidos, repito, são uma Federação resultante da imposição
dos Estados do Norte ao Estados do Sul. Por boas razões, mas tiveram de ter uma
guerra para terem uma Federação.
Quanto a saber se eu aconselho, eu não vou aconselhar
ninguém a ler um livro meu, certo? Ficar-me-ia mal. Portanto não vou fazer
isso. Agora, eu acho que, como disse aqui, naquela fase mais política da minha
intervenção inicial, o Dr. António Costa, ou o Sr. António Costa, para voltar
aquela proposta, António Costa precisa realmente de uma coisa… não é tanto a
relação com a verdade, é a relação com a omissão.
O problema de António Costa não é ele dizer mentiras, é
ele omitir. Ou seja, ele ainda não fez o mea
culpa sobre a bancarrota a que o PS conduziu o país; ele ainda não fez a
denúncia dos comportamentos errados que aparentemente certos líderes do PS
tiveram; ele ainda ontem brincava com a questão essencial que foi no fundo a
limpeza, o saneamento do sistema financeiro português. Sobre isso ele não diz
uma palavra, está calado. E é essa omissão, essa incapacidade de reconhecimento
dos erros próprios, que contrasta connosco. Por exemplo, ontem, numa questão de
pormenor, o primeiro-ministro Passos Coelho disse: realmente nós falhámos numa
coisa, no Estatuto da GNR falhámos. Não fomos capazes de, perante problemas muito
complexos, chegar ao fim da legislatura com uma solução. Reconheço que
falhámos, lamento mas falhámos, não conseguimos fazer isto. Ele não teve nenhum
problema em fazer este reconhecimento. E António Costa em questões muito mais
sérias, como o comportamento do PS entre 2005 e 2011, como a questão do Banco
Espírito Santo, como a questão que tem a ver com os casos de Justiça, em que
está envolvida alguma governação do Partido Socialista, ele omite, não fala
sobre isso.
Não era preciso estar a
falar todos os dias, era ter feito logo de início um discurso no qual fazia o
reconhecimento dessas matérias e arrumava o assunto. Mas ele não é capaz de
lidar com isso. Portanto, eu digo assim: o problema dele não é um problema da
relação com a verdade; é um problema da relação com a omissão. É um líder
omisso, quanto a questões que são questões essenciais para a vida nacional.
Simão Ribeiro
Hugo Alves, Grupo Bege, seguido do Ricardo Carvalho do Grupo
Roxo.
Hugo Alves
Paulo Rangel, bom dia. [RISOS] Referiu há pouco que
acordar e pensar no António Costa poderia, ente aspas, isto é a minha
interpretação, provocar dores de cabeça. Não sendo a aspirina farmacêutica o
medicamento indicado no tratamento de um tal sintoma, eu gostaria de lhe
perguntar qual a receita medicamentosa ou terapêutica que recomendaria a todos
os que padecem ou que partilham do mesmo problema que o seu.
Paulo Rangel
Eu diria o seguinte, a receita é muito simples… ah,
segunda, eu peço desculpa. Habituei-me… mudam as regras a meio do jogo e depois
dá nisto. [RISOS]
Ricardo Moreira de Carvalho
Bom dia, Sr. Paulo Rangel. No Parlamento nacional as
Comissões de Inquérito têm tido uma grande visibilidade, recentemente. Por
exemplo, a Comissão do caso BES foi muito elogiada pelas conclusões a que
chegou. Eu gostaria de lhe perguntar o quê que é necessário para que uma
Comissão Parlamentar de Inquérito seja verdadeiramente útil? E já agora, porquê
que James deve ser traduzido por Tiago? Muito obrigado.
Paulo Rangel
Muito bem. A primeira coisa é assim: a receita é muito
simples, é dia 4 de outubro votar na Coligação. E está dito.
[APLAUSOS]
Eu quero tanto explicar aquela coisa do James e Tiago que
até me esqueci da sua primeira pergunta. Ah, Comissões de Inquérito…
Vamos cá ver, eu acho que nós, mesmo assim, padecemos em
Portugal, padecemos… nisso, por exemplo, não estou muito de acordo com o Luís
Montenegro, ontem. Eu sou a favor de maior liberdade para os deputados do que
aquela que o PSD dá aos seus deputados. Sempre fui, e como líder parlamentar
fui assim e no Parlamento Europeu sou assim. Sinceramente… claro, não é votar
no Orçamento, etc., etc., mas eu acho que os deputados precisam de maior espaço
de intervenção própria. É isso que fortalece a democracia, é isso que fortalece
a diversidade, e isso é positivo. Claro que não estou a falar nas questões de
votação do Orçamento, de moções de censura, etc.
Há matérias que são matérias de disciplina de voto claras
e evidentes, mas tirando essas eu acho que deveria haver um bocadinho mais de
espaço. Sem dúvida, ele disse uma coisa que é verdade, há mais espaço no nosso
do que nos outros. Então o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, que estão
sempre a falar nisso, votam sempre todos igual. Lá pensa toda a gente da mesma
maneira. É uma felicidade que eles têm… Mas eu sou a favor de maior espaço de
liberdade. E nas Comissões de Inquérito, assim.
E de facto nós temos tido Comissões de Inquérito
importantes, uma foi a do BPN, outra foi a do caso BES, outras foram as de
Camarate, que foram importantes. Mas elas ainda não têm o prestígio que têm,
por exemplo, num Parlamento britânico ou no Parlamento dinamarquês, em que uma
comissão de inquérito impõe-se mesmo, e os deputados da própria maioria, muitas
vezes, chegam a conclusões contra decisões que os seus governos tomaram. Ou
deputados que estão a inquirir coisas de quando o seu partido era governo,
agora estão na oposição, e têm essa distância crítica para fazer isso. Nós
ainda não estamos nesse nível. Nestas três Comissões eu penso que nós atingimos
esse nível, mas ainda não estamos. Sinceramente, aí eu acho que nós devíamos
reforçar, blindar o Estatuto de Deputado, dar-lhe maior liberdade no quadro das
Comissões de Inquérito em particular. Seria uma coisa extraordinária para o
Parlamento. Portanto eu tenho aqui uma visão um pouco mais liberal, um pouco
mais anárquica, se quiserem, um pouco mais individualista, um pouco menos
partidocrática, daquilo que é um Grupo Parlamentar e daquilo que é a função de
um deputado. Esta é a minha visão e foi sempre… e fui muito criticado,
diziam-me "este homem não tem espírito de liderança e não promove reuniões para
fazer coisas…” – pois não, porque eu acredito que as pessoas têm cabeça e
iniciativa para se gerirem a si próprias dentro de um quadro geral. Não vou
estar agora a impor a todos…
Indo para a tal questão, eu vou tentar ser muito
sintético. É que muita gente, a propósito da Revolução Inglesa, fala no Jaime I
e depois no Jaime II. E Saint James é São Tiago, como todos sabem… Porquê?
Porque isto, explicando assim de uma forma muito simples, era: quem era Tiago?
Era Iacob, que era um discípulo de Jesus, do tal "Em verdade, em verdade se
diga”. Iacob – que é um nome tipicamente judaico. Abraão gerou Isaac, Isaac
gerou Iacob. Ou "Jacobe”, como dizem alguns. O que acontece é que supostamente
este senhor veio até à Península Ibérica e morreu na Península Ibérica – o que
é altamente duvidoso, enfim – ali em Compostela. E este Iacob veio para as
línguas peninsulares com o nome de Iago, que é um nome muito comum nas
comunidades ciganas, é um nome muito comum numa peça de Shakespeare, o Mercador
de Veneza, onde aparece o Iago, é uma das grandes personagens – o Iago. E como
sabem, em português, quando no masculino o nome dos santos começa por vogal,
diz-se Santo, se começa por consoante, diz-se São. Eu digo Santo António, São
Luís. Santo Ivo, São Jerónimo. Portanto, como Iago começava por "i”, porque o
"j” se converteu em "i”, porque "i” e "j” – têm os dois pintinha – em latim era
a mesma coisa, ficou Santo Iago. Como era bastante difícil dizer Santo Iago,
era preciso parar no meio, pôs-se um apóstrofo e ficou San’tiago. Como era
San’tiago, especialmente para aquelas pessoas da Galiza e do Norte o San tem
tendência a ser Son, passou a ser São Tiago e o "t” do santo passou para o
nome. Passou a ser Tiago. As pessoas passaram a julgar que era São ponto Tiago,
começava por consoante. Portanto, era santo duas vezes, porque já tem o "t” no
nome e ainda tem o "são” por trás – São Tiago. Por isso é que é Saint James.
Agora, podem-me perguntar porque que o " C ” de Iacob passou a "g”? Porque do
latim para o português há um fenómeno muito comum que é o fenómeno da passagem
dos "ques” e dos "tês” para "guês” e para "dês”. E os "quês” passam geralmente
a "guês”, com o tempo.
O "c” passou a "g”, portanto de Iacob passou a ser Iagob
ou Iago. Curiosamente o mesmo nome é Diogo, Diogo e Tiago, ou Diego, é a mesma
coisa, o "tê” passou a "dê”. Se eu por acaso – eu não, mas os senhores -, numa
noite mais animada, estão em casa de uma tia, que até queria que chegassem
muito cedo e querem dizer aos seus amigos "a minha tia está tonta”, não dizem
"a minha tia está tonta”, dizem "a minha dia esdá donda”. Os "tês” passam a
"dês”. Ora o quê que acontece? A língua vai-se embebedando com o tempo. É
basicamente esta a situação [APLAUSOS]. Vai-se indo dos sons mais difíceis para
os sons mais fáceis, é um processo de preguiça linguística. Portanto, os "quês”
passam a "guês” e os "tês” passam a "dês”. Por isso, quando os senhores vêm uma
cidade que se chama San Diego e uma que se chama Saint James e outra que se
chama Saint Jacques e outra que se chama Santiago e outra que se chama San
Diego ou São Diogo, é tudo a mesma coisa. Se alguém tiver a infelicidade de os
pais, numa grande inspiração, lhes terem posto o nome de Jaime Tiago ou de
Tiago Diogo, pois é a mesma coisa que ser Diogo Diogo ou Tiago Tiago. É uma
originalidade tão grande como essa. [RISOS]
Por isso, a tradução correta de James é Tiago. Por uma
razão adicional. Porque o Tiago I – é o único rei inglês que era um intelectual
- escreveu imensas obras de política e foi altamente contestado por três
grandes homens da Península Ibérica, do tempo dos Filipes, três grandes
filósofos, mas especialmente dois, o Francisco de Vitória e o Francisco de Suárez,
que contestaram a sua teoria absoluta, a teoria do direito divino dos reis. E
tanto o Francisco de Vitória como o Francisco de Suárez, nos seus escritos, se
referiam ao rei de Inglaterra, que era quem eles estavam a contestar, como
Tiago I. A chamada Escolástica ou Neoescolástica de Coimbra-Salamanca
universalizou a tradução de Tiago I para se referir a James .
Está explicado porque de Jacob nós viemos dar a Tiago e
porque que James ou Jacques, em francês, são o mesmo nome, que em português
devia ser corretamente traduzido por Tiago, ou quando muito por Diogo. Enfim,
agora parece que também há alguns Diegos, mesmo em português, também pode ser
isso…
Dep.Carlos Coelho
Muito bem. E chegamos ao fim dos nossos trabalhos da
manhã. Agradeço, em vosso nome e em nosso nome, ao Dr. Paulo Rangel a aula
brilhante que nos deu. Eu vou acompanhar o nosso convidado à saída e pedia ao Pedro
Esteves e ao Nuno Matias para prosseguirem os nossos trabalhos daqui. Muito
obrigado.