ACTAS  
 
29/08/2015
O sistema português no quadro dos sistemas de governo
 
Dep.Carlos Coelho

Muito bom dia. Vamos dar início à nossa última aula da Universidade de Verão, faz parte do currículo obrigatório termos uma aula de Ciência Política e o tema de hoje é o sistema português no quadro dos sistemas de governo. O nosso convidado especial é o Dr. Paulo Rangel que já tem colaborado noutras iniciativas da Universidade de Verão, participando em diversos debates e programas e que para além de nos emprestar a sua inteligência também nos dá o seu apoio, uma vez que o grupo europeu dos deputados do PSD, de que ele é o coordenador, é um dos patrocinadores desta Universidade de Verão. O Dr. Paulo Rangel foi um brilhante líder parlamentar do PSD na Assembleia da República e, pela segunda vez consecutiva, é o líder da bancada do PSD no Parlamento do Europeu e Vice-Presidente do Grupo Parlamentar do PPE, que é o maior grupo parlamentar no Parlamento Europeu. O nosso convidado de hoje tem como hobby ler, tem como comida preferida o arroz de frango, tem como animal preferido o cão, o livro que nos sugere é "As Memórias de Adriano” de Marguerite Yourcenar, o filme que sugere é "Trainspotting” e a qualidade pessoal que mais aprecia é a frontalidade, qualidade de que ele, aliás, dá provas no exercício da atividade política. E, sem mais delongas, convido o Dr. Paulo Rangel a usar da palavra na última aula da Universidade de Verão de 2015.

[APLAUSOS]

 
Paulo Rangel

Em primeiro lugar eu queria, naturalmente, saudar todos os presentes, depois agradecer o convite que me foi feito para, com todos vós, refletir um pouco sobre sistemas de governo e, de alguma maneira, focar isso, embora penso que nós podemos fazê-lo, até com vantagem, na altura das perguntas, sobre o sistema de governo português, porque o conhecem apesar de tudo melhor e daí podemos tirar casos e experiências. Mas queria obviamente saudar a mesa. Saudar o Carlos Coelho com quem trabalho, enfim, não vou dizer diariamente, mas semanalmente e que é, sem dúvida, eu ia dizer a alma mater , mas talvez seja melhor dizer a alma pater , da Universidade de Verão. Cumprimentar também o Simão Ribeiro, Presidente da JSD, cumprimentar o Nuno Matias que está presente e, ter uma palavra muito especial para o Duarte Marques e para o Pedro Esteves que são as duas pessoas com quem eu trabalhei e trabalho no Parlamento Europeu diretamente e que fazem muito a ligação ao partido e, em particular, à JSD também, porque eles próprios também têm o seu ADN marcado na JSD e, já agora, nas Universidades de Verão. Feita esta introdução, que não exclui outras pessoas que aqui estão e que eu conheço muito bem.

Quero começar por fazer um intervalo, eu diria de 20-25 minutos, (depois viremos para a atualidade), um intervalo, um parêntesis, sobre a atualidade política, sobre o mundo em que nós vivemos hoje. Porque aquilo que eu queria que cada um, cada uma de vós, percebesse, é que para nós chegarmos às democracias que temos hoje, a um sistema presidencial como têm os Estados Unidos, a um sistema parlamentar como tem, por exemplo, o Reino Unido, ou a um sistema semipresidencial como tem a França e que inspirou largamente o sistema português, são precisos séculos e séculos e séculos de História da civilização ocidental. E é muito importante ir a essas raízes, também por razões atuais, porque aquilo a que estamos a assistir neste momento é que esses valores ocidentais, esses valores da civilização ocidental, estão postos em causa, e portanto nós temos que ir às raízes. E a primeira coisa que eu lhes queria dizer é o seguinte: estamos em 2015 e cumpriram-se agora, em junho ou julho, 800 anos sobre a aprovação de um documento fundamental para as democracias do Ocidente - foi a Magna Carta de 1215.

Aliás, este ano de 2015 comemoram-se duas coisas muito importantes: uma muito importante para a democracia em geral, a Magna Carta, que é uma carta de liberdades dos senhores feudais, dos barões, dos aristocratas, se quisermos assim, contra o rei, em Inglaterra. O rei João Sem Terra que é o príncipe João, do Robin Hood, portanto, não sei se conhecem a história do Robim dos Bosques, mas há o príncipe João que depois de ser príncipe veio a ser rei e ele é que é o homem que assina a Magna Carta, em 1215. E há uma segunda data muito importante para nós, que se cumpriu aliás esta semana, que é a tomada de Ceuta, 600 anos da tomada de Ceuta, que é o início da Expansão portuguesa e portanto da afirmação de Portugal como um país, uma identidade, um Estado, até, diria eu. Mas porquê é importante perceber isto? É que na Idade Média,( que a maioria das pessoas que aqui está julga que é a Idade das trevas, das bruxas e das fogueiras, e que são mil anos de regressão histórica, e que são mil anos horríveis em que as pessoas… só havia coisas terríveis toda a gente vivia muito mal), na Idade Média, nenhum rei tomava decisões fundamentais sem ouvir o Parlamento. No caso da Península Ibérica chamavam-se as Cortes, no caso da França chamavam-se os Estados Gerais, no caso da Inglaterra chamava-se o Parlamento, porque era o sítio onde se "parla”, isto é, onde se fala. E onde estavam representadas todas as classes sociais. Por isso é que havia uma Câmara dos Comuns e uma Câmara dos Lordes. Toda a gente… no caso português, nas Cortes, estava gente de todos os concelhos. Cada concelho que tinha um foral tinha dois Homens Bons, quer dizer, dois notáveis da terra, escolhidos pela terra para os representar. E que decisões é que o rei tinha de submeter a essas Cortes ou esses Parlamentos? Duas. E vão já ver como afinal as coisas não mudaram assim tanto. Aumentos de impostos ou definição das penas. Ou seja, tudo o que fosse matéria fiscal tinha de ser decidido pelas Cortes. O rei não podia aumentar impostos, isto é, não podia sobrecarregar os cidadãos sem o consentimento dos representantes dos cidadãos. E o rei não podia definir novas penas, novos crimes, isto é: pena de morte, que era bastante comum, penas de castigos físicos, que eram comuns na altura, multas, prisões e outro tipo de penas. Por exemplo, proibições de exercer uma profissão, etc., sem isso ser aprovado pelas Cortes, pelo Parlamento, pelos Estados Gerais, (nos países de Leste, na Alemanha, chamavam-se Dietas a estas instituições).

Portanto, a Idade Média, sob este ponto de vista, era uma idade de uma certa liberdade, não havia um rei absoluto. Certo? O quê que aconteceu ao longo do tempo? Os reis foram centralizando o poder e foram convocando cada vez mais raramente as cortes para tomar decisões. Isto foi evoluindo, evoluindo, evoluindo no século XI, XII, XII até ao XVI–XVII e quando chegamos ao século XVII, em França, o rei já tem o poder absoluto. O homem que faz isto é o primeiro-ministro do rei, que é o Cardeal Richelieu, de Luís XIII, que todos conhecem tão bem da história dos três Mosqueteiros e o D'Artagnan (os que não conhecem o D'Artagnan conhecem o "D’Artacão” e vai dar à mesma coisa, e a Julieta, essa tem o mesmo nome). Mas portanto, o Luís XIII, através do seu primeiro-ministro, primeiro o Richelieu, que é o mais importante, e depois o Mazarin – ou Mazarino –, vai concentrar todo o poder. Ao mesmo tempo, em Inglaterra, havia um rei que era escocês, que é o James Stewart, quando morre a Isabel I, que era a rainha virgem, como sabem, que foi a grande rainha da concentração do poder, quando vem o Tiago I - porque a tradução de James não é Jaime, é Tiago. Eu podia aqui explicar isto, mas fica para as perguntas, se quiserem - porquê que James deve ser traduzido por Tiago e não por Jaime. E então este rei diz: vamos fazer em Inglaterra o que estão a fazer os franceses. Vamos acabar com o Parlamento, vamos acabar com os tribunais independentes, que existiam também na Idade Média. Ele entretanto morre, o seu filho Carlos I sucede-lhe e começa a haver uma reação inglesa fortíssima dos barões, dos cidadãos, dos burgueses, a quererem impedir isso. A ponto, vejam bem, quase toda a gente, não toda a gente, mas quase toda a gente nesta sala sabe que quando se dá a Revolução Francesa (1789), passado dois anos o rei é decapitado e a Maria Antonieta também, a rainha. Mas em Inglaterra o rei foi decapitado em 1649, 140 anos antes. Porquê? Porque queria impor o absolutismo e não queriam… e até foi decretada a República. O Reino Unido foi uma República entre 1649 e 1660.

Portanto, o quê que aconteceu em Inglaterra? O que aconteceu em Inglaterra foi esta coisa fantástica. É que aquilo a que nós chamamos a Revolução Inglesa, que se dá em 1688 que é a continuação deste processo, são 80 anos de lutas entre os partidários do absolutismo e os partidários de manter o Parlamento antigo, ganharam os partidários do Parlamento antigo. Portanto, a Inglaterra era um país anacrónico. Não foi uma revolução, foi uma reação. Revolucionário no século XVII era ter um rei absolutista que impusesse o desenvolvimento do país, que construísse estradas, palácios, academias de arte, academias de ciência, que foi o que fez o absolutismo francês e que deu origem ao Iluminismo. Os ingleses mantiveram-se na Idade Média. Por isso é que os ingleses ainda hoje têm um Parlamento que tem uma Câmara dos Lordes e uma Câmara dos Comuns. Muita gente diz que a Inglaterra é a mais velha democracia do mundo. É e não é, porque um país que tem um Parlamento em que as pessoas são distinguidas segundo a família em que nascem – embora isto para a Câmara dos Lordes não seja verdade desde 97, mas foi assim até 1997, até 1998, mais ou menos, a partir de 2000, digamos assim -, não é bem uma democracia. Certo? Sabendo que a Câmara dos Lordes, pelo menos até ao princípio do século XX, era a mais importante, era a que tinha decisões mais importantes que a própria Câmara dos Comuns. Portanto, estão a ver que… isto o quê que fez? Fez com que a Inglaterra desde cedo mantivesse um sistema parlamentar. O quê que fizeram as câmaras parlamentares em Inglaterra depois de terem vencido os reis que queriam impor o absolutismo? E aqui entramos nos sistemas de governo… Começaram a dizer ao rei "meu caro amigo, os seus ministros têm de vir ao Parlamento. Têm de vir ao Parlamento explicar as suas políticas”. E o rei dizia "não senhor, vocês legislam, fazem as leis, têm de aprovar os impostos, as penas - era assim-, mas o resto do governo sou eu que trato. Tenho aqui um primeiro-ministro e os ministros e eles tratam da governação”.

"Ai é, então vamos colocar um impeachment ”. Como sabem, o impeachment é uma instituição que existe nos Estados Unidos, existe no Brasil – tem-se falado agora muito no Brasil -, que é para impedir um Presidente, mas pode não ser um Presidente, pode ser um ministro, pode ser até um juiz, pode ser um deputado, que, por ter praticado atos criminais – corrupção, suborno, traição ao Estado, alta traição, coisas deste género -, pode ser votada no Parlamento a sua remoção. É o impedimento, é o impeachment. O quê que fez o Parlamento inglês de inteligente? O Parlamento inglês fez o seguinte: vamos, se os ministros não vierem cá explicar a sua política, nós vamos pôr um impeachment contra eles. E o rei dizia: "mas eles não cometeram crime nenhum”. – Nós consideramos que é crime não vir ao Parlamento explicar as políticas, e portanto quem define o que é crime e o que não é, somos nós. E foi assim que nasceu a moção de censura. Aquilo que nós hoje conhecemos como uma moção de censura, que é fazer cair um governo, foi desta maneira. Foi com uma chantagem, com uma instrumentalização, com uma manipulação. Havia uma instituição que era o impeachment só para três ou quatro casos e eles, em vez de os usarem para os casos de crime, passaram a usá-los para os casos de política, de explicação política. Porque é que eu estou a entrar neste detalhe? Porque é assim que nasce o sistema parlamentar! O que é que é o sistema parlamentar? É um sistema em que o Governo depende do Parlamento. Há eleições para o Parlamento e do Parlamento sai um governo. E a todo e qualquer momento o Parlamento pode fazer cair o Governo. Certo? E substituí-lo por outro. Sem eleições. Vejam bem: a senhora Thatcher, que era a senhora Thatcher, saiu do governo em 90, foi substituída pelo senhor Major, sem eleições. Houve uma demissão da senhora Thatcher e criou-se um novo governo com base na mesma maioria que era a maioria conservadora. O senhor Blair deixou de ser primeiro-ministro e foi o Sr. Gordon Brown sem eleições. Porque o Parlamento tinha uma maioria e escolheu um outro primeiro-ministro. O senhor Kohl, que é o senhor Kohl – que fez a reunificação alemã – passou a ser primeiro-ministro, neste caso Chanceler da Alemanha, que também é um sistema parlamentar, em 1982. Ele era do PPE, portanto do nosso campo político, foi substituir o Chancelar social-democrata alemão, portanto socialista. Trocaram um pelo outro, com um voto no Parlamento, em que o partido que estava no meio, que era o Partido Liberal, deixou de apoiar os socialistas e passou a apoiar a CDU alemã. Sem eleições. Portanto, o único partido que se manteve no governo 25 anos sem mudar foi o Liberal. Que, aliás, teve o mesmo Ministro dos Negócios Estrangeiros, que era o Senhor Genscher, durante 25 anos. Primeiro com uma coligação à esquerda e depois com uma coligação à direita.

O que é que eu quero dizer com isto? O Parlamento é soberano num sistema parlamentar. Claro, dirão os senhores, mas isso não dá um poder enorme ao Parlamento e não enfraquece o governo? Não! Porquê? Porque nos sistemas parlamentares – isto é muito importante para Portugal que não é um sistema parlamentar, mas tem características parlamentares – nos sistemas parlamentares, o quê que acontece? O governo tem uma arma atómica que é promover a dissolução do Parlamento. Promover a dissolução do Parlamento, através do Chefe de Estado. Pede ao Chefe de Estado e este é obrigado… O Chefe de Estado é a rainha, é o rei ou é um Presidente da República eleito indiretamente, portanto não tem competências próprias, é apenas um poder simbólico, é um poder de representação, e o Primeiro-Ministro pede para dissolver o Parlamento, e portanto, dissolvendo-se o Parlamento, há de novo eleições e há um novo Parlamento. Como é que isto funciona, só para perceberem. Isto funciona como um duelo. De um lado está o Parlamento, do outro lado está o Governo. O Parlamento pode matar o Governo e o Governo pode matar o Parlamento. Porque o Parlamento pode destituir o primeiro-ministro com uma moção de censura e fazer cair o governo e o primeiro-ministro pode dissolver o Parlamento e com isso convocar novas eleições. Há uma diferença entre estes dois poderes: é que se o Parlamento faz cair o Governo, como eu lhes expliquei, pode haver um novo Governo com o mesmo Parlamento. Mas se o primeiro-ministro, através do Chefe de Estado, faz cair o Parlamento, dissolve o Parlamento, ele é um bombista suicida, porque cai o Parlamento mas também cai o governo, porque obviamente com o novo Parlamento, novo Governo. Portanto, ele no fundo é um jiadista, não é?

Agora, isto é importante porque muitas vezes os deputados estão lá e ouvem: "meus caros amigos, se os senhores não aprovarem este orçamento eu não vejo outra solução senão ir para eleições”. E isto faz com que haja um certo, digamos, balanço. Portanto, os poderes equilibram-se. Claro, quando há uma maioria absoluta de um só partido as questões são facilmente resolvidas – o primeiro-ministro tem tudo na mão. Mas quando não há maioria absoluta de um só partido – vejam o caso da Grécia que também é um sistema parlamentar, vejam o que se passou nestes últimos tempos – a situação é muito difícil. O que fez o Primeiro-Ministro? "Já que eu não sou capaz de levar a cabo as minhas políticas, vou propor a dissolução do Parlamento”. E é o que vai acontecer com eleições antecipadas, com resultados que não sabemos quais vão ser, mas que, neste momento parecem bastante incertos. Isto é o nascimento do sistema parlamentar – nasceu assim. O que eu queria que percebessem, amigas e amigos - porque é muito importante para nós todos -, é que estes sistemas de que nós falamos não nasceram ontem. Não são coisas novas. Por exemplo, a preocupação com o orçamento, com as receitas, com as despesas, é anterior à criação dos próprios Estados modernos que nós conhecemos. Já na Idade Média era assim. Se um rei queria aumentar os impostos não o podia fazer livremente. Durante o período absoluto, podia. Mas isto é século XVII-XVIII, não é XI, não é XII, não é XIII. Na nossa tradição ocidental, europeia, está ínsita a ideia de que sempre que há medidas gravosas para os cidadãos: perda da liberdade, eventualmente até a morte ou castigos corporais, multas, todo o tipo de sanções graves, ou impostos, isto é, ataque ao nosso rendimento ou à nossa propriedade, tem de ser consentido por nós, através de uma lei geral do Parlamento. Agora, perguntam as minhas amigas e os meus amigos: mas então se a Inglaterra chega ao século XVIII e, apesar de ter instituições antigas e anacrónicas, consegue com aquele expediente do impeachment , desenvolver o tal sistema parlamentar que hoje é dominante em toda a Europa – é o sistema da Espanha, é o sistema da Bélgica, da Holanda, da Suécia, da Noruega, é o sistema da Itália, é o sistema da Grécia, é o sistema do Reino Unido, evidentemente, e portanto, é o sistema da Índia, portanto, é um sistema amplamente divulgado, o da Austrália e do Canadá, porquê que os Estados Unidos, que eram uma colónia do Reino Unido, da Inglaterra, que tinham uma tradição de grande cumplicidade com a Inglaterra, quando fazem a sua revolução, porque é que eles optam por um sistema presidencial e não por um sistema parlamentar? É que é estranho…

É estranho que a Inglaterra e os Estados Unidos que têm tanta coisa em comum que às vezes até os divide da Europa Continental – fala-se de mentalidade anglo-saxónica, por contraposição à chamada romano-germânica, que é a continental – como é que se explica que os americanos vão inventar um sistema que é o contrário do sistema que tinham os britânicos que são, no fundo, os seus pais fundadores? Meus caros amigos, a questão volta outra vez, sempre, à questão dos impostos. O que acontece? Em Inglaterra os impostos eram definidos pelo Parlamento no século XVIII. Já havia moções de censura, o governo do rei já dependia do Parlamento, o rei estava a ser cada vez mais simbólico, já não tinha poderes efetivos, estava cada vez mais afastado da governação, tinha um primeiro-ministro, que esse é que ia ao Parlamento explicar as políticas, etc. Quem aumentava e baixava impostos era o Parlamento britânico, certo?

Ora, nos anos 50 e 60 do séc. XVIII, nos Estados Unidos, havia uma guerra forte entre a França e a Inglaterra. A França dominava a Louisiana, por exemplo cidades como Nova Orleães, (o Québec no caso do Canadá, não era Estados Unidos mas provava a presença francesa na América do Norte) e estavam presentes os ingleses que eram bastante mais fortes. O quê que fizeram os Ingleses a pedido dos colonos, isto é, dos britânicos que estavam lá estabelecidos já desde há 100 ou 200 anos a construir uma nova terra mas que era uma colónia, naquele momento eram treze colónias, dizem ao exército inglês: "olha, venham para cá que nós temos que expulsar os franceses de vez”. E então, o governo inglês mandou para lá uma armada fortíssima, tiveram uma guerra forte e expulsaram os franceses de todo o lado, naquilo que é hoje o território dos Estados Unidos. Como sabem, no Canadá não conseguiram expulsá-los do Québec. Mas no resto expulsaram-nos de todo o lado. Bom…

Mas as guerras ficam caras, certo? As guerras ficam caras! Logo, alguém tem que pagar as guerras. O que pensou o Parlamento britânico? Pensou: agora que nós expulsámos os franceses, agora que os colonos estão numa terra muito mais rica do que a nossa e são mais ricos, vamos subir os impostos dos americanos para eles pagarem o esforço de guerra que nós andámos a fazer. Bom, e os americanos disseram: "não senhor”. Nós não podemos ter um Parlamento, onde não estamos representados, a subir os nossos impostos. No taxation without representation. Não há tributação sem representação. Vocês estão aí em Westminster, mas está aí algum eleito nosso? Não. Estão eleitos do País de Gales, da Escócia, da Inglaterra, da Irlanda. Na altura não havia ainda Norte e Sul, a Irlanda era mais um reino dos britânicos. Estão todos sentados aí no Palácio de Westminster, mas não está ninguém de Nova Iorque, não está ninguém de Filadélfia, não está ninguém da Virgínia, não está ninguém da Carolina do Norte ou da Carolina do Sul, não está ninguém de Road Island, portanto, vocês estão a aumentar impostos sem que nós dêmos o nosso consentimento. E eles diziam: "bem, mas nós é que somos o Parlamento”, enfim, isto foi-se travando, e então os americanos disseram: "nós vamo-nos tornar independentes”, e fizeram a Guerra da Independência.

Claro que tudo se paga nesta vida. Quem é que veio ajudar os colonos americanos a travar a guerra da independência? Os franceses, nomeadamente, o Lafayette, o célebre general Lafayette, não o homem dos armazéns Lafayette de Paris, certo? Mas o general Lafayette foi mandado pelo Luís XV e depois pelo Luís XVI para dizer assim: já que nós não ficamos com aquilo, eles também não hão de ficar.

Agora vem a explicação do sistema presidencial. Porquê que os americanos optaram por um sistema que é o contrário do sistema britânico? Em que há um Presidente, o Presidente é o governo, sozinho. É um órgão unipessoal - ele sozinho é o governo. Uma vez o Lincoln, portanto passados 100 anos disto, o Lincoln estava com todos os seus Secretários, ou seja, os membros do Governo. Estava com o Vice-Presidente, com o Secretário do Tesouro, o Secretário da Defesa, o Secretário de Estado, ou seja, os Ministros, numa reunião. Estavam 14 – vamos-lhes chamar ministros e o Presidente. E ele ouviu a opinião dos 14 sobre uma medida e falou um, dois, três, até chegar ao décimo quarto. E todos disseram "não”. E ele concluiu da seguinte maneira: 14 "nãos”, 1 "sim”, a moção está aprovada. [RISOS]

Portanto, isto significa que o Governo nos Estados Unidos é apenas uma pessoa. Não é um órgão colegial, como tal, é um órgão unipessoal. O resto são apenas colaboradores. A decisão é sempre em última instância do Presidente. E o Presidente não pode ser nunca, nem os seus ministros, destituídos, não respondem perante o Parlamento, porque o Presidente é eleito pelo povo. Logo, se é o povo quem o elege, não pode ser o Parlamento a tirá-lo fora. E, por outro lado, o Presidente também não pode destituir o Parlamento, não pode dissolver. É aquilo a que se chama um casamento sem divórcio. Portanto, eles têm de coabitar – o Presidente tem de viver com o Congresso e o Congresso tem de viver com o Presidente. Compreendem isto? Portanto, é um casamento sem divórcio. Claro, há o caso extraordinário do impeachment , mas esse aí é mesmo a sério, não é como na Inglaterra. É preciso dois terços da Câmara dos Representantes, mais dois terços do Senado. Ora, isto são maiorias inatingíveis e, portanto, nunca é possível destituir o Presidente. Aliás, não há nenhum caso de impeachment nos Estados Unidos. Há no Brasil, caso de Collor de Mello, em que ele foi destituído por impeachment. Mas nos Estados Unidos não há; contra o Presidente. Porque nunca se conseguiu chegar aos dois terços. Houve casos de Presidentes, por exemplo, Nixon que esteve para ser destituído, mas ele demitiu-se muito antes de o processo começar. Portanto, assim que percebeu que o escândalo ia ter repercussões tremendas, com o célebre Watergate, que é de 1974…. Quando percebeu isso, demitiu-se e o assunto arrumou-se dessa maneira.

Portanto, agora queria só deixar aqui uma nota que é para perceberem que isto está sempre ligado aos impostos. No fundo, estavam na Costa Leste, ali em Nova Iorque, em Boston, em Filadélfia, estavam a olhar para a Inglaterra. Do ponto de vista dos americanos, quem é que os estava a oprimir? Não era o governo britânico, não era o rei britânico, era o Parlamento britânico. Porque se a competência para aumentar os impostos é do Parlamento, o Parlamento é que é o opressor. E portanto, para os americanos, criar um sistema parlamentar era criar um sistema em que íamos dar um poder imenso àqueles que nos tinham feito mal. Porque a lógica é essa. Enquanto na Europa os Parlamentos eram considerados naturalmente os defensores dos cidadãos, nos Estados Unidos a lógica é que os Parlamentos podiam agredir os cidadãos, porque eles tinham aumentado impostos aos colonos americanos sem que eles estivessem lá representados. A célebre ideia do imposto do chá, etc., tudo isso deu origem à independência americana em 1776, enfim, não vou entrar em detalhes históricos, mais do que aqueles em que já tenho entrado, que são muitos para uma aula tão curta quanto esta. Mas o que eu queria que percebessem é que foi uma reação americana à ideia de que o Parlamento pode ser opressor dos cidadãos. Isto na Europa é impensável; até ao século XX na Europa toda a gente pensou sempre que o Parlamento defende os cidadãos, o governo ataca os cidadãos. Nos Estados Unidos era o contrário: era o Presidente que representa os cidadãos porque foi eleito por ele, o Parlamento representa os Estados e representa as comunidades locais na Câmara dos Representantes, mas é perigoso. É tão perigoso que os Estados Unidos fizeram uma coisa: criaram um Supremo Tribunal Federal com competência para fiscalizar a constitucionalidade das leis. O Supremo Tribunal Federal americano tem nove juízes, pode fiscalizar a constitucionalidade das leis. Pode dizer: o Parlamento aprovou esta lei, mas esta lei vai contra os direitos fundamentais dos cidadãos e, portanto, esta lei é nula. Ora, nós só conhecemos a experiência dos tribunais constitucionais na Europa, em rigor a partir de 1929, mas em rigor, rigor, rigor, só depois da Segunda Guerra Mundial. Só depois das atrocidades do nazismo e do comunismo é que os nossos sistemas democráticos começaram a criar tribunais, ou pelo menos um tribunal, que pode anular as leis do Parlamento. Os americanos têm isto desde 1789, porque eles desconfiavam do Parlamento. Por isso eles são um sistema presidencial. Enquanto nós dizíamos: não, o Parlamento nunca tomará uma decisão contra os cidadãos, ele representa os cidadãos.

Por isso, há aqui na Europa muitas vezes hostilidades relativamente aos tribunais constitucionais. Ainda ontem ao jantar tratavam dessa questão com o Luís Montenegro, se há tensões… Há uma certa hostilidade, porquê? Porque na cabeça das pessoas ainda está aquela velha ideia do ADN dos nossos sistemas – aquela velha ideia – de que os Parlamentos representam os cidadãos, representam a tal vontade da maioria e, portanto, nesse sentido, não devia haver um tribunal que possa travar isso. Mas para os americanos é a coisa mais natural do mundo. Porquê? Porque eles acham que os Parlamentos, se atacarem os direitos fundamentais, devem ser travados. Nomeadamente, a propriedade, a vida, a liberdade das pessoas. Vida, liberdade e património, são nos fundo os três valores principais para os americanos. São as declarações de direitos.

E aqui têm dois sistemas. Claro que os senhores já sabem que os franceses são originais. E portanto os franceses disseram: bem, um francês nunca podia ter um sistema inglês e muito menos um sistema americano. Nós conhecemos os franceses - não pode ser. Tiveram um sistema parlamentar muito tempo e funcionou sempre mal. Mal. Muito tempo, especialmente entre 1865 e 1957, tiveram a Terceira e Quarta República, e praticamente tinham governos todos os anos. Era um pouco como a Itália entre 1947 e 1992. Eram governos a cair a toda a hora, era eleições a toda a hora, as coisas não funcionavam bem. E então há uma pessoa que eles chamam, que é o De Gaulle, o general De Gaulle, para resolver a crise argelina, a independência da Argélia, que era uma colónia francesa, mesmo em frente a França, do outro lado de Marselha, onde vivia um milhão de franceses, (alguns deles viviam lá já há mais de 100 e 200 anos). Mas enfim, havia uma guerra colonial, era preciso resolvê-la e chamaram o De Gaulle que era o grande herói da Segunda Guerra Mundial francesa, da Resistência, para ser Presidente. E o De Gaulle disse – aliás, chamaram-no para primeiro-ministro – e o De Gaulle disse: eu sou primeiro-ministro seis meses, resolvo o problema argelino mas tenho de mudar a Constituição. E fez um referendo para mudar a Constituição. E criou um sistema que é um sistema semipresidencial.

O que é um sistema semipresidencial? É um sistema em que há caraterísticas do presidencial e há caraterísticas do parlamentar. Ou seja, o governo por um lado depende do Parlamento e por outro lado depende do Presidente. Portanto, é duplamente responsável. Ao mesmo tempo, é duplamente legitimado, porque tem a legitimidade do Presidente e tem a legitimidade do Parlamento. Ou seja, o Presidente é eleito diretamente como nos Estados Unidos e o Parlamento é eleito diretamente como nos Estados Unidos. O governo sai do Parlamento, é certo, mas tem de ser nomeado pelo Presidente. E tanto o Parlamento como o Presidente podem destituir o governo. Se o podem destituir mais ou menos facilmente, isso é que diz se o Presidente tem mais ou menos poderes. Mas há um poder fundamental que o Presidente tem sozinho e que não tem nos sistemas parlamentares nenhum Chefe de Estado. É que o Presidente pode dissolver o Parlamento sem consultar o Governo para isso. Tem a chamada bomba atómica, que, aliás, em Portugal foi amplamente usada várias vezes já. Porquê que ele tem essa bomba atómica? Porque ele é eleito diretamente, e, portanto, o facto de ele ser eleito diretamente, se ele tem legitimidade própria, ele é uma espécie de árbitro que quando vê que há um impasse ou um conflito que não tem solução, ele pode resolver o jogo dizendo: agora pára tudo e o jogo recomeça para a semana; portanto, os senhores vão todos para os balneários e recomeça para a semana. E portanto pode interromper uma legislatura e dissolvê-la. Pode vetar leis, pode mandar leis aprovadas pelo Parlamento ou pelo Governo para o Tribunal Constitucional e tem poderes de nomeação. Por exemplo, no caso do Procurador-Geral da República. É uma proposta do governo mas tem de ter o acordo do Presidente da República. E outros altos cargos desta natureza. O Presidente tem o Conselho de Estado para reunir. Tem direito de enviar mensagens à Assembleia da República. Tem o tal poder da palavra. Tem muitos instrumentos… Tem o poder de escolha do primeiro-ministro, que normalmente é um poder que não é muito forte se os resultados forem claros, mas pode ser um poder muito forte se os resultados exigirem negociações muito delicadas. Portanto, tem estes poderes. É este o sistema que os franceses criaram. No caso francês nós falamos num semipresidencialismo muito presidencial; o Presidente normalmente é o líder do partido maioritário e, portanto, existe uma sintonia entre Presidente, a maioria no Parlamento, e portanto há um Presidente, um governo, uma maioria - é o sistema tipicamente francês.

No caso, por exemplo, português ou no caso finlandês, ou noutros casos mais fraquinhos ainda, o austríaco ou irlandês, ou no caso, por exemplo, romeno, ou no caso, por exemplo, polaco, nós falamos de semipresidencialismos de pendor parlamentar, isto é, o Presidente é uma figura mais apagada. Por tradição, porque pode aparecer um candidato ou pode aparecer um Presidente que até exerça poderes fortes. Nós já tivemos um Presidente que fez governos de iniciativa presidencial, embora com outro texto constitucional - Ramalho Eanes, que fez três governos: governo Nobre da Costa, governo Mota Pinto e o Governo Maria de Lurdes Pintasilgo. Nós já tivemos Presidentes que recusaram a indicação de primeiros-ministros. Mário Soares fê-lo em 87, o Eanes já o tinha feito em 83 recusando Vítor Crespo, o Mário Soares fê-lo recusando uma aliança entre o PRD, que era um partido eanista, o PCP e o PS na altura, com o Vítor Constâncio. Já tivemos um Presidente como Jorge Sampaio, que dissolveu a Assembleia da República com maioria absoluta, quando o Santana Lopes era primeiro-ministro da coligação e ele dissolveu a Assembleia da República, com maioria absoluta instalada. Portanto, os Presidentes têm mais poderes… podem às vezes exercer poderes mais fortes do que nós imaginamos.

Mas sobre isto nós também podemos falar bastante depois... Aquilo que eu vos queria dizer é o seguinte: o calcanhar de Aquiles do nosso sistema semipresidencial é sempre esse, esta ambiguidade muitas vezes entre o Parlamento e o Presidente. Se há uma maioria absoluta coesa, a questão está mais ou menos resolvida. Se ela não existe, existe uma grande incerteza e uma grande ambiguidade.

E por isso é que agora… e eu estou, enfim, a entrar na reta final, nos últimos cinco minutos, e queria vir aqui para a atualidade, porque eu quis dar-lhes, e sinceramente gostava de lhes dar, aqui também este espaço de cultura, porque uma Universidade não é apenas um espaço para nós refletirmos sobre estratégias e táticas políticas. É um espaço de enriquecimento cultural. "Universitas” – abertura ao Universo. Mas claro, eu também sou um político, e não posso deixar de, a propósito do sistema político português, comentar também aqui a atualidade, sobre aquilo que eu espero que vão ser os desafios que nós temos no próximo mês, no mês de setembro, que é um mês crucial.

Eu queria-lhes dizer que estou inquieto por duas razões. E a primeira razão é esta: eu tenho olhado para o discurso do Partido Socialista; eu tenho olhado para o discurso de António Costa e eu pergunto-me todos os dias, todos os dias ao levantar-me: que quer António Costa para Portugal? Que ideia é que António Costa tem para Portugal; que rumo é que António Costa tem para Portugal? António Costa não dá uma ideia do Portugal que quer. Ele quer que Portugal seja a Grécia, quer que Portugal seja a Escócia, ou quer que Portugal seja o Brasil, ou a Índia, como disse - os novos brasis e as novas índias? É que não há um rumo, não há uma ideia para Portugal. Nós sabemos o que queremos. O nosso primeiro-ministro, o nosso partido, a nossa coligação, já disseram aos portugueses muito claramente o que queremos. Nós queremos continuar no caminho em que estamos, que é: saneamento das Finanças Públicas, credibilidade do país e crescimento gradual. Era muito fácil, digo-vos eu que sou um político com alguma experiência, e especialmente a olhar para muitas eleições que estão a decorrer - estão a decorrer eleições em todo o lado -, era muito fácil fazer flores e foguetes para aumentar as percentagens nas sondagens nestes últimos 3 ou 4 meses.

Mas não é isso que nós queremos. Nós queremos um crescimento sustentado. Nós queremos criação de emprego sustentada, mas nós não queremos voltar atrás. O quê que Costa quer do futuro? Eu não vos estou a falar do Costa do passado, isso nós sabemos todos o que foi o Costa no passado. Eu pergunto o que quer o António Costa para o futuro. Qual é a ideia que ele trouxe? Eu só o ouço falar sobre casos. Ou é sobre o Metro do Porto, ou é sobre o Banco de Fomento, ou é sobre os Fundos Europeus… mas ele não tem uma ideia para o país, não diz que modelo é que quer.

O quê que ele quer para o país? Diz que quer mais rendimento para as pessoas; bem, isso queremos todos. Quem é que não quer mais rendimento para as pessoas? É que nós não enganamos ninguém. Nós dizemos: há sacrifícios que vão diminuir mas vão ter de continuar, não vão deixar de ser sacrifícios. Nós não estamos a mentir às pessoas. Nós estamos a dizer: hoje já há resultados, o desemprego está abaixo do que estava em 2011, quando Sócrates deixou o governo. Depois da crise tremenda, termos tido o desemprego neste nível é fabuloso. Nós estamos a crescer, é certo que é pouco, que é tímido, mas é consistente, é gradual. Portugal é hoje um país credível, é o exemplo apontado. O investimento está a crescer de uma forma sustentada, o consumo também vai crescendo e vai ajudando. Que modelo é que quer António Costa? Sabem qual é a impressão que eu tenho? É que António Costa - que era o Presidente das taxas e taxinhas - quer ser o primeiro-ministro dos casos e casinhos. [APLAUSOS]

Não tem uma ideia, não tem uma visão para o país. Não tem!

Portanto, é o que eu vos digo, eu não vim falar do António Costa do passado. Já outros o fizeram aqui, e fizeram-no tão bem que não é preciso dizer mais nada sobre isso. Eu estou a perguntar o que Costa quer para o futuro, que futuro é que nos aponta Costa? Ele não sabe, aqui alguém respondeu. Este senhor sabe que ele não sabe e nós sabemos que ele não sabe.

[APLAUSOS]

Segunda razão que me está a preocupar, e que me está a preocupar muito, mesmo muito. Eu ontem ouvi… foi uma pequena frase. Sabem que o António Costa tem um hábito que é interessante como comentador quando está na Quadratura do Círculo, mas que é muito nefasto quando se é líder político ou quando se é responsável político, que é estar sempre a ironizar, estar sempre a ridicularizar os outros. E então ontem, a propósito do Banco de Fomento, o António Costa tem esta pequena tirada: "Falam-nos do banco bom…” assim neste ar… um pouco, digamos, de irrisão, num certo ridicularizar. Dizia assim: "Falam-nos do banco bom, falam-nos do banco mau, mas não nos falam do Banco de Fomento.” E eu pergunto-me: como é que uma pessoa que quer ser primeiro-ministro de Portugal pode brincar desta maneira com um caso como é o caso Espírito Santo? Como é que pode tratar este caso com esta leveza e com esta ligeireza? É que eu acho que António Costa não percebeu o que se passou no país. Muitos julgam que o que se passou no país foi apenas o saneamento das Finanças Públicas. Tornar as Finanças Públicas sãs - e já não era pouco, era muito. Mas não foi apenas isso. Foi durante este governo – não é obra deste Governo, não é mérito deste Governo – mas foi durante este Governo que, pela primeira vez em Portugal, houve um ataque sério, profundo, consistente à corrupção e à promiscuidade. [APLAUSOS]

Reparem bem: alguém acredita que se os socialistas estivessem no poder, haveria um primeiro-ministro sob investigação - eu não estou a dizer se ele é culpado ou se ele não é –, haveria um primeiro-ministro sob investigação? Alguém acredita que o maior banqueiro do país estaria sob investigação e se o banco teria passado pelo que passou, se nós tivéssemos um governo socialista? O Governo não fez nada, isto é obra do poder judicial. Mas há uma coisa que é certa: o ar democrático em Portugal, hoje, é mais respirável. Nós somos um país mais decente. [APLAUSOS]

E é isto que eu vos queria dizer, e digo com a autoridade de quem há cinco anos foi candidato à liderança do PSD contra Pedro Passos Coelho. É que Pedro Passos Coelho dá-nos confiança. E dá-nos confiança porquê? Porque sabendo que a queda de um banco pode arruinar todo o trabalho que ele fez durante quatro anos… (ninguém sabia qual o impacto da queda do Banco Espírito Santo) nada fez para impedir isso, deixou a Justiça correr, respeitou por completo a autonomia da Justiça, é um primeiro-ministro que não nos dá apenas confiança nas Finanças Públicas, dá-nos confiança nas instituições, dá-nos confiança no sistema democrático. [APLAUSOS]

Meus caros amigos, este é um ponto crucial. Eu sei que todos gostam – incluindo o próprio primeiro-ministro – de falar da diminuição do défice, das contas públicas, do crescimento das exportações, mas nós temos que olhar também para este lado da saúde das instituições. São vocês, jovens, que dizem que os portugueses estão desinteressados da política. Mas como é que alguém se pode interessar pela política se não houver políticos que querem sanear o sistema, que deixam o sistema funcionar. Reparem, isto é uma reforma extraordinária. Eu não ponho em causa a presunção da inocência, eu não estou a acusar ninguém, nós devemos deixar tudo isto funcionar. Mas o simples facto de, havendo suspeitas, haver uma investigação consistente relativamente ao grande poder financeiro ou relativamente ao poder político passado, isso é uma conquista para o país tão importante como ter recuperado as Finanças Públicas. É uma conquista decisiva para a decência, para a salubridade, para a respeitabilidade da democracia e das instituições públicas. Porque outros governos, eu posso garantir-vos, até talvez com boas intenções, com receio das consequências do que poderia ser a credibilidade internacional do país, teriam tentado, de uma forma mais forte ou mais fraca, mais aberta ou menos aberta, impedir a ideia de escândalos... Teriam tremido com isso e aqui houve mão firme. É certo que António Costa tem dito que não mistura a política com a justiça. Tem dito isso. Fica-lhe bem dizer. Mas há uma coisa que Passos Coelho tem: é que já demonstrou que não mistura a política com a justiça, porque já tem dois ou três bons exemplos de que nunca misturou, nem deixa misturar, nem deixa que haja promiscuidade entre a política e a justiça. E há uma coisa que eu lhes quero dizer: eu respeito imenso António Costa. Acho que é um homem com valor, sem dúvida, um cidadão dedicado, com certeza, com todo o empenho. Mas há uma coisa que eu lhe peço: peço-lhe encarecidamente que, quando falar destas questões, como a questão, por exemplo, do Banco Espírito Santo, que não faça graças nem graçolas.

Estão a afetar muita gente, podiam ter posto em causa todo o nosso programa de ajustamento. E portanto são coisas demasiado sérias, que exigem demasiado de nós, que exigem verdadeiramente uma resistência e uma capacidade de determinação por parte do primeiro-ministro, por parte do Governo, por parte das equipas que são responsáveis, exige de tal maneira essa capacidade, esse grau de confiança, que eu pedia que ele não brincasse com isso. Portanto, ficam com estas duas perguntas. Primeira: que ideia tem António Costa para o país? Que nós saibamos, até agora, nenhuma. Segunda: nós não nos limitámos a sanear as Finanças Públicas e a pôr a economia em melhor estado e em estado de crescimento. Nós também contribuímos para que se reforçasse a democracia e a decência no quadro das instituições políticas, das instituições públicas e das instituições financeiras que estavam na origem da crise. E o facto de nós termos respeitado essa autonomia do poder judicial, de não termos interferido, de não termos tido medo das consequências é um crédito que está a favor da nossa coligação, do nosso Governo e do nosso candidato a primeiro-ministro.

E com isto estou disponível para todas as vossas perguntas e, enfim, desejo que tenhamos agora um diálogo salutar. Muito obrigado. [APLAUSOS]

 
Simão Ribeiro

Muito obrigado, Professor Paulo Rangel. Passo então a palavra, para a primeira questão do dia, à Soraia, do Grupo Rosa.

 
Soraia Lopes

Bom dia, caro Professor, descentrando ligeiramente dos sistemas de governo…

 
Paulo Rangel

Professor, é o outro…

 
Soraia Lopes

Muito bem. Senhor deputado, descentrando ligeiramente dos sistemas de governo, mas dentro das matérias de Estado, gostaria de lhe perguntar sobre o papel de Defesa, não só nos Estados, mas também na União Europeia. Os novos desafios do terrorismo e as crises da imigração levam-nos a repensar o patrulhamento das nossas costas e o reforço do controlo de fronteiras. Ora, como se pode seguir estes dois caminhos sem prejudicar Schengen nem a imagem de paz que a União Europeia tem no mundo? Como deve a União Europeia orientar as suas políticas de defesa?

 
Paulo Rangel

Aqui há várias questões, mas eu vou ser muito cartesiano, procurar ser muito disciplinado. Vamos cá ver… primeiro ponto: uma questão é a questão das migrações que nós temos neste momento. A questão mais grave, do meu ponto de vista, da Europa, não é a crise económica. Nessa matéria eu sempre defendi que nós devíamos ter uma política comum. Não apenas para o asilo, não apenas para o acolhimento de refugiados, mas para as migrações, quer dizer, para o mercado laboral europeu em geral. Nomeadamente para as migrações. E para isso eu sempre fui favorável à criação de uma guarda costeira, isto é, ou de uma guarda fronteiriça, se quiserem, comum.

Claro que isto é a visão de um federalista, que é uma coisa que não está muito em voga, mas, como vão ver, vai ser rapidamente recuperada porque a crise agora está em tal grau que vai ser rapidamente recuperada. Sempre defendi isso e continuo a defender. E isso poderia ser o embrião daquilo que mais tarde viesse a ser um exército europeu, uma força militar europeia que eu acho que também era importante.

Neste momento, o quê que eu digo? A crise dos migrantes é de tal maneira urgente que vai ter que ter respostas imediatas. Nós, felizmente, no Grupo Parlamentar do PSD no Parlamento Europeu, temos o maior especialista do Parlamento Europeu nesta matéria, que é o Carlos Coelho. E, portanto, Portugal vai ter de certeza no Parlamento Europeu uma voz ativíssima nesta matéria. Aliás, é conhecido no Parlamento Europeu não por Carlos Coelho, não por senhor Reitor, mas por senhor Schengen. E, portanto, temos aqui este ativo. Este é um aspeto.

Outro aspeto é o aspeto militar. Quanto ao aspeto militar, eu devo dizer-lhes que estamos muito atrasados. Eu sempre defendi um eixo franco-inglês. Nós devíamos ter uma força que, embora com a participação dos outros, essencialmente se alicerçasse nos únicos dois países com verdadeira capacidade militar, que são a França e a Inglaterra, e ter um orçamento para pagar missões a essa força que eles coordenariam. E assim teríamos um eixo franco-britânico na questão da defesa e um eixo franco-alemão na questão económica, o que talvez nos desse algum equilíbrio de poderes dentro da União Europeia. Sempre defendi isto.

Não é aceitável que a França, por exemplo, esteja no Chade ou no Mali a proteger-nos e esteja a pagar essa fatura. Não é aceitável que a Grécia e a Itália estejam a pagar a fatura dos migrantes sozinhos. Portanto, estas políticas têm de ser políticas comuns.

Eu só terminaria com uma segunda reflexão sobre isto tudo, que é esta: todos vós que estais aqui, mulheres e homens, há uma coisa que têm que mudar, porque nós fomos educados para uma sociedade de paz e não é essa a sociedade que nós vamos encontrar nos próximos 20 a 30 anos. E, portanto, o país tem que ser capaz de começar a afetar mais PIB à defesa e a preparar todos os cidadãos para a defesa. Eu não estou a dizer que vamos ter um serviço militar obrigatório para homens e mulheres outra vez, não é isso que eu estou a dizer. Não que me parecesse uma ideia tonta, porque não acho que era tonta, precisava de ser refletida e debatida. Mas, meus caros amigos, quem julga que vive no mundo da Guerra Fria em que havia os índios e os cowboys e havia dois blocos que se equilibravam, como no duelo que dizia que há no sistema parlamentar, que se vão equilibrando porque ambos sabem que se podem destruir – isso desapareceu.

Nós precisamos de jovens que tenham a coragem que tiveram aqueles dois marines americanos, e o seu colega universitário, dentro de um comboio. E por isso nós temos de ser formados para isso. Para sermos capazes de dar a vida ou de pôr em risco a nossa segurança para defender a segurança coletiva. E isso só com um reforço da matéria de defesa, da formação de defesa dos jovens. Ninguém pense que os tempos que aí vêm vão ser tempos iguais aos que nós tínhamos. Isto mudou.

Portanto, há aqui mudanças institucionais importantes a fazer, muito difíceis, na União Europeia, mas há uma mudança mais importante. Que as mães e os pais de todos vocês e que cada um de vocês, especialmente quando forem mães e pais, também terão de fazer, que é, nós vamos precisar de voltar a ser capazes de autodefesa. Não é para atacar ninguém, mas se eu for na rua e alguém me apontar uma faca, eu tenho de me defender. Portanto, nós temos ameaças e temos de estar preparados para elas. Uma sociedade que se esquece do capítulo da defesa é uma sociedade vulnerável. E Portugal, não tenham dúvidas, é um país vulnerável. Até agora a nossa sorte é que nós não somos um país apetitoso. Mas é um país vulnerável porque nós não estamos preparados para esse tipo de ameaças.
 
Nuno Matias

Muito obrigado. Tem agora a palavra, pelo Grupo Azul, o Luís Ponte.

 
Luís Mário da Ponte

Muito bom dia a todos. Eu queria a sua opinião acerca do seguinte assunto. A falta de flexibilidade da Constituição da República Portuguesa que vincula o Presidente da República, que, por sua vez, vincula o Governo e a Assembleia da República, poderá, em certas circunstâncias, restringir o governo na prossecução do interesse nacional, do interesse público, visto que a sociedade atual vive em constante mutação, por vezes a ritmos potentíssimos? Obrigado.

 
Paulo Rangel

Ora bem, a sua pergunta é muito interessante, mas sabe que isto depende da conceção de Constituição que cada um tem. Portanto, aqui em Portugal, em particular, os juristas são muito formalistas e são muito dados… E isso explica, por exemplo, algumas decisões do Tribunal Constitucional... Eu não diabolizo nada o Tribunal Constitucional, nem sequer concordei em alguns casos com o tom que às vezes o nosso governo, um pouco… (eu percebo que a pressão era muita para conseguir os objetivos) mas um pouco zangado às vezes com o Tribunal Constitucional. Não defendo isso. Mas eu acho que o Tribunal Constitucional em Portugal é uma instituição conservadora, não é uma instituição proactiva, Porque as constituições não são apenas o que está escrito, são o que está escrito em ligação com os valores do momento e a realidade. Eu dou um exemplo: a Constituição americana que tem lá o princípio da igualdade, (não foi logo no início, foi logo a seguir, quando se fez a Declaração de Direitos), foi compatível com a escravatura. Claro, os escravos eram iguais entre si e os livres eram iguais entre si, cumpria-se o princípio da igualdade. Depois começou a entender-se que todos eram livres, mas foi compatível com o Apartheid, certo? Foi compatível com o Apartheid. O mesmo texto! Depois nos anos 50 acabou-se com o Apartheid e então agora já não há escolas para negros e escolas para brancos, as escolas são para todos. Ou os autocarros, por exemplo. E depois até se criou a discriminação positiva, isto é, àqueles que partem de uma, digamos, situação pior, vamos dar algumas vantagens, vamos deixá-los partir cem metros à frente para que eles possam recuperar e as gerações seguintes deles possam estar ao nível dos outros. Ou seja, uma interpretação dinâmica da Constituição. Veja, até há pouco tempo, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal considerava que o casamento gay era contrário à Constituição e agora entende que é imposto pela Constituição americana. Alguém fez alguma revisão constitucional? Não. É uma interpretação de acordo com os valores dos tempos. Há 30 anos isso era uma coisa impensável e passados 30 anos já não é. Portanto, é precisa uma leitura dinâmica da Constituição.

Eu acho que nós precisávamos de uma revisão constitucional ou até de uma nova Constituição, mas isso para mim não é uma coisa fundamental. Se houver um Tribunal Constitucional que seja dinâmico, proactivo, progressista na leitura da Constituição, nós temos todas as condições para, com o texto que temos, podermos ter as respostas necessárias a cada momento. Portanto, aquilo que eu entendo é: tudo vai da leitura que nós temos da Constituição. Se é uma leitura, dizem os juristas como eu, positivista, isto é, que vai atrás do texto, evidentemente que nós não vamos sair da cepa torta porque estamos ainda com muitas marcas de 1974. Agora, se nós fizermos, como outros fizeram, como fizeram, por exemplo, os franceses... se lerem a Constituição francesa não está lá nenhum regime semipresidencial, o De Gaulle é que o criou na sua cabeça, portanto, interpretou aquilo daquela maneira com as suas práticas e os outros foram atrás daquelas práticas. Portanto, se o nosso Tribunal Constitucional tiver essa flexibilidade e essa abertura para se abrir ao tempo… aliás, há um grande autor alemão, que era o Bäumlin, que dizia: "uma norma constitucional é uma norma aberta ao tempo”. Se tiver esta abertura eu acho que isso dá flexibilidade suficiente para nós não precisarmos, para cada coisa, de uma revisão constitucional. Senão vamos mesmo precisar de revisões constitucionais. Mas nós já fizemos bastantes. Mas talvez fossem precisas mais algumas, alguns acertos. Essencialmente no sentido de limpar um pouco a Constituição.

Até porque hoje a nossa Constituição, deixem-me só dizer isto, não é apenas a Constituição portuguesa, é também a Constituição europeia. Por exemplo, em caso de matérias económicas, o que conta são os tratados europeus, isso é que é a verdadeira norma constitucional. A nossa Constituição, hoje, é plural, há vários níveis de constituição. As questões económicas estão no domínio europeu, as questões de sistema de governo estão no domínio nacional e nós não podemos parar o vento com as mãos. Nós podemos escrever coisas na Constituição… nós podemos escrever na Constituição que toda a gente vai ter uma casa com piscina, mas isso pode lá estar escrito na Constituição do Burkina Faso, mas isso não vai acontecer. O mesmo texto na Suécia ou no Burkina Faso terá sempre uma realidade diferente para operar.

Portanto, aquilo que eu entendo é: é preciso mais abertura na leitura da Constituição. Com isso nós já teríamos soluções suficientes para resolver os problemas financeiros. Mas, por exemplo, ter um estado de necessidade financeira na Constituição, eu acho que era uma coisa que podia ter ajudado muito nesta crise e ter facilitado muito a tarefa aos portugueses, ter exigido menos sacrifícios, porque nós não íamos precisar de ter as medidas de efeito equivalente que tiveram efeitos negativos na economia que, de outra forma, não teriam ocorrido.

 
Nuno Matias

Muito obrigado. Tem agora a palavra, pelo Grupo Amarelo, a Marta Madureira.

 
Marta de Madureira

Bom dia. Acha que, num sistema semipresidencial como o nosso, faz algum sentido admitir um governo de iniciativa presidencial, como já aconteceu com a presidência de Ramalho Eanes e, já agora, porquê? Obrigada.

 
Paulo Rangel

Ora bem, vamos cá ver… Há aqui uma diferença muito grande entre a situação de 1977, que é quando essa questão se põe pela primeira vez, e a situação atual. É que a Constituição foi revista em 82, em termos tais que retirou um poder muito importante ao Presidente da República e deu outro poder muito importante ao Presidente da República. Eu vou explicar.

Quando o Presidente Ramalho Eanes, perante um impasse do Parlamento, em que havia o PS, depois o PSD e depois, enfim, o CDS, e depois o PCP e depois havia o MDP e a UDP com muito pouca expressão... mas havia estes quatro partidos. O PS tinha uma maioria relativa depois vinha o PSD, depois vinha o CDS, depois vinha o PCP. Mais ou menos isto. Quando isto acontecia era muito difícil formar governos. Houve um primeiro governo de maioria relativa de Mário Soares. Houve um segundo governo de aliança PS/CDS, com Mário Soares a Primeiro-ministro, mas ficou Freitas do Amaral, que era líder, de fora. Era o Basílio Horta, agora no PS, que chefiava de alguma maneira, digamos assim (era Ministro do Comércio Externo, creio eu) o CDS dentro do Governo. O quê que tinha o Presidente? O Presidente tinha uma cláusula na Constituição que dizia: o Presidente pode demitir o Governo. Só, sem razão nenhuma, por falta de confiança. Esta cláusula foi mudada em 82 e passou a ser redigida da seguinte maneira: o Presidente pode demitir o Governo em caso de irregular funcionamento das instituições democráticas. Portanto, ou seja, foi muito restringida. Até 82 o governo precisava da confiança política da Assembleia e da confiança política do Presidente. Portanto, o Presidente tinha um papel de confiança política, por isso podia nomear primeiros-ministros. Nomeou o Nobre da Costa, mas esse governo não chegou a ver o seu programa aprovado. Depois o Mota Pinto ainda teve governo durante algum tempo e depois criou um governo, só para fazer eleições, da Maria de Lurdes Pintassilgo, ali em 79, foi o célebre governo dos 100 dias, porque vigorou apenas 100 dias porque foi só para organizar eleições. É um pouco como tem agora a Grécia, que tem uma senhora a primeiro-ministro só para organizar eleições.

Portanto, eu acho que hoje é difícil haver um governo de iniciativa presidencial. O que eu acho que pode aproximar-se de uma estatura maior ou um contributo maior do Presidente da República é o seguinte: havendo resultados eleitorais pouco claros e tendo de haver negociações de bastidores, isto é, nos corredores do Parlamento, que é que acontece na Bélgica, o que acontece na Holanda, na Dinamarca, na Suécia, na Noruega - portanto não é nada do outro mundo –, na Itália, aconteceu durante muito tempo. Ou seja, não havia maiorias absolutas claras, e, portanto, nestes países tem sempre de haver coligações. Por isso a pessoa nunca sabe quem vai ser o primeiro-ministro. Quando estamos a votar na Bélgica ou na Holanda nós nunca sabemos quem vai ser o primeiro-ministro. O primeiro-ministro pode ser do terceiro partido, porque o primeiro e o segundo não se entendem, mas há três que se entendem e então para não ser o primeiro, nem o segundo, é o líder do terceiro. Isto acontece por exemplo, na Letónia aconteceu ainda há dois anos. No caso da Bélgica é evidente que o atual primeiro-ministro é do quarto ou quinto partido; é a pessoa que é suscetível de gerar consensos para este efeito. Portanto, aí o Presidente pode ter um papel, porque a nossa Constituição diz: o Presidente escolhe o primeiro-ministro; não há eleições para primeiro-ministro, há eleições para o Parlamento e quem escolhe o primeiro-ministro é o Presidente. Claro, se as eleições dão uma maioria absoluta clara, o Presidente não tem margem de escolha. Ou se dão uma maioria relativa muito clara, pelo menos tem de indigitar aquela pessoa para tentar formar governo, ver se ela consegue, e se ela conseguir formar um governo, naturalmente, que dará posse a essa pessoa.

Agora, se houver uma situação muito cinzenta, os seus poderes aumentam e ele pode até ter o papel, por exemplo, de encontrar uma terceira personalidade que possa fazer o pleno entre dois partidos que se queiram coligar. Portanto, essa hipótese, na Constituição portuguesa, não está descartada. Não faz parte da nossa tradição, mas, como a realidade muda muito dinamicamente, eu não excluíria um cenário desses, no futuro, poder acontecer isso.

Agora, um governo de iniciativa presidencial como nós tivemos, eu acho que só com o texto de 82 - já não seria possível agora. Ou com uma nova reforma constitucional que viesse presidencializar o regime ou aumentar a sua componente presidencial.

Já agora, só para deixar esta informação, qual foi o poder que o Presidente ganhou? É que, dantes, o Presidente não podia dissolver livremente o Parlamento, precisava de um parecer favoravel do chamado Conselho da Revolução, que hoje seria do Conselho de Estado. Portanto ele não decidia sozinho, precisava, antes, de ter aquele parecer favorável. E a partir de agora era um poder solitário. O Presidente está em Belém, acorda, toma o pequeno-almoço, sente uma ligeira indigestão – pode dissolver o Parlamento. Isto é constitucional, não é inconstitucional. Claro, depois terá que responder aos jornalistas todos que aqui estão e é capaz de a indigestão aumentar gravemente, mas… [APLAUSOS] mas é constitucional. Ou seja, de acordo com a Constituição, ele pode invocar um mau pequeno-almoço para dissolver o Parlamento.

 
Simão Ribeiro

José Paulo Miller, Grupo Laranja.

 
José Paulo Miler

Muito bom dia. O Dr. Paulo Rangel defendeu a mudança do sistema eleitoral para a Assembleia da República com a introdução dos círculos uninominais. Deste modo, e tendo em consideração o contexto atual de crise em que vivemos, considera que é congruente uma reforma do sistema político nesse âmbito e, se sim, qual é o modelo que defende? Obrigado.

 
Paulo Rangel

Olhe, eu vou dizer-lhe o seguinte: eu acho que nunca defendi isso, mas, quando uma pessoa tem 47 anos nunca pode dizer que nunca defendeu nada. Pode ter a ver com alguma coisa que, numa noite obscura, eu tenha defendido e já não me lembrar. O que eu defendi muito recentemente, isso sim, foi uma coisa que, no fundo, vai um pouco ao encontro das preocupações que estão por trás da sua pergunta, que foram as listas preferenciais, certo? Ou seja, as listas preferências. Isto quer dizer que eu acho que os cidadãos deviam ter o direito de compor a sua própria lista. Isto podia ser feito de duas maneiras.

Uma maneira era só num partido. O partido indica os seus candidatos, estão lá postos por ordem alfabética e a pessoa põe duas cruzes naqueles candidatos que quer ver eleitos em primeiro lugar, e quem tiver mais cruzes é que entra em primeiro lugar. Ou seja, desaparece o fenómeno dos cabeças de lista. Isto obriga os partidos a escolher o quê? A escolher pessoas que as pessoas reconheçam como pessoas válidas e competentes e não a acontecer aquela coisa que nós vemos hoje, o António Costa que diz que renovou os cabeças de lista e que tem cabeças de lista extraordinários, depois vai a ver os segundos e é toda a gente igual. Aquilo no fundo são todo os mesmos… fez um lifting, não é? Pôs um cremezinho nas listas e aquilo está, enfim, um pouco colorido, mas, na verdade, depois vai-se a ver e é a mesma coisa. Portanto, eu defendi as listas preferenciais.

Quero dizer que eu não seria contra um sistema de círculos uninominais como tem a Alemanha, a que se chama sistema misto, mas que não é um sistema misto, é um sistema de representação proporcional como o nosso, em que metade dos deputados é eleito em círculo uninominal e metade é eleito por listas, mas o número de deputados que cada partido tem é exatamente aquele que corresponde à sua percentagem. Por exemplo, se nós hoje temos 120 deputados, imaginemos, ou um partido tem 120 e outro tem 100, nos resultados continuará a ter. Desses 100, os que foram eleitos em círculo uninominal, imagine que um elegeu 40, entram esses 40 e depois vai-se às listas buscar os outros 60. E o outro elegeu 57, tem os 57 e depois os outros 63 vai buscá-los à lista. Ou seja, ele mantém a proporção que tem, portanto, não altera, não torna maioritário esse sistema, não cria aquele problema que acontece nos Estados Unidos e que acontece também em Inglaterra, em que um partido pode ter (como por exemplo o Partido Liberal teve nos anos 80), 25% dos votos e tinha 6 deputados em 600. Tinha 1% dos deputados e tinha 25% dos votos, porque ficava em segundo lugar em todo o lado, e como só se elegia o primeiro, claro, os votos eram todos deitados ao lixo, são os chamados restos desaproveitados.

Ora, o sistema alemão, que é um sistema que mistura isto, tem dois votos – voto uninominal e voto no partido. No voto uninominal a pessoa vota no deputado do seu círculo e no voto do partido vota no partido. Primeiro conta-se o segundo voto e diz-se: este partido tem direito a 30 deputados. Quantos uninominais elegeu? Elegeu 7. Então, os 7 uninominais estão aqui e agora os outros 23 vêm das listas do partido, que o partido apresentou também uma lista dos que iam por lista.

Este sistema permite que cada círculo se aproxime de uma pessoa, que tenha lá um representante, e permite manter a proporcionalidade do sistema. Não estaria contra isto.

Há uma coisa que eu estou contra – é este sistema de listas bloqueadas que nós temos. Acho que é um sistema muito partidocrático, muito imposto pelas direções partidárias, muito pouco aberto a respirar e à renovação. Portanto, sinceramente, acho que o sistema que nós temos não é bom. Introduzir algumas alterações, acharia bem. Já agora, permita-me este comentário. Há riscos, por exemplo, num sistema puramente uninominal. Há! Eu que, por exemplo, sempre fui contra (embora, até no PSD seja muito mal tratado por isso) a eternização dos Presidentes de câmara nos seus lugares, nós sabemos que se houvesse o deputado uninominal ia dar-se o efeito de "Presidente-de-camarização” do deputado. Quer dizer, aquele deputado, a dada altura, ia ser sempre eleito e reeleito e voltado a eleger porque se ia criar a sua ligação ao seu eleitorado de tal maneira forte, especialmente nos círculos em que há maior proximidade das pessoas, que estão mais no interior, etc., que, evidentemente, às tantas, tínhamos aqui também efeitos perversos. Portanto, não é uma questão simples.

Há uma coisa que é certa e que está por trás da sua pergunta. Temos de abrir o sistema eleitoral, temos de abrir. Com este sistema os partidos estão a entrar em entropia, e é mau para eles; é mau para eles. Não é por acaso que a Sra. Le Pen tem sucesso, que o "Podemos” tem sucesso, o Sr. Grillo tem sucesso. Nós ainda não estamos nesse grau mas um dia podemos lá chegar.
 
Simão Ribeiro

Muito obrigado. Rui Martins, Grupo Castanho.

 
Rui Manuel Martins

Bom dia. Dr. Paulo Rangel, na sequência da resposta que acabou de dar, a minha pergunta é: nós não vivemos, mais do que uma crise do sistema político, uma crise de valores de alguns atores do sistema político? O que podemos fazer para mudar essa crise?

 
Paulo Rangel

Ora bem, vamos cá ver. Eu talvez pusesse a questão do seguinte modo: nós não vivemos uma crise, a crise é que vive, certo? Ou seja, nós não podemos estar constantemente a dizer que estamos em crise porque isto não é uma crise, isto é uma mudança. Como é que eu hei de explicar? Uma vez eu procurei explicar isto...

Vou-lhe dar um exemplo da minha profissão de jurista. Fala-se muito na inflação legislativa. Há leis a mais, estão sempre a produzir leis, leis a mais. Isto é uma doença, é uma crise. Uma vez eu escrevia um artigo que dizia assim: inflação legislativa não é uma doença, é uma mutação genética. Quer dizer: agora já não vai mudar, vai ser sempre assim. Ou seja, nós vamos viver sempre em crise. Porque repare, o problema… para os jovens, isto não é notório, mas para pessoas como Carlos Coelho ou como eu, nós nascemos na Guerra Fria. E na Guerra Fria nós fomos todos formatados para que havia dois blocos – bloco Ocidental e o bloco de Leste. E tudo se resumia a isto. Era tudo muito simples, era preto e branco, era índios e cowboys. E portanto, parecia-nos que havia crises de vez em quando. Havia uma crise em Chipre, havia uma crise nas Coreias, havia uma crise, quando foi a Revolução portuguesa, nas colónias portuguesas, se eram os Estados Unidos se era a União Soviética que poderiam eventualmente ter ali maior preponderância. Depois da independência quais seriam as superpotências que teriam ali maior preponderância.

Eram as chamadas crises regionais. Era a crise na Nicarágua, tinha sido a crise de Cuba. Isso eram crises. A partir do momento em que está num momento globalizado, isto não é crise, é a nossa maneira de ser. Por isso é que eu lhe disse: nós não estamos a viver uma crise, a crise é que está a viver. Nós é que somos a crise. Este é o primeiro aspeto. Ou seja, quem pensa que há um remédio extraordinário e que nós vamos viver num mundo de maior segurança e de maior estabilidade, e que vai haver um remédio milagroso e que vai ser tudo extraordinário e que os mapas vão estar fixados... Não vão! Porque aquela ideia… pense só nisto: nós tínhamos Estados que tinham um território, um povo e uma soberania, e o território estava muito bem delimitado. Mas a partir do momento em que tem aviões por todo o lado, tem carros por todo o lado, comboios, navios, tudo a circular. E depois tem a Internet, que essa é a verdadeira mudança...

Repare, só para ver um problema: há aqui um técnico informático brilhante, desenvolve um novo produto, vende-o para o Brasil, para a Argentina e para o Chile. Para o vender o que é que ele precisa de fazer? Faz um clique no seu computador, manda o produto para os seus clientes, eles fazem o depósito e agora digam-me o seguinte: quem é que trata do IVA, dos impostos, das declarações, etc.? Isso tudo pressupunha uma estrutura física e não propriamente isto. Quer dizer, de repente o mundo mudou, de repente nós estamos noutro mundo, em que não há fronteiras. Por isso é que nós temos também estes movimentos migratórios tão fáceis. Como é que é tão fácil as pessoas circularem, mesmo nestas condições tão precárias? Porque nós estamos no mundo da mobilidade. Portanto, aquilo que eu lhe queria dizer é o seguinte: Nós temos de aprender a viver a gerir a crise e não propriamente a pensar que vamos resolver a crise, porque isto não é uma crise, isto é uma mudança de paradigma. É sair de uma sociedade que estava organizada em Estados tradicionais para uma sociedade que está organizada em rede de influências e em poderes assimétricos.

Dantes os poderes eram simétricos. Portugal, Estado soberano com determinadas caraterísticas, e a Espanha a seguir, e a França a seguir, e Marrocos e a Argélia e a Tunísia… Isto desapareceu. Agora são espaços de influência, agora há poderes invisíveis - os mercados. Cai a bolsa em Xangai, já está aqui… é a teoria do caos. Uma borboleta a bater as asas nos jardins de Pequim origina um furacão no Golfo do México. Quer dizer: hoje nós estamos noutro mundo. E, portanto, a primeira coisa que queria dizer é o seguinte: é a adaptabilidade.

Se me disser assim: qual é o valor fundamental para nós nos guiarmos nesta nova realidade? Eu acho que é a capacidade de nos adaptarmos, de estarmos atentos ao sinal, de estarmos atentos a esses sinais de mudança, estarmos em constante capacidade de adaptação. E depois é reforçar as nossas identidades, por isso eu digo, e até fui insultado esta semana no "Público” por uma pessoa que, aliás, estimo muito, e a quem aproveito para mandar um cumprimento, que é o Dr. Ribeiro e Castro, mas que me insultou no "Público” sem pôr lá o meu nome, porque eu disse o seguinte (e torno a dizer aqui a todas as minhas amigas e a todos os meus amigos), que é isto: faz mais pela língua portuguesa e pela identidade portuguesa um bom ensino de Português e de História nas escolas, uma boa preparação em inglês, uma boa preparação em informática, do que mais um voto ou dois no Conselho ou o português ser língua oficial da Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Económico. Isso não interessa nada, o que interessa é que nós, portugueses, estejamos cientes da nossa História, da nossa identidade, saibamos usar a nossa língua, não escrevamos textos para a Universidade de Verão em que usamos o "k” em vez de "que” e coisas deste género.

Se nós formos capazes de fazer isso, nós mantemos a nossa identidade com adaptabilidade aos novos tempos. Ou seja, este é que é para mim o ponto. E a ideia de que há uma crise de valores, claro que há uma crise de valores, mas quer dizer, é como eu lhe digo... Que valores é que nós vamos recuperar? São os valores de sempre, é o valor da honestidade, é o valor da seriedade, da competência, do trabalho. Os valores são esses, não se inventa nada.

O Homero, na Odisseia, que foi escrita 800 anos antes de Cristo, dizia: os moinhos dos deuses moem muito devagar. A realidade está a mudar a uma velocidade espantosa, mas a natureza humana é a mesma. Os valores humanos são os mesmos. É o respeito pelo outro, é crer que temos uma identidade própria, defender a nossa identidade não é afrontar a identidade dos outros.

Penso que estes são os valores para nos guiarmos numa sociedade como esta. E é acabar com a ideia de que estamos em crise. Meu caro amigo, nós não estamos em crise, nós somos crise. O português tem esta grande vantagem: tem o verbo "ser” e o verbo "estar”. Nós não estamos doentes, nós somos doentes, num certo sentido. Já não somos doentes, somos mutantes. Somos habitantes de um novo paradigma, do ponto de vista político e do ponto de vista societal, para usar uma expressão da sociologia, que não é apenas social é mais global do que isso. Portanto, deixemo-nos desta coisa "hei, que crise gravíssima, e os valores e a decadência…”, não senhor, o mundo está em mudança e nós temos de ser capazes de agarrar essa mudança.

 
Simão Ribeiro

Muito obrigado. Aldo Maia, Grupo Roxo.

 
Aldo Maia

Bom dia, Professor Paulo Rangel…

 
Paulo Rangel

Já lhe disse que o professor não está aqui.

 
Aldo Maia

OK, muito bem, bom dia, Dr. Paulo Rangel. Eu não resisto a puxar um bocadinho as perguntas para o lado europeu, considerando as responsabilidades que tem. E na Europa temos vivido vários fenómenos que poderiam ser resolvidos com políticas comuns de forma mais célere e mais efetiva, como por exemplo a crise dos refugiados, que é uma atrocidade para qualquer cidadão europeu. E, sendo um federalista convicto, de que forma é que vê o futuro modelo de governo da União Europeia e quais as principais alterações que o modelo de governo português atual teria que sofrer. Muito obrigado.

 
Paulo Rangel

Olhe, a primeira que eu gostava de desmistificar é a ideia que corre para aí de que ser federalista é perder soberania. É uma ideia que aí está agora muito em voga. Muito defendida, por exemplo, por Pacheco Pereira, tem muitos escritos nessa linha. Eu leio-o sempre com muita atenção e acho que ele diz muitas coisas pertinentes, muito embora o ângulo em que está, obviamente, não o subscrevo, mas no meio daquele argumentário não deixa de estar lá muita coisa pertinente. Mas ele, enfim, é um antifederalista confesso, muito na linha britânica, diria eu. E como ele a intelectualidade portuguesa em geral. Portanto, muita gente, muita gente.

Agora, o que eu queria explicar, era o seguinte: a melhor forma de defender os interesses, hoje, de um país como Portugal é o Federalismo. O que nós temos hoje na Europa não é o Federalismo, é realmente o Diretório. Por isso eu costumo dizer: a Constituição europeia não é democrática, a Constituição europeia é aristocrática. Tem os grandes e tem depois os médios e pequenos, certo? Estou a ir a categorias de Aristóteles. Nem todos saberão isso, enfim, não têm obrigação de saber, mas o Aristóteles classificava os regimes, e considerava-os todos positivos, em Democracia, Aristocracia e Monarquia. Depois eles tinham a sua perversão que era a Tirania, a Oligarquia e a Demagogia. Eu acho que o que acontece é que, na Europa, o Tratado de Lisboa não resolveu os nossos problemas. E não resolveu os nossos problemas porquê? Porque não assume o Federalismo; o Federalismo protege mais os Estados médios e pequenos do que o Não Federalismo. Eu vou-lhe dar um exemplo. No Conselho Europeu, que é a câmara alta, é uma espécie de Senado, os votos são definidos em função, não dos países, mas da população, e no Parlamento Europeu também. Ora, o quê que acontece numa Federação? Na Câmara Alta os países têm o mesmo voto. O Arkansas tem um milhão de pessoas e tem dois senadores. A Califórnia tem 30 milhões de pessoas e tem dois senadores. Na Câmara dos Representantes, às tantas, o Arkansas tem só três representantes e a Califórnia é capaz de ter 44 ou 45, talvez, não sei, estou agora só a dar um exemplo, mas é proporcional à população. Uma Câmara representa a população, a outra representa os Estados.

Aliás, eu já fui duas vezes ao Tribunal Constitucional alemão – o Tribunal Constitucional alemão é muito citado, mas tem uma cultura muito aberta e então convida muitas vezes deputados europeus, convida personalidades em geral para audições - para falar muito sobre esta questão da primeira câmara, segunda câmara. Fui lá com mais dois deputados europeus para falarmos sobe isto. E eu disse aos alemães: adotem a Constituição alemã na Europa. A Alemanha é um Estado Federal, tem dezasseis Estados. Os Estados pequenos, por exemplo, o Sarre, que tem um milhão de pessoas, tem três votos na câmara alta. E o maior Estado, que é a Renânia do Norte-Vestefália, que tem dezassete milhões, tem seis votos. Se a Alemanha tivesse seis votos, e Portugal, a Grécia, a República Checa, a Bélgica, a Hungria, que têm todos dez milhões de pessoas, tivessem quatro, depois o Luxemburgo, etc., tivessem três, Portugal e a Hungria sozinhos tinham mais votos do que a Alemanha. Ali. Depois, na outra câmara, não, e eram precisas as duas câmaras. Portanto, o Federalismo protege. Mais, o Federalismo permite dizer: estas competências são nacionais e estas competências são europeias. O que nós temos hoje é a confusão geral, tudo é nacional e tudo é europeu. Quem é que está neste momento a governar? Não são as instituições europeias – Comissão e Parlamento. É o Conselho – são os primeiros-ministros. Portanto, o que nós temos é uma espécie de coletivo de governos nacionais a dirigir o processo europeu, porque não há instituições europeias com poder suficiente para resolver os problemas europeus. Isto aconteceu na crise, isto está a acontecer nas migrações também. Por isso é que depois há aquelas Cimeiras, entre os principais, para levarem as questões mais ou menos resolvidas, enfim mais ou menos preparadas, os "non papers”, como eles chamam... que são os "não papéis”? São papéis que circulam mas que supostamente não existem. Eu defendia a evolução para uma Federação. Agora, se me pergunta se isto é plausível, se isto se pode fazer no curto prazo, eu sinceramente sou cético, sou realista, acho que é muito difícil. Há uma coisa de que eu não tenho dúvidas: quanto mais problemas deste género emergirem – o caso da situação grega, o caso agora que é, de longe, o mais grave, da situação dos migrantes, o caso que não pode ser esquecido da Ucrânia -, eu acho que vão tender para que haja maior integração, que esse processo se acelere. Depois de um processo de renacionalização, nós vamos assistir a um processo de reintegração. Isto, no fundo, também não é nada extraordinário.

Os Estados Unidos, que são uma verdadeira Federação, também só são uma Federação, não há assim tanto tempo. Eu lembro o seguinte: muita gente diz "a Europa não se entende, na Europa não se entendem!”. Sabem como é que se criou uma Federação verdadeira nos Estados Unidos? Foi com uma guerra civil. Foi os Estados no Norte a imporem a Federação aos Estados do Sul, porque eles queriam vir-se embora para manter o modo de produção esclavagista. Os Estados Unidos são a terra da liberdade, são uma Federação à força. Não são uma Federação feita de acordo com a livre vontade dos povos e com um referendo universal. É que às vezes nós somos muito simplistas. Quer dizer, num sítio onde era muito mais fácil fazer uma Federação, foi preciso haver uma guerra civil para que os Estados que não tinham escravos se impusessem àqueles que tinham escravos. Certo?

Por vezes o nosso pensamento é muito simplista. Chegam aqui e dizem: olhem para os Estados Unidos… se nós fossemos os Estados Unidos, claro, estava tudo resolvido. Nos Estados Unidos? Então o que é que queriam? Queriam agora que a Alemanha, a Holanda, a Finlândia e a Áustria pusessem um conjunto de batalhões, avançassem pela Grécia dentro, pela Itália abaixo, Espanha e Portugal, impusessem a disciplina financeira, agora os senhores têm estas regras assim, assim, assim… nós é que vamos dizer como é, e acabou, pronto, já está! Atenção, isto é só para explicar que isto são processos complexos, os processos de integração.

E no caso de uma comunidade que tem 24 línguas, que tem não sei quantas religiões, que não tem verdadeiramente uma homogeneidade étnica, tem algo de comum, mas tem esta disparidade toda, naturalmente que isto é um processo mais difícil. Mas eu estou convencido que até o Sr. Cameron está desejoso por uma política comum de migrações neste momento. Até ele já está. Porque os problemas são graves.

Eu chamo a atenção para isto, e volto à consciência militar. Ameaça a Leste da Rússia, ameaça a Sul do Estado Islâmico, crise no epicentro entre o Leste e o Sul, o Sudeste chama-se Grécia. Portanto, nós estamos, de facto, numa situação muito, muito difícil. É extremamente difícil. E portanto temos de estar conscientes de que temos de lidar com isto e que temos de ter respostas para isto, e que não há antídotos universais, não há uma vacina para esta coisa. Portanto, isto é um processo. Mas eu acho que nós vamos entrar num processo de reforço da integração europeia. Vamos entrar num processo desses porque não há outra forma de respondermos a ameaças desta dimensão.

 
Simão Ribeiro

Vasco Ferreira, Grupo Verde.

 
Vasco Ferreira

Muito bom dia, Dr. Paulo Rangel. Como vê a proposta presente na moção vencedora do último Congresso da JSD que aponta para a transição para um sistema presidencialista em Portugal?

 
Paulo Rangel

Bom, essa pergunta é uma pergunta difícil porque eu fui sempre, e continuo a ser, um defensor de um maior protagonismo do Presidente no sistema português. Portanto, a mim não me chocaria um sistema presidencial em Portugal, nunca fui contra isso, mas eu acho que, mesmo com a Constituição atual, o Presidente podia ter muito mais intervenção.

Eu vou dar aqui dois exemplos que já dei publicamente, e vou falar portanto com toda a liberdade, que aliás é uma coisa que eu faço sempre, embora tenha um preço a pagar. É uma coisa que queria dizer aqui aos meus amigos, e muitos são jovens políticos. Os aparelhos, especialmente por causa das listas bloqueadas, têm tendência a não deixar falar as pessoas com liberdade. Mas o não falar com liberdade no curto prazo pode dar um pequeno posto, mas paga-se um preço caro, e, portanto, é preciso ter isso presente. Eu aqui vou dizer o seguinte: como é que eu analiso os mandatos dos Presidentes da República com o atual texto constitucional?

Vou escandalizar toda a gente, mas eu acho, achei sempre, que funcionou bem o Presidente Mário Soares como Presidente. O Dr. Mário Soares tem agora esta versão final que os senhores conhecem, esta última versão, melhor dito, não é final, mas esta última versão, que eu já expliquei que tem uma razão. É que o Dr. Mário Soares governou sempre à direita do PS, meteu o socialismo na gaveta, mas quer ficar para a História como um homem de esquerda. Então aproveitou esta altura em que as coisas dele já não têm efeito nenhum para tentar ficar nos manuais como homem de esquerda. Mas foi ele que combateu o comunismo em 74/75, foi ele que esteve aqui com o FMI… a pessoa que melhor compreende o primeiro-ministro Passos Coelho em Portugal é o Dr. Mário Soares, embora ele não o diga e não tenha a coragem de o dizer, porque ele foi primeiro-ministro, justamente, nas mesmas condições. E as duas pessoas que poderiam compreendê-lo tão bem como ele, já morreram, apesar de bastante mais novas. Um era o Dr. Mota Pinto, e faz este ano 30 anos que morreu o Dr. Mota Pinto e ainda não se fez aqui… talvez o Instituto Sá Carneiro pudesse pensar um pouco em recuperar o pensamento do Professor Mota Pinto que foi um líder do PSD importante e um líder importante nessa altura, numa altura em que era importante resgatar o país, numa situação que não era menos difícil do que esta. E o Dr. Ernâni Lopes que era o Ministro das Finanças e que também teve que viver essa crise.

Portanto, eu acho que ele, mesmo fazendo algumas tropelias ao Professor Cavaco Silva como primeiro-ministro, que também não fizeram mal ao Professor Cavaco Silva, de vez em quando precisava de levar com umas tropelias… Porquê? Porque o nosso modelo é aquilo que eu chamo um modelo, no fundo, de gestão pela competição. Ou seja, quanto mais o Presidente for exigente com o governo, melhor é o governo e quanto mais o governo for exigente com o Presidente, melhor é o Presidente. Claro que isto pode levar a um impasse, mas, na dose certa, alguma competição é positiva. Bom, o que é que aconteceu com o Presidente Dr. Jorge Sampaio, de quem eu fui grande crítico, (embora considere uma referência moral incontornável do país, das grandes referências morais, como aliás é o General Ramalho Eanes)?

É que veio o Governo Guterres - ele foi Presidente com o governo Guterres, - que tinha maioria relativa, faltavam quatro deputados, depois até estava empatado, eram 115/115. E ele, vendo que o Governo Guterres estava a levar o país para o descalabro orçamental, apoiou sempre aquele governo. Era bem-intencionado, era a ideia de dar apoio ao governo... Mas eu preferia um Presidente que fosse mais duro, mais austero, mais crítico, que puxasse as orelhas, que às vezes até desse um bofetão, do que um que vai sempre deixando… É como aquelas pais que deixam sempre os filhos fazerem tudo e depois chega a uma altura em que já não há correção possível.

O Presidente Jorge Sampaio, que se dizia um Presidente pró parlamentar, que no fundo queria ser o Presidente o mais neutral possível, não queria intervir, etc., foi o único Presidente que usou o poder de dissolução contra uma maioria absoluta. Não estou a falar agora do General Eanes, porque o General Eanes estava noutro contexto constitucional quando o fez, no caso Vítor Crespo, e já era a terceira AD, tinha morrido o Dr. Sá Carneiro, eram coisas totalmente diferentes Ou seja, o que aconteceu com o Presidente Jorge Sampaio? Ele quis apoiar e suportar o governo, fazia até uns certos elogios, quis dar algum apoio, mas depois foi capaz de usar um instrumento brutal e terrível no sistema. E, curiosamente, coisa semelhante aconteceu com o Presidente Cavaco Silva. O Presidente Cavaco Silva, também no início do Governo Sócrates, também achava que o Governo Sócrates fazia um bom trabalho... que a Ministra da Educação estava a fazer um bom trabalho, e mostrava uma grande cooperação estratégica e uma certa abertura, para depois chegar ao seu discurso de posse e desfazer o Governo em plena Assembleia da República. Mau!

Eu prefiro um Presidente que ponha espinhos no caminho quando tem de pôr e que depois não tenha de usar as armas brutais quando o mal já está feito. E portanto, para mim, um Presidente interventivo, um Presidente que alerta, um Presidente que critica, um Presidente que está presente, não é um mau Presidente. Um Presidente complacente é um mau Presidente. Por isso, qual é a minha resposta? Eu não teria nada contra um sistema presidencial, não diria presidencialista que tem uma conotação latino-americana má. Quando nós nos referimos aos Estados Unidos dizemos que o sistema de governo é presidencial, quando nos referimos, por exemplo, à Venezuela, dizemos que é presidencialista, certo? Eu diria presidencial. Não tenho nada contra isso, mas não acho isso necessário.

Mas também não tinha nada contra uma nova Constituição, nada. Muita gente dizia "ai meu Deus, mudar a Constituição…”. A França mudou de Constituição várias vezes, todos os países democráticos mudam, não vejo nisso nenhum drama, não faço disso um bicho-de-sete-cabeças, mas eu acho que com o nosso sistema nós podemos ter um perfil de Presidente que seja mais interventivo. E a verdade é que, embora muitas vezes, o Dr. Mário Soares, quando foi Presidente, fosse irritante para o Governo de maioria absoluta do nosso partido, a verdade é que isso puxava para que nós fossemos melhores, porque nós tínhamos de lhe levar as propostas feitas de forma a que ele não as pudesse criticar. Nós tínhamos que incorporar também um pouco do pensamento da esquerda, porque ele representava mais esse setor. E, portanto, as governações eram mais abrangentes, no fundo nessa competição, levada até um certo limite, não é cair no exagero de fazer um congresso contra o governo que existe, como depois já fez o Dr. Mário Soares no fim, já em apoteose final. Não estou a dizer isso, mas o que eu digo é: eu sou a favor de uma maior intervenção presidencial, sempre fui. E sempre tive uma leitura de que o nosso sistema é semipresidencial, verdadeiro e próprio.

Por exemplo, grandes nomes de constitucionalistas portugueses, estou a pensar, por exemplo, no Prof. Gomes Canotilho ou no Prof. Vital Moreira, por exemplo, estão sempre a falar num parlamentarismo racionalizado, num sistema misto parlamentar-presidencial mas mais parlamentar, onde o Presidente é uma figura, digamos, de último recurso. Enfim, eu sou favorável a uma maior intervenção e acho que é isso que os portugueses esperam do Presidente da República. Dos últimos vinte anos, eu sou crítico, num certo sentido, dos mandatos de Jorge Sampaio e de Cavaco Silva, e respeito muito os dois, e acho que são duas reservas morais da Nação, e então no caso do Prof. Cavaco Silva tenho até uma relação, não é pessoal mas é afetiva, porque faz parte do nosso património, do nosso ADN e, o reconhecimento de uma coisa que ele tem, de facto, que é um zelo enorme pelo interesse nacional, e nisso acho que é inexcedível, o seu zelo pelo interesse nacional. Mas a forma como interpretam o mandato é de facto uma forma muito singular querem-se proteger muito no início e acabam por se desproteger muito ao fim.

E, portanto, isto eu acho que é um pouco como educar… o governo precisa de um certo tratamento que é de vez em quando pôr-se os pontos nos "is”. Claro, isso faz-se em privado mas às vezes também é preciso fazê-lo em público, dar sinais públicos. Portanto, um candidato com um perfil mais interventivo, para mim, seria uma coisa que eu veria com interesse.

 
Simão Ribeiro

Muito obrigado. Antes de dar a palavra à nossa próxima interveniente quero apenas alertar que a partir deste momento podem-se inscrever para o catch the eye. De forma tranquila… Portanto, Rita Vitorino, Grupo Vermelho. Tem a palavra.

 
Rita Honório Vitorino

Ora, boa tarde. A equipa cinzenta apanhou-nos de surpresa, nós íamos perguntar o que se podia fazer para o Presidente da República se tornar mais ativo, mas, visto isto, gostávamos de saber se será que o nosso sistema político é compatível com ideia de federalização europeia? Obrigada.

 
Paulo Rangel

Olhe, eu vou-lhe dizer o seguinte: há várias coisas que nós podemos fazer, porque eu aqui fiz uma análise do passado, mas, por exemplo, se tivesse que haver uma revisão constitucional – e isto no fundo permite responder à sua pergunta diretamente – eu acho que há coisas importantes que se podiam fazer, no sentido de reforçar o papel do Presidente da República. Uma matéria que eu acho que era muito importante, era na área da Justiça. Eu acho que o Presidente da República deveria ter a presidência dos Conselhos Superiores de Magistratura e dos Tribunais Administrativos e Fiscais, portanto devia ter esse encargo. O Presidente devia poder nomear juízes para o Supremo, uma quota, para os vários Supremos e para o Tribunal Constitucional. Portanto, eu acho que a área da Justiça que é uma área na qual o Governo não pode interferir é uma área na qual o Presidente podia ter uma atuação maior. Não é por acaso que nós dizemos que o Presidente da República é o mais alto Magistrado da Nação. A Constituição prevê algumas. Veja as competências que tem o Presidente da República: nomear o Procurador-Geral da República, nomear o Presidente do Tribunal da Contas ou, por exemplo, indultos. O Presidente da República pode comutar penas. Portanto, já temos aqui um núcleo de matérias nas quais ele pode intervir.

Outro aspeto que eu ponderaria – isso tem a ver com a questão segunda que pôs – é a questão da Europa. Que papel deve ter o Presidente da República na Europa? Poderíamos perguntar se o Presidente da República não poderia ter um papel mais ativo na política externa. No modelo francês, como sabe, o Ministro dos Negócios Estrageiros despacha diretamente com o Presidente da República, assim como o Ministro da Defesa, portanto, a área dos Negócios Estrageiros e da Defesa, embora esteja inserida no Governo, é diretamente tratada pelo Presidente da República, eu acho que na questão europeia talvez pudéssemos pensar num modelo em que o Presidente tivesse uma intervenção maior, não apenas a Assembleia da República, mas o próprio Presidente. Portanto, há áreas, há nichos…

No caso das Forças Armadas eu reforçaria o papel do Presidente da República. A tendência tem sido para não reforçar, tem sido até para diminuir, na nomeação das chefias militares, etc. Eu reforçaria a sua intervenção, nas áreas críticas de soberania, e não tanto de policies mas mais de politics , ou seja, mais daquilo que são as políticas estáveis, eu reforçaria os papéis do Presidente da República. Eu acho que esse seria um caminho.

Agora, se o nosso modelo é compatível com uma federalização? É totalmente compatível. O que uma Federação permite é justamente isso – é que cada Estado tenha a sua organização política própria, e depois há uma organização política própria da Federação. Isso é perfeitamente possível. Os Estados Unidos chegaram a conviver com vários modelos diferentes. Hoje isso não acontece.

No próprio caso alemão também acontece, cada Estado tem a sua organização. Por exemplo, no caso dos Estados Unidos, há casos em que num Estado o método eleitoral para os Senadores é um, e noutro Estado é outro. Isto é perfeitamente possível; houve tempos em que era, hoje já não é assim, porque eles tenderam a imitar-se. Aquilo que um grande teórico do federalismo e da ciência política, que é o Lijphart, aquele holandês, chama o isomorfismo, quer dizer, a tendência que os Estados federados têm para se irem copiando, à medida que se vão integrando vão replicando uns as estruturas dos outros.

Mas na Europa nunca poderia ser assim. Basta pensar que nós temos sistemas que são monárquicos e sistemas que são republicanos para perceber que cada país teria de conservar um modelo diverso. E, portanto, penso sinceramente que temos todas as condições para conviver com isso.

Teremos de reforçar os mecanismos de controlo do Parlamento nacional, especialmente do Parlamento nacional face aos mandatos que os ministros têm no Conselho. Nós já temos esse esquema mas continua a ser muito formal. Não há um acompanhamento tão forte quanto existe noutros países, por exemplo, estou a pensar nos países escandinavos, a Dinamarca e a Suécia, e hoje a Alemanha também, no caso do Reino Unido a mesma coisa, onde o acompanhamento que o Governo faz no Conselho, por exemplo do Conselho de Agricultura e Pescas ou no Conselho de Justiça e Assuntos Internos, ou nas Cimeiras, o acompanhamento pelo Parlamento nacional é muito mais próximo do que em Portugal. Mas isso é mais uma questão de praxis do que até de mudar as leis.

Com isto termino: há um grande escritor romano, que é o Tácito, que escreveu uma coisa sobre a Germânia, no fundo os germanos eram os alemães, um livro que se chama "A Germânia”, em que ele descreve a Germânia. E dizia assim: "e aí podiam mais os bons costumes do que as boas leis”. Quer dizer, era mais importante entre os povos bárbaros germanos os bons costumes do que as boas leis. Não é por haver boas leis que as coisas funcionam bem, é por haver boas práticas. Se houver boas práticas não são precisas muitas leis. É a lição dos anglo-saxónicos, e portanto, já o Tácito, nos alvores da nossa civilização, em pleno Império Romano, descrevendo a vida dos germanos, dizia "e aí podiam mais os bons costumes do que as boas leis”. E agora é catch the eye , não é…

 
Simão Ribeiro

Diogo Correia, Grupo Cinzento.

 
Paulo Rangel

Ai ainda é o grupo cinzento…

 
Diogo Correia

Bom dia Dr. Paulo Rangel. A questão agora realmente do grupo cinzento é a seguinte: quais as principais ameaças à União Europeia decorrentes dos atuais sistemas de governo dos seus Estados-membros? Obrigado.

 
Paulo Rangel

Essa é uma pergunta que eu tenho tratado muitas vezes nos meus artigos do "Público” e que por acaso até vai parecer uma contradição com as coisas que eu estava a dizer antes, mas eu acho que neste momento o principal problema que tem, especialmente, para dizer a verdade, na gestão daquilo a que se chamou impropriamente, a crise das dívidas soberanas.

O principal problema foi a intervenção dos Parlamentos nacionais a meio do processo. Foi o principal problema. Eu vou explicar. A negociação europeia é uma negociação internacional, ou supranacional; certo? Os Ministros vão lá para uma mesa, os Ministros das Finanças do Ecofin. Estão lá, pronto. Estão a representar o seu país. Quando se está a fazer uma negociação tem que se ter um mandato para negociar. Agora, se um Ministro diz: olhe, eu isso não sei se o meu Parlamento vai deixar, a gente tem de parar tudo e ir perguntar a cada Parlamento. Se há cinco ou seis Parlamentos isto é uma coisa realizável, se há 28 isto é impossível. Chegou a acontecer, veja bem, no início da crise, penso que estamos a falar em outubro de 2011, uma Cimeira, portanto não era um Ecofin, era uma Cimeira de Chefes de Estado e Chefes de Governo, que começou numa segunda-feira ou numa terça, já não me lembro bem, penso que foi numa terça, e depois a Sra. Merkel interrompeu para haver uma votação no Parlamento alemão, para se recuperar depois na quinta-feira outra vez, para ela vir com um mandato do Parlamento alemã. Ora isto não pode ser.

O que eu tenho dito sempre é o que é clássico na separação de poderes. Se for ler o John Locke, se for ler o Montesquieu, se for ler todos os grandes autores da separação de poderes, todos dizem: a condução das relações internacionais cabe aos governos. Aquilo a que o John Locke no seu célebre livro de 1689, "Segundo Tratado do Governo”, chamava o poder federativo, que é o poder de conduzir as relações internacionais. Não tem nada a ver com federações, é o "federaty power”. E ele dizia que isso cabe ao governo.

E depois o quê que acontece? O governo toma uma decisão e depois o Parlamento ou aceita ou não aceita. É o que acontece com os Tratados. O Governo português negoceia um Tratado, o Parlamento não anda lá a negociar o Tratado, não vão os deputados negociar o Tratado. É o Ministro dos Negócios Estrangeiros, imaginemos que estamos a falar de questões comerciais, será com certeza o Ministro da Economia, ou até o Ministro da Agricultura, (podem ser produtos agrícolas,) etc., estão lá, estão a negociar na mesa das negociações e trazem um pacote. E depois o que diz o Parlamento é sim ou não. Porque senão não há negociações possíveis. Porque repare, se cada vez que eu tenho de tomar uma decisão eu tenho que ir consultar o Parlamento dinamarquês, eu tenho que ir consultar o Parlamento sueco, que é o que os Parlamentos nacionais querem, isto torna-se impossível. Porquê? Porque na gestão da crise das dívidas soberanas, como isto não era negociado pela União Europeia, mas era pelos Estados, depois tinha que haver uma decisão Estado a Estado. Ainda agora, para o terceiro pacote de resgate à Grécia houve votação no Parlamento finlandês, no Parlamento eslovaco, no Parlamento alemão, no Parlamento… quer dizer, o quê que aqui deveria ser? Era uma negociação da União Europeia e uma votação no Parlamento Europeu. Pronto, isto é que devia ser…

Mas como não existe um sistema europeu e vai ser o dinheiro dos Estados que vai entrar, os Parlamentos reclamam eles próprios intervir. Ora, isto cria o tal problema de nós estarmos num sistema que nem é carne nem é peixe. Nem é uma Federação nem deixa de ser. É aquilo a que o Jacques Delors há muito anos chamou um OPNI – um objeto político não identificado. É o que é a União Europeia. E de facto isso é um impasse.

Por isso é que eu sou um federalista e represento aqui um avanço. Eu acho que os Parlamentos nacionais devem ter poderes de controlo forte, mas os seus poderes de controlo não devem interferir no meio das negociações – ou são antes ou são depois, e o que tem acontecido é que eles estão no meio das negociações. Há aqui uma outra questão para a qual eu gostava de chamar a atenção, embora isto, enfim, diminua o catch the eye , mas é um processo que ninguém tem falado e que eu queria que observassem com muita atenção.

Está a dar-se um fenómeno nos Parlamentos nacionais, que é um fenómeno novo por ser disseminado. Em Inglaterra, o Sr. Cameron, que tem uma maioria, está refém de 100 deputados que dizem que são anti Europa. Na França, o Sr. Holland com o Sr. Vals, que tinha uma maioria absoluta, está refém de 50 deputados que dizem que não querem austeridade nem reformas na Administração Pública francesa. Na Alemanha, a Sra. Merkel, que é a todo-poderosa carismática, está refém de 63 deputados que dizem que não querem ajudas à Grécia.

O quê que nós estamos a assistir? Nós estamos a assistir neste momento a que os deputados nos seus Parlamentos estão a criar dissidências dentro das maiorias. Começaram a perceber que se for um, não tem hipótese nenhuma, é posto de lado e tal… Mas se forem 50, 60, 100, começam a pesar. E isto é uma coisa nova, porque isto sempre aconteceu, até aconteceu com o PSD, que em 77 ou em 78 dividiu o Grupo Parlamentar em dois, em que os que saíram eram mais do que os que ficaram, e isso é que permitiu a sobrevivência do Governo de Mota Pinto durante algum tempo. Mas enfim, a célebre ASDI, na altura de Sousa Franco, Magalhães Mota, enfim, Jorge Miranda e outros… mas haver dissidências sempre houve. Agora estão a acontecer todas ao mesmo tempo.

Eu vou-lhe dizer o seguinte: eu tenho uma interpretação para isto, e que curiosamente não é negativa, é que eu acho que os Parlamentos começam a dividir-se mais, não tanto entre as esquerdas e as direitas, mas entre aqueles que são mais pró integração ou menos pró integração. E isso está a dividir os partidos, os próprios partidos das maiorias ou das minorias. Isto significa que o sentimento de federalização está mais avançado do que nós pensamos. Porque as divisões que se dão no Parlamento francês, no Parlamento inglês e no Parlamento alemão, dentro dos partidos maioritários, são todos a propósito de questões europeias. Num caso é a propósito da permanência na União Europeia, noutro caso é a propósito da questão do Euro e noutro caso é a propósito da questão dos resgates. E, portanto, a política europeia está a mudar o panorama, se quiserem o espectro político dos Parlamentos nacionais. Está a haver aqui uma contaminação. E isto é sinal de que nós temos mais Europa do que pensamos.

Eu, aliás, digo sempre isto, queria deixar-lhes isto muito claro. Em Portugal havia 3 ou 4 países que tinham influência na nossa vida política. Um que teve sempre, desde 1386, que era a Inglaterra. Outro que, por antinomia, teve sempre, era Castela e depois a Espanha, etc. A França também uma grande influência teve… nós tínhamos uma ponte para a França e uma para a Inglaterra que era para não sermos dominados pela Espanha. E depois falava-se às vezes um bocado da Alemanha e da Itália, mas pouco. Mas hoje, se formos às eleições de 2011, tinha consequências no debate português as eleições finlandesas; vão ter consequências no debate português as eleições gregas de 20 de setembro; vão ter consequências no debate português as eleições catalãs de 27 de setembro. Eu digo uma coisa: que os resultados em Inglaterra, que os resultados em França, que os resultados em Espanha tenham alguma repercussão em Portugal, eu percebo. Que os resultados na Finlândia, na Grécia ou na Eslováquia possam ter, isso é qualquer coisa de novo.

Isso é um sinal de quê? De que nós estamos muito mais integrados do que pensamos. Estamos muito mais integrados. Nós não temos é estruturas institucionais que reflitam esse grau de integração. Enfim, com isto abordei três temas que mostram a complexidade que está por trás da sua pergunta. Um é: os Parlamentos nacionais não devem interferir em questões que são estritamente europeias; outra é: a Europa está a dividir os Parlamentos nacionais; e a terceira é: afinal as realidades nacionais de países que não tinham connosco nenhuma relação já mexem, já interferem com os nossos processos de decisão internos.
 
Simão Ribeiro

Muito obrigado. Fernanda Catarino, Grupo Bege.

 
Fernanda Catarino

Muito bom dia. Na sua opinião, em que medida deve ocorrer eleição para um Governo português, sabendo que existem muitas áreas legislativas que, por força do Direito Europeu, já foram esvaziadas. Isto é, será que o Governo deve ser composto pelo mesmo tipo de ministérios que são os tradicionais ou será que alguns ministérios podem ser conjugados num Ministério para as Relações Europeias? Muito obrigada.

 
Paulo Rangel

Ora bem, vamos cá ver, eu queria dizer o seguinte sobre isso. Primeiro ponto: a primeira coisa – já escrevi sobre isso também há muito tempo, estou farto de dizer isso, mas é pregar no deserto – que é isto: devia haver um acordo entre PSD e o Partido Socialista para manter os mesmos ministérios durante dez anos ou quinze, e não haver leis orgânicas para novos ministérios.

É a coisa mais simples de se fazer. É dizer: há este Ministério, há aquele, há aquele, há aquele, e durante dez anos nós não mexemos. Depois deixar espaço para dois Ministros de Estado ou sem pasta, para justamente cada partido adaptar a uma prioridade que tenha. Há um partido que acha muito importante, por exemplo, a questão da natalidade ou da igualdade de género, ou de não sei quê, e ter uma pasta para isso, muito bem, ou da inovação tecnológica. Deixar ali um nicho, deixar uma margem de flexibilidade, mas os ministérios serem os mesmos. Porque em Portugal é uma coisa absolutamente inacreditável, estão sempre a mudar os ministérios. Eu aliás, para verem como falo com liberdade, e aliás, disse-o ao Primeiro-Ministro antes das eleições, depois das eleições, antes da formação do Governo, depois da formação do Governo. Achei um erro aquela coisa das dez pastas, ou das onze pastas, etc.

A nossa estratégia devia ser a seguinte: queremos que hajam apenas dez ministérios, muito bem. Então fazemos um Governo com catorze ou com quinze cuja tarefa é fazer a reforma para que possamos ter os tais dez que vão durar quinze ou vinte anos. Mas nós temos que reformar primeiro a Administração. Isto é uma linha geral que não tem nada a ver com a Europa. Mesmo que nós vivêssemos fora da Europa acho que era assim que nós devíamos viver. Era com um acordo de regime quanto aos departamentos de Estado que entendemos que devem existir. São estes! E não vamos mexer, nem vamos mexer nos nomes. Para que havemos de chamar "Ordenamento do Território”, pronto, é o Ministério do Planeamento é do Planeamento, depois está lá o Ordenamento do Território e está o Ambiente e está lá não sei quê, etc., etc..

Segunda coisa: eu não acho indispensável, se quer que lhe diga, não acho, que haja um Ministério dos Assuntos Europeus. O que eu acho que é indispensável é que haja uma política europeia, e eu acho que hoje o Ministro dos Negócios Estrangeiros pode perfeitamente fazer esse papel. Há aqui uma interpretação um bocadinho nova que é a ideia de que existe uma diplomacia económica. Nem é nova, toda a vida houve, muitos países tinham, os chamados Ministros do Comércio Externo. Por exemplo, o Vice-Primeiro Ministro Paulo Portas tinha muito essa interpretação quando era Ministro dos Negócios Estrageiros de que, no fundo, devia fazer diplomacia económica.

Meus amigos, vou dizer uma coisa que vai chocar toda a gente: não há diplomacia económica, só há diplomacia, porque toda a diplomacia é económica, é política, é financeira, é cultural, é tudo. A economia é um instrumento, quer dizer, não há uma diplomacia só económica. Agora, a diplomacia não pode abstrair da economia, evidentemente. Mas não há uma diplomacia só económica. A razão pela qual nós estabelecíamos relações com outros Estados, muitas vezes, era por razões comerciais, económicas, etc., portanto isto não é uma coisa nova. Por isso, eu não gosto nada da expressão diplomacia económica, é diplomacia, ponto final, isto é, abrange todos os capítulos. Claro, os económicos são muito importantes, também lá estão, mas não são os únicos. Há os culturais, há os políticos, há os de defesa, há os de segurança, etc., etc., etc. O Dr. António Costa, com aquela ética dos casos e casinhos, tirou da cartola o Ministério dos Assuntos Europeus, mas já está a ver o que isto ia dar – íamos ter o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Ministério dos Assuntos Europeus. O Ministro dos Negócios Estrangeiros depois ia fazer o quê? Visitar o Zimbabué? É uma hipótese... [RISOS E APLAUSOS]

Quer dizer, íamos criar aqui um conflito de competências. O que é fundamental é que haja uma política europeia e hoje a política europeia assenta em três ministros, fundamentalmente. Primeiro-ministro, em primeiro lugar, porque ele é que está nas cimeiras. Depois, Ministro dos Negócios Estrageiros, ao contrário do que muita gente, até na nossa coligação, defende. E terceiro, Ministro das Finanças no Ecofin.

São estes os três pilares e são estas três pessoas que têm de fazer este recorte de política europeia. E é isto que nós temos que pensar e tem que ter estes três lados. Todas as políticas estão contaminadas pela Europa, disse, e muito bem. Mas isso muda as nossas competências relativas? Não. Estão confusas. Por isso eu defendi aqui: com uma Federação as coisas eram mais fáceis. O que é da Federação é da Federação, o que é dos Estados nacionais, é dos Estados nacionais. É do Grupo Bege, mas se fosse do Grupo Cinzento eu diria que estamos com uma zona cinzenta muito grande. Mas o bege também é uma cor que dá ideia de alastramento, também não é assim de grande clareza.

Portanto, eu diria que estamos aqui, de facto, entre a União Europeia e os Estados nacionais, estamos entre tons de bege e de cinzento, e precisávamos de uma coisa um pouco mais, diria eu, preta e branca. Ou se quiserem vermelha e verde, para usar as cores nacionais. Nunca, mas nunca, ao contrário do que aqui ouço sempre, encarnado, porque isso não existe. Encarnado não é cor. [APLAUSOS]

Eu ainda não disse isto ao Carlos Coelho, mas vou-lhe dizer quando terminar esta sessão, vou-lhe dizer: se para o ano eu for convidado para qualquer coisa e houver um grupo designado encarnado, eu vou pedir interpretação simultânea durante os trabalhos, porque eu não sei o que isso é. Lá na minha terra isso não se usa, não faz parte da nossa coisa… [APLAUSOS]

 
Simão Ribeiro

Muito obrigado. Para o catch the eye há aqui um conjunto alargado de inscrições, portanto, também peço que façam perguntas. Para começar pelo Grupo Verde, Nuno Dias, e depois o Zé Ribeiro do Grupo Azul. Nuno…

 
Nuno Pinto Dias

Bom dia, Dr. Paulo Rangel. É um enorme privilégio estar a assistir a esta sua aula sobre sistemas de governo. Analisando a Constituição dos Estados Unidos, verificamos que tem cerca de 4.400 palavras, ao contrário da portuguesa que tem mais de 32.000, ou seja, mais de sete vezes do que a americana. Portugal e a Europa não ligam o complicómetro quando produzem textos legais fundamentais, retirando adaptabilidade com os valores e culturas vigentes? ou, face à multiculturalidade europeia, é inevitável ter esta minúcia legal como garantia de idêntica interpretação por parte de todos os seus Estados-Membros? Muito obrigado. [APLAUSOS]

 
Paulo Rangel

Ora vamos cá ver…

 
Nuno Matias

Temos uma segunda pergunta…

 
Paulo Rangel

Segunda, está bem. É dois em um, é champô e acondicionador. [RISOS]

 
José Manuel Ribeiro

Muito bom dia, Paulo Rangel. Espero que lhe perguntem qual a relação…

 
Paulo Rangel

Finalmente alguém sabe dirigir-me a palavra. É Paulo Rangel, não é professor, não é doutor, não é não sei quê, não sei que mais. Que é outra coisa em que o português é terrível. Deixe-me só dizer isto. Eu acho que se devia propor… é uma proposta radical que faço aqui, mas no nosso programa eleitoral devia-se propor a abolição, pelo menos, do uso público dos títulos académicos, porque são um fator de diferenciação dos cidadãos e corresponde a uma sobrevivência da aristocracia retrógrada. Vamos ver se a JSD apresenta, pelo menos, nos concursos públicos e tal, desaparecer esse tratamento, é o Senhor tal, ou pelo próprio nome.

 
José Manuel Ribeiro

Continuando, espero que… [RISOS]

 
Paulo Rangel

Devagar, devagar…

 
José Manuel Ribeiro

Espero que lhe perguntem a relação entre James e Tiago, porque não é essa a minha questão ainda. No seu livro "Jesus e a Política” cita "Em verdade, em verdade se diga”. Aconselha o líder do Partido Socialista a ler o seu livro? Obrigado. [RISOS E APLAUSOS]

 
Simão Ribeiro

Tem a palavra, Sr. Paulo Rangel. [RISOS]

 
Paulo Rangel

Ora bem, eu agora estou com um problema, é que com esta segunda pergunta esqueci-me da primeira. Já sei, é os textos, a extensão dos textos.

É preciso olhar em primeiro lugar para os contextos históricos; depois também não é bem verdade que aquilo seja assim tão curto, porque aquilo já teve vinte e nove emendas, certo? Portanto, está um bocadinho mais longo. Depois é preciso perceber que o sistema é um sistema dito anglo-saxónico, ou seja, é um sistema de precedente. Portanto, para verdadeiramente compreender a Constituição americana tem que ler a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em que tem, não é centenas de milhares, é milhões e milhões de palavras produzidas ao longo de duzentos anos, certo? Para defender um caso junto do Supremo Tribunal Federal não é assim uma coisa tão simples. Ora, não há dúvida que é uma Constituição extremamente flexível e que a nossa, a portuguesa em particular, é extremamente rígida, é extremamente pesada. Mas como eu lhe disse, isto vai mais da atitude que nós temos relativamente aos textos do que propriamente da sua extensão.

Para mim, a Constituição não é apenas o que está escrito, são também os valores que a dominam e a realidade em que ela se aplica. Isso não é uma questão assim tão importante. Mas há aqui questões de tradição, pronto, há tradições. E também eu acho se nós temos a tradição de ter uma Constituição política com determinado pormenor, não devemos ir contra a nossa tradição. Pronto, é a nossa, vem de 1820, que era bastante mais simples, apesar de tudo, do que esta.

E esta também foi uma Constituição de muitos compromissos, é preciso ver isso, compromissos com militares. A Constituição inicialmente não era democrática, tinha um Conselho da Revolução, foi baseada num pacto com militares. Tudo isto foi assim um processo muito tortuoso, sobre o qual eu não falei aqui, e portanto eu basicamente diria que, para mim, o problema está na atitude de quem interpreta e aplica a Constituição, e não está tanto no seu texto. E é isso que os Estados Unidos demonstram, é que o texto da Constituição dos Estados Unidos também podia ser um impasse, mas não foi impasse pela atitude que, quer o Supremo Tribunal, quer o Congresso, quer o próprio Presidente foram tendo ao longo do tempo. E quando o Supremo Tribunal Federal foi extremamente conservador, nos anos 30, quando se deu a grande depressão, o Presidente Roosevelt ameaçou alterar a Constituição e nomear, em vez de ter 9 juízes passar a ter 16, para ficar com uma maioria que permitisse alterar a jurisprudência do Tribunal.

Isto só para dizer que também houve um momento em que o Supremo Tribunal Federal também foi muito conservador, estava muito agarrado a uma visão muito literal do direito de propriedade em particular. Era a questão do Well Fare State , no fundo, o New Deal , a política de intervenção e de financiamento para combater a Grande Crise. Para dizer, enfim… não olhemos com tanto simplismo, eu volto àquele exemplo da Guerra Civil; as pessoas dizem: que difícil construir a União Europeia quando nos Estados Unidos aquilo foi uma maravilha. Os Estados Unidos, repito, são uma Federação resultante da imposição dos Estados do Norte ao Estados do Sul. Por boas razões, mas tiveram de ter uma guerra para terem uma Federação.

Quanto a saber se eu aconselho, eu não vou aconselhar ninguém a ler um livro meu, certo? Ficar-me-ia mal. Portanto não vou fazer isso. Agora, eu acho que, como disse aqui, naquela fase mais política da minha intervenção inicial, o Dr. António Costa, ou o Sr. António Costa, para voltar aquela proposta, António Costa precisa realmente de uma coisa… não é tanto a relação com a verdade, é a relação com a omissão.

O problema de António Costa não é ele dizer mentiras, é ele omitir. Ou seja, ele ainda não fez o mea culpa sobre a bancarrota a que o PS conduziu o país; ele ainda não fez a denúncia dos comportamentos errados que aparentemente certos líderes do PS tiveram; ele ainda ontem brincava com a questão essencial que foi no fundo a limpeza, o saneamento do sistema financeiro português. Sobre isso ele não diz uma palavra, está calado. E é essa omissão, essa incapacidade de reconhecimento dos erros próprios, que contrasta connosco. Por exemplo, ontem, numa questão de pormenor, o primeiro-ministro Passos Coelho disse: realmente nós falhámos numa coisa, no Estatuto da GNR falhámos. Não fomos capazes de, perante problemas muito complexos, chegar ao fim da legislatura com uma solução. Reconheço que falhámos, lamento mas falhámos, não conseguimos fazer isto. Ele não teve nenhum problema em fazer este reconhecimento. E António Costa em questões muito mais sérias, como o comportamento do PS entre 2005 e 2011, como a questão do Banco Espírito Santo, como a questão que tem a ver com os casos de Justiça, em que está envolvida alguma governação do Partido Socialista, ele omite, não fala sobre isso.

Não era preciso estar a falar todos os dias, era ter feito logo de início um discurso no qual fazia o reconhecimento dessas matérias e arrumava o assunto. Mas ele não é capaz de lidar com isso. Portanto, eu digo assim: o problema dele não é um problema da relação com a verdade; é um problema da relação com a omissão. É um líder omisso, quanto a questões que são questões essenciais para a vida nacional.
 
Simão Ribeiro

Hugo Alves, Grupo Bege, seguido do Ricardo Carvalho do Grupo Roxo.

 
Hugo Alves

Paulo Rangel, bom dia. [RISOS] Referiu há pouco que acordar e pensar no António Costa poderia, ente aspas, isto é a minha interpretação, provocar dores de cabeça. Não sendo a aspirina farmacêutica o medicamento indicado no tratamento de um tal sintoma, eu gostaria de lhe perguntar qual a receita medicamentosa ou terapêutica que recomendaria a todos os que padecem ou que partilham do mesmo problema que o seu.

 
Paulo Rangel

Eu diria o seguinte, a receita é muito simples… ah, segunda, eu peço desculpa. Habituei-me… mudam as regras a meio do jogo e depois dá nisto. [RISOS]

 
Ricardo Moreira de Carvalho

Bom dia, Sr. Paulo Rangel. No Parlamento nacional as Comissões de Inquérito têm tido uma grande visibilidade, recentemente. Por exemplo, a Comissão do caso BES foi muito elogiada pelas conclusões a que chegou. Eu gostaria de lhe perguntar o quê que é necessário para que uma Comissão Parlamentar de Inquérito seja verdadeiramente útil? E já agora, porquê que James deve ser traduzido por Tiago? Muito obrigado.

 
Paulo Rangel

Muito bem. A primeira coisa é assim: a receita é muito simples, é dia 4 de outubro votar na Coligação. E está dito.

[APLAUSOS]

Eu quero tanto explicar aquela coisa do James e Tiago que até me esqueci da sua primeira pergunta. Ah, Comissões de Inquérito…

Vamos cá ver, eu acho que nós, mesmo assim, padecemos em Portugal, padecemos… nisso, por exemplo, não estou muito de acordo com o Luís Montenegro, ontem. Eu sou a favor de maior liberdade para os deputados do que aquela que o PSD dá aos seus deputados. Sempre fui, e como líder parlamentar fui assim e no Parlamento Europeu sou assim. Sinceramente… claro, não é votar no Orçamento, etc., etc., mas eu acho que os deputados precisam de maior espaço de intervenção própria. É isso que fortalece a democracia, é isso que fortalece a diversidade, e isso é positivo. Claro que não estou a falar nas questões de votação do Orçamento, de moções de censura, etc.

Há matérias que são matérias de disciplina de voto claras e evidentes, mas tirando essas eu acho que deveria haver um bocadinho mais de espaço. Sem dúvida, ele disse uma coisa que é verdade, há mais espaço no nosso do que nos outros. Então o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, que estão sempre a falar nisso, votam sempre todos igual. Lá pensa toda a gente da mesma maneira. É uma felicidade que eles têm… Mas eu sou a favor de maior espaço de liberdade. E nas Comissões de Inquérito, assim.

E de facto nós temos tido Comissões de Inquérito importantes, uma foi a do BPN, outra foi a do caso BES, outras foram as de Camarate, que foram importantes. Mas elas ainda não têm o prestígio que têm, por exemplo, num Parlamento britânico ou no Parlamento dinamarquês, em que uma comissão de inquérito impõe-se mesmo, e os deputados da própria maioria, muitas vezes, chegam a conclusões contra decisões que os seus governos tomaram. Ou deputados que estão a inquirir coisas de quando o seu partido era governo, agora estão na oposição, e têm essa distância crítica para fazer isso. Nós ainda não estamos nesse nível. Nestas três Comissões eu penso que nós atingimos esse nível, mas ainda não estamos. Sinceramente, aí eu acho que nós devíamos reforçar, blindar o Estatuto de Deputado, dar-lhe maior liberdade no quadro das Comissões de Inquérito em particular. Seria uma coisa extraordinária para o Parlamento. Portanto eu tenho aqui uma visão um pouco mais liberal, um pouco mais anárquica, se quiserem, um pouco mais individualista, um pouco menos partidocrática, daquilo que é um Grupo Parlamentar e daquilo que é a função de um deputado. Esta é a minha visão e foi sempre… e fui muito criticado, diziam-me "este homem não tem espírito de liderança e não promove reuniões para fazer coisas…” – pois não, porque eu acredito que as pessoas têm cabeça e iniciativa para se gerirem a si próprias dentro de um quadro geral. Não vou estar agora a impor a todos…

Indo para a tal questão, eu vou tentar ser muito sintético. É que muita gente, a propósito da Revolução Inglesa, fala no Jaime I e depois no Jaime II. E Saint James é São Tiago, como todos sabem… Porquê? Porque isto, explicando assim de uma forma muito simples, era: quem era Tiago? Era Iacob, que era um discípulo de Jesus, do tal "Em verdade, em verdade se diga”. Iacob – que é um nome tipicamente judaico. Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Iacob. Ou "Jacobe”, como dizem alguns. O que acontece é que supostamente este senhor veio até à Península Ibérica e morreu na Península Ibérica – o que é altamente duvidoso, enfim – ali em Compostela. E este Iacob veio para as línguas peninsulares com o nome de Iago, que é um nome muito comum nas comunidades ciganas, é um nome muito comum numa peça de Shakespeare, o Mercador de Veneza, onde aparece o Iago, é uma das grandes personagens – o Iago. E como sabem, em português, quando no masculino o nome dos santos começa por vogal, diz-se Santo, se começa por consoante, diz-se São. Eu digo Santo António, São Luís. Santo Ivo, São Jerónimo. Portanto, como Iago começava por "i”, porque o "j” se converteu em "i”, porque "i” e "j” – têm os dois pintinha – em latim era a mesma coisa, ficou Santo Iago. Como era bastante difícil dizer Santo Iago, era preciso parar no meio, pôs-se um apóstrofo e ficou San’tiago. Como era San’tiago, especialmente para aquelas pessoas da Galiza e do Norte o San tem tendência a ser Son, passou a ser São Tiago e o "t” do santo passou para o nome. Passou a ser Tiago. As pessoas passaram a julgar que era São ponto Tiago, começava por consoante. Portanto, era santo duas vezes, porque já tem o "t” no nome e ainda tem o "são” por trás – São Tiago. Por isso é que é Saint James.

Agora, podem-me perguntar porque que o " C ” de Iacob passou a "g”? Porque do latim para o português há um fenómeno muito comum que é o fenómeno da passagem dos "ques” e dos "tês” para "guês” e para "dês”. E os "quês” passam geralmente a "guês”, com o tempo.

O "c” passou a "g”, portanto de Iacob passou a ser Iagob ou Iago. Curiosamente o mesmo nome é Diogo, Diogo e Tiago, ou Diego, é a mesma coisa, o "tê” passou a "dê”. Se eu por acaso – eu não, mas os senhores -, numa noite mais animada, estão em casa de uma tia, que até queria que chegassem muito cedo e querem dizer aos seus amigos "a minha tia está tonta”, não dizem "a minha tia está tonta”, dizem "a minha dia esdá donda”. Os "tês” passam a "dês”. Ora o quê que acontece? A língua vai-se embebedando com o tempo. É basicamente esta a situação [APLAUSOS]. Vai-se indo dos sons mais difíceis para os sons mais fáceis, é um processo de preguiça linguística. Portanto, os "quês” passam a "guês” e os "tês” passam a "dês”. Por isso, quando os senhores vêm uma cidade que se chama San Diego e uma que se chama Saint James e outra que se chama Saint Jacques e outra que se chama Santiago e outra que se chama San Diego ou São Diogo, é tudo a mesma coisa. Se alguém tiver a infelicidade de os pais, numa grande inspiração, lhes terem posto o nome de Jaime Tiago ou de Tiago Diogo, pois é a mesma coisa que ser Diogo Diogo ou Tiago Tiago. É uma originalidade tão grande como essa. [RISOS]

Por isso, a tradução correta de James é Tiago. Por uma razão adicional. Porque o Tiago I – é o único rei inglês que era um intelectual - escreveu imensas obras de política e foi altamente contestado por três grandes homens da Península Ibérica, do tempo dos Filipes, três grandes filósofos, mas especialmente dois, o Francisco de Vitória e o Francisco de Suárez, que contestaram a sua teoria absoluta, a teoria do direito divino dos reis. E tanto o Francisco de Vitória como o Francisco de Suárez, nos seus escritos, se referiam ao rei de Inglaterra, que era quem eles estavam a contestar, como Tiago I. A chamada Escolástica ou Neoescolástica de Coimbra-Salamanca universalizou a tradução de Tiago I para se referir a James .

Está explicado porque de Jacob nós viemos dar a Tiago e porque que James ou Jacques, em francês, são o mesmo nome, que em português devia ser corretamente traduzido por Tiago, ou quando muito por Diogo. Enfim, agora parece que também há alguns Diegos, mesmo em português, também pode ser isso…

 
Dep.Carlos Coelho

Muito bem. E chegamos ao fim dos nossos trabalhos da manhã. Agradeço, em vosso nome e em nosso nome, ao Dr. Paulo Rangel a aula brilhante que nos deu. Eu vou acompanhar o nosso convidado à saída e pedia ao Pedro Esteves e ao Nuno Matias para prosseguirem os nossos trabalhos daqui. Muito obrigado.

[APLAUSOS]